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domingo, 29 de dezembro de 2019

Dos fungos aos fundos com um perdão milionário: como o "rei dos cogumelos" perdeu o negócio

Marcelo Rebelo de Sousa visitou em 2016 a Sousacamp, acompanhado pelo fundador, Artur Sousa, à direita na foto.

Artur Sousa fundou o grupo Sousacamp há 30 anos, mas viu as suas empresas ficarem insolventes. O principal braço do negócio, a Varandas de Sousa, foi já entregue a uma sociedade de capital de risco, após um perdão de dívida milionário do Novo Banco. Esta é a história do maior produtor de cogumelos em Portugal

Artur José Varandas de Sousa formou-se em Engenharia Eletrotécnica pela Universidade do Porto, mas foi na Holanda, na década de 1980, que tomou contacto com o mundo dos cogumelos, avançando com um curso de microbiologia, em Eindhoven, que complementaria mais tarde com um MBA em gestão em Espanha. Em 1989 fez dos cogumelos negócio, abrindo no concelho de Vila Flor a primeira unidade de produção do grupo Sousacamp, com um investimento de 25 mil contos (125 mil euros).
Mas 30 anos volvidos Artur Sousa, hoje com 51 anos, perdeu o principal braço do grupo que fundou, a Varandas de Sousa SA. Em processo de insolvência desde 2018, a empresa acaba de ser comprada pela sociedade de capital de risco Core Capital, empresa liderada pelo ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos Nuno Fernandes Thomaz. A Core Capital teve, nesse processo, a ajuda do maior credor da Varandas de Sousa: o Novo Banco aceitou arrumar o dossiê da insolvência da produtora de cogumelos concedendo um perdão de dívida de 24 milhões de euros.
Nisto, a história da empresa que se tornou a campeã nacional dos cogumelos, e que chegou a ser uma das maiores produtoras europeias, não é muito diferente do trajeto de dezenas de sociedades que, sufocadas financeiramente, viram o seu futuro entregue à banca. A narrativa é comum em muitos casos: uma empresa promissora e bem sucedida quer crescer, um banco liberta o crédito para financiar a expansão, mas a dado momento a sociedade deixa de conseguir cumprir o serviço da dívida, até que é forçada a avançar para um processo de insolvência.
Nesse cenário, o banco, que já registara imparidades com o incumprimento, resolve estancar a ferida: deixa de financiar, pressiona o afastamento os sócios fundadores da gestão, e procura uma sociedade de capital de risco que queira pegar no negócio, aliciando-a com um ativo praticamente limpo de dívida, após um perdão de boa parte dos créditos. A banca tem aí algo a ganhar: a esperança de que a empresa, com novo dono e nova gestão, possa voltar a crescer e a gerar cash flow suficiente para voltar a contrair empréstimos… à banca.

DE VILA FLOR A VILA REAL

Voltemos aos cogumelos. O grupo Sousacamp, depois da primeira fábrica em Vila Flor abriu uma segunda unidade em Mirandela. Em 2007 o grupo de Artur Sousa estava a faturar 5 milhões de euros. O negócio seguia de vento em popa. Em 2008 o empresário abria uma terceira fábrica em Paredes. E pouco depois avançava para outras duas unidades em Sabrosa e Vila Real. Esta última seria a maior da Europa.
Para construir a fábrica de Vila Real o grupo Sousacamp precisou de investir mais de 50 milhões de euros. Recorreu a financiamento do Banco Espírito Santo (BES), mas a unidade industrial foi sofrendo atrasos, que a Sousacamp atribuía a problemas com o traçado do IP4. A unidade de Vila Real era um projeto PIN (Potencial Interesse Nacional).
Em 2011 Portugal sofria a intervenção da troika, mas Artur Sousa mantinha previsões expansionistas. A sua família controlava quase 60% da Sousacamp (o restante era, desde 2007, da ES Ventures, a capital de risco do Grupo Espírito Santo). A produção estimada para esse ano era de 11 mil toneladas, sendo 60% para exportação (sobretudo Espanha, França, Holanda e Alemanha). E a faturação devia chegar aos 30 milhões de euros.
Numa entrevista à revista “Exame”, em setembro de 2011, Artur Sousa realçava a inovação promovida pelo grupo que fundara em 1989, nomeadamente o cultivo em altura, com seis prateleiras para produzir cogumelos de diferentes calibres, e o aproveitamento do que sobrava do cultivo como fertilizante para a agricultura. “Somos a única empresa do mundo que adota esta solução, acrescentando valor e reaproveitando um subproduto até agora inútil”, contava então o empresário.
Em 2012 as receitas totais da Sousacamp estavam nos 25,6 milhões de euros. Isso representava um crescimento médio anual de 39% ao longo dos últimos cinco anos. A empresa gerava então um EBITDA (resultado antes de juros, impostos, depreciações e amortizações) de 4,3 milhões de euros. Mas a sua dívida líquida estava em 44 milhões. Ou seja, cerca de 10 vezes o EBITDA.

PROJETO ALICE: A OPORTUNIDADE PARA VENDER ANTES DA QUEDA DO BES

O negócio da Sousacamp, apesar da elevada alavancagem em dívida do BES, começava a suscitar interesse de outros investidores. Foi o caso do fundo Vallis, um veículo de private equity fundado por Eduardo Rocha (ex-administrador financeiro da Mota-Engil), Luís Santos Carvalho (antigo diretor do banco holandês ABN Amro) e Luís Palma da Graça (gestor com passagem prévia pela área da construção e infraestruturas).
Segundo apurou o Expresso, a Vallis Sustainable Investments esteve em 2013 muito perto de avançar para a compra da Sousacamp. O projeto teve o nome de código Alice. Tal como a personagem de 1865 que andava pelo país das maravilhas. A Vallis encomendou a assessoria jurídica à Morais Leitão e no processo de avaliação participou também a KPMG.
Durante vários meses os responsáveis da Vallis, Morais Leitão, KPMG e Sousacamp partilharam informação entre si. Mas o negócio não se concretizaria. “De facto analisámos a empresa, mas decidimos não prosseguir na transação. É tudo o que podemos dizer, pois a Vallis não comenta as transações que não conclui”, afirmou Luís Carvalho ao Expresso.
No final de 2013, ainda assim, a Sousacamp anunciava que iria construir duas fábricas na Argélia. O seu plano permanecia ambicioso. Depois dos primeiros 50 milhões de euros aplicados em Vila Real, o grupo pretendia investir outros 45 milhões numa segunda fábrica na mesma localização, desta feita para produzir cogumelos de conserva. O grupo tinha então 700 trabalhadores e o novo projeto previa outros 200 postos de trabalho diretos e indiretos.
Mas em 2014 colapsa o GES, que era não só acionista da Sousacamp (com 39%), como também o seu principal financiador. E começam os problemas.
Depois da resolução do BES, o seu sucessor, o Novo Banco, fecha a torneira do financiamento. Em 2016 o Novo Banco decide vender à Armilar Venture Partners os fundos de capital de risco ES Ventures, que herdara do BES.
Sem acesso a financiamento e com a segunda fábrica de Vila Real por concluir, a Sousacamp enfrentava sérios desafios.

O AFETO DO PRESIDENTE ANTES DA TORMENTA DOS TRIBUNAIS

Em julho de 2016, no âmbito da iniciativa Portugal Próximo, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, visita o interior do país. No roteiro inclui uma passagem pela Sousacamp, para conhecer e elogiar o maior produtor europeu de cogumelos frescos.
Na fábrica da Sousacamp em Vila Flor Marcelo Rebelo de Sousa distribuiu sorrisos e tirou fotografias com dezenas de funcionários. Visitou as câmaras de produção. E provou. “Nunca tinha comido um cogumelo assim, é bom. É bom para a saúde, isto é uma maravilha”, comentou o Presidente da República.
Mas no ano seguinte a bem sucedida história da Sousacamp começaria a provocar um amargo de boca ao seu fundador. No final de 2017 o grupo de Artur Sousa avançou com um processo especial de revitalização (PER) na sua principal empresa, a Varandas de Sousa, para tentar, com a ajuda de um administrador judicial, encontrar uma saída.
Com cinco fábricas em Portugal, duas em Espanha e um total de 500 empregados, a Sousacamp estava sufocada em dívida. “A empresa precisa de sanear o seu passivo”, dizia ao “Jornal de Negócios”, em dezembro de 2017, fonte conhecedora da situação. E a principal razão para o PER tinha que ver com “a queda do BES, que até então [Verão de 2014] estava a financiar a construção da gigantesca unidade de produção de cogumelos, cuja obra, onde foram já investidos cerca de 20 milhões de euros, ficou a meio”, escrevia o mesmo jornal.
A Varandas de Sousa, com uma faturação de 18,8 milhões de euros, tinha fechado 2016 com um prejuízo de 9 milhões de euros, acima das perdas dos anos anteriores.
O PER não correu da melhor maneira. Em abril de 2018 o processo foi encerrado por falta de acordo com os credores para uma recuperação. A Varandas de Sousa devia 60 milhões de euros, pertencendo as maiores fatias ao Novo Banco (34,1 milhões) e Crédito Agrícola (15,9 milhões). E até então o campeão dos cogumelos não tinha proposto qualquer plano aos bancos.
Gorada a possibilidade de uma recuperação por via do PER, a Varandas de Sousa apresentou-se à insolvência. Mas o negócio tinha pernas para andar. “Com a informação de que disponho, não tenho dúvida nenhuma de que a empresa é recuperável. Porquê? Porque tem o que faz falta: capacidade instalada e clientes bons, estando a cumprir com as suas obrigações correntes”, afirmava, em abril de 2018, o administrador da insolvência, Bruno da Costa Pereira, ao “Jornal de Negócios”.

OS FUNDOS AO FUNDO DO TÚNEL

Mas só este ano 2019 a Varandas de Sousa veria o seu futuro resolvido. Numa assembleia de credores em junho, em Vila Flor, foi apresentada por Artur Sousa uma proposta de um consórcio que juntava um empresário belga e outro espanhol, para salvar a Sousacamp.
Juntos na empresa Rudi & Mittelbrunn, propunham injetar 5 milhões de euros na Sousacamp e regularizar as dívidas com um plano que implicava 18 meses de período de carência e amortização da dívida bancária em 120 prestações, segundo então escreveu a agência Lusa. Esse consórcio propunha duas opções, que implicavam perdões de dívida entre os 25% e os 65%.
Só que esta proposta não convenceu o Novo Banco. A oferta hispano-belga não apresentou suficientes garantias bancárias e foi recusada pelos credores. Mas o administrador judicial Bruno da Costa Pereira assegurava que havia outros investidores interessados.
Em julho o Novo Banco estava a tentar desfazer-se de uma carteira de crédito malparado no valor de 3,3 mil milhões de euros. Entre os interessados estavam os fundos Bain Capital e Davidson Kempner. No pacote, denominado “Nata 2”, estavam os créditos concedidos ao grupo Sousacamp, além das dívidas da Ongoing e de Bernardo Moniz da Maia, por exemplo.
Em julho o “Dinheiro Vivo” revelava que alguns dos créditos da carteira “Nata 2” tinham suscitado o interesse de outros investidores, nomeadamente dos fundos Core Capital e Atena Equity Partners. O interesse recaía sobre empresas industriais que se mantinham em atividade, como a Sousacamp e ainda a EIP, um histórico fornecedor de equipamentos para o sector energético, cujas dificuldades financeiras o Expresso relatou em abril deste ano.
E em novembro o Novo Banco decidiria entregar o futuro do campeão dos cogumelos à Core Capital, em vez de deixar o crédito no pacote Nata 2 (que tinha sido vendido a um fundo norte-americano em setembro). A venda da Varandas de Sousa à Core Capital foi aprovada pela Autoridade da Concorrência a 17 de dezembro.

QUEM SÃO OS NOVOS DONOS?

Não foram ainda tornados públicos os detalhes da compra da Varandas de Sousa pela Core Capital, através da Core Equity. Sabe-se apenas, segundo revelou o “Jornal de Negócios” esta semana, que o negócio implicou um perdão de dívida de 70% por parte dos bancos (o Novo Banco prescindiu de 24 milhões de euros e a Caixa de Crédito Agrícola perdoou 11 milhões). Os restantes credores perderão a maior parte dos créditos que tinham (entre eles a Galp, EDP e Caterpillar).
Mas o Fisco e a Segurança Social receberão os seus créditos na totalidade (2,4 milhões e 881 mil euros, respetivamente).
A Core Capital, nova dona da Varandas de Sousa, é uma sociedade de capital de risco fundada no final de 2017 por Nuno Fernandes Thomaz, gestor que entre 2013 e 2016 foi vice-presidente da CGD (antes disso liderou a empresa de consultoria financeira ASK e foi diretor do Banif Investment Banking).
Além do ex-administrador da Caixa, a Core Capital foi fundada também por Martim Avillez Figueiredo, Pedro Araújo e Sá e Pedro Soares David, numa equipa que cruza experiências profissionais da área financeira e do negócio dos media.
Martim Avillez Figueiredo foi administrador operacional da Impresa (de que o Expresso faz parte), depois de ter trabalhado com o grupo Sonae e de ter fundado o jornal “i” e dirigido o extinto “Diário Económico”.
Pedro Araújo e Sá, por seu turno, foi durante vários anos administrador da Cofina Media (que detém o “Correio da Manhã”, “Jornal de Negócios”, “Sábado” e “Record”). E Pedro Soares David trabalhou na ASK e nos bancos Finantia e Banif Investment Banking.
O primeiro fundo desta capital de risco, o Core Restart, foi registado na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) em março de 2018, visando investir em pequenas e médias empresas em dificuldades e dar-lhes uma “segunda oportunidade”. O site da Core Capital é omisso quanto aos investimentos já realizados.
É agora à Core Capital que pertence o futuro dos cerca de 500 trabalhadores da Varandas de Sousa e das outras empresas da também insolvente Sousacamp, aguardando um novo começo, fresco como os cogumelos que continuam a sair todos os dias para as prateleiras dos supermercados e para as mesas dos portugueses.

expresso.pt

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