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domingo, 15 de dezembro de 2019

Louca, sim, mas por amor



www.maxima.pt 


O mistério não demorou a ser desvendado quando Maria Adelaide Coelho da Cunha, filha e herdeira do fundador do Diário de Notícias, foi encontrada, em Santa Comba Dão, a viver, muito modestamente, com o antigo motorista da família, Manuel Claro, 20 anos mais novo do que ela. 

Dali foi levada, à força, para um hospital de alienados. Sem meios e vindo a ser dada como louca, ela enfrentou os maiores psiquiatras da época. Perdeu quase tudo, mas ganhou o direito de amar o homem que escolheu. A sua história é um épico. A coragem e a imensa dignidade dos dois, uma referência comovedora. E o amor de ambos, uma luz que o tempo não apaga. 
Uma mulher apaixonada foge de casa, abandonando o marido e o filho, e deixa joias, roupa, fortuna e uma posição social invejável para ir viver com o amante, Manuel Cardoso Claro, em Santa Comba Dão. Onze dias depois é encontrada pelo marido, pelo filho, por um amigo de família e por dois polícias a soldo.

 

O amante não está na povoação, pelo que não foi possível prendê-lo. Mas ela é uma excelente candidata a uma oportuna reclusão num hospital de alienados. 
Até porque estas instituições, para além da sua função natural e tão meritória, tinham vindo (eventualmente) a suprir os bons serviços que, nessa área, os conventos femininos haviam prestado, ao longo de séculos, à sociedade patriarcal. 

Os hospitais de alienados, entretanto, também acolhiam alguns homens – o caso Dantas da Cunha é emblemático – igualmente muito ricos e vítimas das malhas desta teia familiar apoiada pela ciência psiquiátrica da época. Mas as "loucas amorais" destas instituições eram, sobretudo, mulheres jovens e de grande fortuna que ali ficavam reclusas por tempo indeterminado, a par das loucas de verdade, como Maria Adelaide virá a relatar nos seus diários. 

Muitas acabavam por ser interditadas. E não se falava mais no assunto. De modo que esta história tinha todos os ingredientes para ser rapidamente esquecida se o plano do marido, com o apoio dos maiores sábios da época no campo da Psiquiatria, se tivesse desenrolado como era suposto. Maria Adelaide, porém, não era uma presa fácil. E Manuel Claro nunca desistiu dela, usando de todos os meios para a libertar daquele horror. 

Assim, culta, inteligentíssima, apaixonada e revoltada pelo tratamento ignominioso a que foi submetida durante o seu internamento, mesmo nas horas de maior desespero, ela nunca deu mostras de se vergar à vontade despótica dos sábios e da família. Tanto assim que a história rebentou na praça pública, cerca de dois anos depois do internamento, da fuga, do reinternamento e de nova saída rocambolesca do hospital "de doidos" (para alienados) onde Maria Adelaide estava internada. Mas, escondida, em sobressalto permanente, constantemente a inventar "disfarces" e a "escolher asilos inacessíveis", Maria Adelaide chegara a uma situação limite, admitindo que era preciso "gritar para ser escutada", pelo que autorizara o seu advogado, Bernardo Lucas, a dar ao prelo as memórias de manicómio, destinadas à sua defesa em tribunal.


QUANDO, EM MAIO DE 1920, sai para as livrarias Doida não!: documentação psicológica e jurídica, com prefácio e notas de Bernardo Lucas, o escândalo rebenta. 


Maria Adelaide contava a sua odisseia, revelando o seu "crime de amor", e descrevendo as condições terríveis em que vivera. No prefácio, o seu advogado acusa Alfredo da Cunha de ter internado a mulher num hospital para alienados, ali a conservando durante oito meses sem precedência de sentença judicial, nem confirmação de qualquer tribunal, pretendendo, ainda, enviá-la para uma casa de saúde no estrangeiro. 

A resposta de Alfredo da Cunha segue, em curto espaço de tempo, sob a forma do Infelizmente louca!, Resposta documentada ao livro Doida não, atribuído a D. Maria Adelaide Coelho da Cunha, onde o seu nome surge como o de editor, mas os textos não são assinados. 

A obra tem direito a grande campanha promocional. Avalistas de prestígio nacional, cujos depoimentos figuram, parcialmente, no frontispício da obra: o presidente da Associação dos Advogados de Lisboa, Vicente Monteiro; Júlio Dantas, ministro da Instrução Pública; Azevedo Neves, presidente da Sociedade das Ciências Médicas, professor de Medicina Legal e diretor do respetivo instituto, subscreve também a obra e dedicará ao caso Maria Adelaide um relatório de quinhentas páginas, desmontando a vida da senhora até aos mais remotos antepassados. Júlio de Matos, Sobral Cid, Egas Moniz e Bettencourt Rodrigues apoiam o livro numa frase: "Trata-se dum dramático episódio de loucura lúcida que é o tormento das famílias e uma fonte viva de escandalosos pleitos judiciais." E denunciam as "deturpações de verdade e até as falsificações de documentos" que serviram de base ao livro atribuído à infortunada senhora, para quem "irá sempre a nossa entranhada estima, agora inseparável de uma igual piedade pela imensa desgraça que a feriu". 
É aqui que as coisas se extremam. 

A filha e herdeira de Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, a mulher para quem os jornais não tinham segredos, acabará por revelar toda a força do seu caráter insubmisso nas páginas de um vespertino, A Capital, onde, a partir de agosto de 1920 vai assinar, durante quase um ano, as suas cartas, com o antetítulo "O Martírio de Uma Mulher". 
Escreve-as, como sublinhou, "não nas horas de ócio, porque as não tenho, mas nos intervalos do trabalho a que me dedico para ganhar as minhas linhas, pois nunca tive por costume pregar-me com alfinetes". O ambiente onde se encontra escondida é sereno e afetuoso. 
Ao livro do marido irá referir-se, invariavelmente, como o Infeliz-Mente, nome pelo qual o seu advogado também o irá citar nos seus artigos de jornal.




O CASAL PERFEITO, A VIDA PERFEITA. 

Mas como é que um casal da melhor sociedade, tido como exemplar e pertencente à alta burguesia lisboeta, protagonizava um escândalo destes? Maria Adelaide vivera no esplêndido Palácio de São Vicente, à Graça, em Lisboa, e era considerada a anfitriã perfeita das festas que ali se realizavam e que contavam com a presença da melhor sociedade portuguesa de então. A família era tida como um modelo de felicidade perfeita. E, afinal, era tudo mentira? Um ano antes, Maria Adelaide parecera afetar todos os sintomas de uma "neurastenia", tendo-se afastado, por completo, da vida social. E, por fim, desaparecera de casa sem uma justificação, deixando a família mergulhada no maior desespero. Até ter sido encontrada, em 24 de novembro de 1918, viva e de boa saúde, em Santa Comba Dão, onde começara vida nova junto de Manuel Claro. Resumidamente e na descrição sarcástica de Alfredo da Cunha, fugira para trocar um palácio, em Lisboa – um "museu" colecionado por seu marido "que o seu coração transformara num lar" –, por um modestíssimo primeiro andar alugado, em Santa Comba Dão; um homem de cultura e de sociedade, seu marido e pai do seu único filho, por um "serviçal", seu antigo chauffeur; uma requintada posição no topo da pirâmide social da época por uma aldeia onde só convivia com "gente ordinária" e onde se via forçada a executar "trabalhos grosseiros". Só podia ter enlouquecido.


De Santa Comba Dão foi levada para o Porto e internada no então Hospital de Alienados do Conde de Ferreira (hoje Centro Hospitalar Conde de Ferreira), sem atestados médicos que comprovassem a necessidade do internamento. E sem nunca lhe terem sido facultados tratamentos que justificassem o diagnóstico, a menos que um isolamento no pavilhão das criminosas e a proibição de ler os jornais ou saber notícias de fora fossem considerados terapias. Desta instituição Maria Adelaide fugiu com o apoio de Manuel Claro, com quem se começou a corresponder, às escondidas, o qual suportou as despesas e os riscos desta evasão. Viajaram toda a noite e chegaram ao Rossão, na serra da Gralheira (distrito de Viseu), na madrugada seguinte. Foi em casa de um primo de Manuel, que ajudara o casal na fuga para o Rossão, que Maria Adelaide se instalou, sempre com a perspetiva de contratarem um advogado e, conseguido o divórcio, os dois se pudessem casar. Viveram ali dias de grande paz e de felicidade incomparáveis. Mas, a 25 de fevereiro, os polícias a soldo de Alfredo da Cunha e com a conivência do filho do casal, José da Cunha, e dos irmãos de Maria Adelaide, encontraram-na, detiveram-na e, em condições ultrajantes, trouxeram-na para o Porto, voltando a depositá-la no Hospital de Alienados do Conde de Ferreira. Capturados na mesma altura em que Maria Adelaide foi descoberta, Manuel Claro e o primo foram também para o Porto, onde deram entrada na Cadeia da Relação e sem direito a fiança, uma ilegalidade flagrante à luz do direito penal da jovem República. Manuel ali ficou durante quatro anos. O seu primo cerca de dois. Correspondência encontrada no Palácio de São Vicente pelos anteriores donos comprova a interferência direta de Alfredo da Cunha em ambos os processos. Na cadeia, Manuel Claro solicitou, para si e para Maria Adelaide, o apoio jurídico de Bernardo Lucas, o qual conseguiu que Maria Adelaide tivesse deixado o hospício, a 9 de agosto de 1919, para "ir ao médico". Uma saída gloriosa. De um lado, Bernardo Lucas, do outro o governador civil do Porto, perante a estupefacção do hospital em peso.


O "JUGO BIOLÓGICO" DA MULHER. 

Hipócrates, pai da Medicina, afirmara que "toda a vida da mulher é uma contínua enfermidade" e a ciência médica da época poderia ilustrar este aforismo com a vida de Maria Adelaide Coelho da Cunha: menstruações, gravidezes, partos, aleitações eram "catástrofes biológicas" que não terminavam antes dos 45 a 50 anos de idade, absorvendo todas as energias do organismo da mulher. Infelizmente, a vida de Maria Adelaide também terminava aqui, já que o corpo começava a enfraquecer, fustigado por uma série ininterrupta de achaques. Assim, um dos argumentos mais utilizados pelos médicos alienistas portugueses foi o climatério de Maria Adelaide, associado a outras "doenças depauperantes", o qual lhe fizera sofrer um súbito recrudescimento sexual que a impulsionara a quebrar todas as barreiras inibitórias que a educação, a ética, a cultura e o meio social lhe tinham fornecido. Vox populi: a questão resume-se a um afrontoso exercício de poder absoluto. 
Poder de médicos para isolar pessoas, em moldes que parecem ressuscitar uma odiada instituição, o Tribunal do Santo Ofício. Poder de famílias poderosas para interditar membros indesejáveis, com o apoio de alienistas. Poder do dinheiro para comprar todos esses apoios. Poder do Poder para os sancionar. Acima de tudo, este era, acentuadamente, um processo moral, como Bernardo Lucas, o advogado de Maria Adelaide, afirmou peremptoriamente. 
Ela própria repetiria que só por "vingança" se podia explicar a sua estada naquela casa, e "nunca como tratamento". Em seis meses, "nem uma colher de calmante, nem um banho sedativo, nem um douche" lhe tinha sido prescrito. 
Os únicos remédios receitados eram para os intestinos, pois piorara muito desde o internamento devido às péssimas condições em que "me encontro instalada", conforme denunciou. 

Mas a grande interrogação que começa a pairar na cabeça de todos é esta: num país em que as leis autorizavam o divórcio, por que razão ele tinha sido sempre negado a Maria Adelaide Coelho da Cunha?
Recusara-lho o marido. E os parentes mais próximos "porque respeitam as convenções sociais". 
Maria Adelaide pergunta: "E porque não querem o divórcio, querem-me no manicómio o resto da vida?" Por outro lado, não deixa de ser muito curioso o autêntico volte-face que, através da sua defesa literária, Maria Adelaide consegue produzir. Mulher, a caminho dos cinquenta anos, agora pobre e protagonista de uma história "imoral", vai conseguir suscitar o favor do público, numa época em que não era invulgar, nem sequer mal visto, que um marido lavasse a honra com sangue.


E O FACTO É QUE SÓ NO CÍRCULO RESTRITO de amigos do casal persistia a ideia de que Maria Adelaide enlouquecera. 

Evidentemente que médicos e psiquiatras envolvidos continuavam a insistir no seu veredicto. Negar agora, à luz da Ciência, a loucura da senhora, seria uma espécie de suicídio intelectual para quem tinha firmado, em nome da mesmíssima Ciência, pareceres e relatórios que a diagnosticavam como degenerada, tarada, descendente de uma família de psicopatas, incapaz de reger a sua pessoa e os seus bens. Porém, das fileiras da própria Ciência e, até, da Jurisprudência, junto da esmagadora maioria dos que não estavam diretamente envolvidos no caso, já não havia dúvidas de que a Psiquiatria, que promovera tantos benefícios em prol da saúde mental das populações, conquistara, aqui, uma desonrosa e desnecessária referência.

Em carta a Alfredo da Cunha, de 18 de agosto de 1920, o senador Júlio Ribeiro da Silva refuta a "loucura lúcida" como "um paradoxo que os médicos alienistas inventaram". E acrescenta: "Não haverá criminalista capaz de me convencer de que um homem boçal, inculto, grosseiro, sem delicadezas de espírito, nem agudeza de inteligência, nem primores de educação, seja capaz de seduzir uma mulher superior, requintadamente artística e cheia de qualidades."


E conclui: portanto, não se trata de uma doida, nem de um sedutor e não há ciência de Psiquiatria "que me convença" do contrário. Finalmente, o tema dos internamentos nos manicómios vai acabar por subir ao Parlamento, abrindo-se uma frente de batalha. 

De um lado, os que bradam contra "as garras" da opinião pública, "superficial e leviana", ao sabor de uma imprensa interessada na vitória daqueles a quem os pareceres médicos não convêm. Do outro lado, os que evocavam a ditadura científica que abriu as portas a todas as arbitrariedades. Por fim, o Ministro da Justiça acabou por redigir uma proposta de lei que foi apresentar ao Parlamento, a fim de se regularem "os artigos da Constituição" que estabelecem providências sobre o internamento nos manicómios, a fim de se garantir, eficazmente, a liberdade individual. Mas Maria Adelaide Coelho teve de chegar aos 74 anos, lucidíssima como sempre, para que lhe fosse retirado o rótulo de louca-lúcida.



Esse sonho, que foi um lema de vida, foi possível graças aos esforços do filho, com quem ela se voltou a encontrar, só após a morte de Alfredo da Cunha. A partir de então, e com regularidade, ele ia ao Porto para estar com a mãe. Até à morte, Maria Adelaide e Manuel Claro, taxista com ‘postura’ na Rua dos Aliados, permaneceram juntos e tiveram uma vida muito digna, chegando a comprar casa própria, uma pequena moradia com jardim. Manuel sobreviveu-lhe pouco mais dez anos. Nunca casou. Nas palavras de quem os conheceu de perto, "ela foi o grande amor da vida dele". 

*Artigo originalmente publicado na edição 353 da Máxima [fevereiro de 2018]. 

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