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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Esta é a história do Zé, que era muito amado mas que não se deixava ajudar. E que morreu sozinho naquela tenda

Generoso, sorridente, alegre, entusiasta, emotivo, viciado em cinema e teatro, culto. Era também um homem triste. E orgulhoso. Recusava ajuda. Encontraram-lhe esta semana o corpo sem vida na tenda que lhe servia de abrigo junto a uma estação de comboios da linha de Sintra. Esta é a história do ator José Lopes. Correção: esta é a história do Zé, que “tinha um espírito que não era desta época”. “Não ganhava dinheiro, mas estava vivo. Quando participava em algo, fazia-o de corpo e alma. Trabalhava como se estivesse a ganhar um milhão de euros”. Vivia na pobreza e não se sabe exatamente quando morreu


José Oliveira (à esquerda) e José Lopes (à direita) durante a rodagem do filme “Longe”
DR
Faltavam dez minutos para a reserva do jantar. No Rossio, em Lisboa, Mário Fernandes, Marta Ramos e José Oliveira atravessavam a estrada na passadeira, apressados para não falharem a hora marcada no restaurante. Em sentido contrário vinha José Lopes. Marta e Mário já o conheciam, encontravam-no muito pela Cinemateca. Cumprimentaram-se, apresentaram os Josés um ao outro. Era um encontro aparentemente rápido, afinal havia aquele jantar, mas transformou-se numa hora de conversa sobre cinema, teatro, música e também sobre a vida. Ele sabia falar e fazer o tempo passar rápido.
“Era uma enciclopédia: sabia o nome dos filmes, os atores, os realizadores, os técnicos, etc. Tinha uma memória muito afetiva. Era um erudito, tinha uma vivacidade… E desenvolvemos uma amizade em torno do cinema”, conta Mário Fernandes, cineasta. É ao telefone que os três recordam uma série de histórias de José Lopes. Melhor, do Zé.
“Cruzei-me com ele pela primeira vez na passadeira do Rossio”, diz o realizador José Oliveira. Já Marta conheceu Zé quando trabalhava na biblioteca da Cinemateca. “Passava lá a vida. Lembro-me perfeitamente de estar a sair de uma projeção do ‘Era uma vez na América’, ver o Zé e pensar que parecia um extraterrestre. Veio ter comigo e deu-me dois murros no peito e disse que aquele era o último grande filme norte-americano sobre a memória.” E então ficaram amigos.
Mário, Marta e José: são eles que estão a tratar de toda a logística fria a que uma morte obriga. Foram chamados ao Instituto de Medicina Legal e ouviram que Zé, 61 anos, tinha sido encontrado sem vida na tenda onde vivia junto a uma estação da linha de Sintra, procuraram soluções para pagar um funeral mas a Segurança Social apenas lhes garantiram um enterro “num buraco qualquer num cemitério qualquer”. Lançaram uma petição para angariar fundos para um velório em que os “amigos e conhecidos se possam despedir” - e, por fim , querem levá-lo para o Cemitério da Ajuda. “Era importante enterrá-lo ao pé da mãe”, nota José Oliveira.
Nas redes sociais lançaram o apelo para darem ao amigo aquilo que consideram ser um funeral digno. Foi disponibilizado o NIB da filha. Receberam críticas, que lamentam e garantem que o dinheiro foi aplicado exclusivamente nas cerimónias fúnebres. “Tivemos a sorte de encontrar uma agência que aceita o pagamento só daqui a 15 dias, ele só tinha a filha, que ainda agora acabou os estudos e não pode”, explica José Oliveira. “Se as pessoas soubessem as burocracias, as demoras e complicações nos procedimentos dos apoios sociais”, acrescenta Marta, que admite que “haverá alguma responsabilidade do Estado devido à falta de ajudas para pessoas como o Zé”.
Foi um homem do teatro e do cinema. Mas também da música. Foi da cultura. Foi ator, músico, mas também um homem de bastidores. Multitalentoso.
Marta Ramos canta acompanhada à guitarra por José Lopes no lançamento de um livro em 2017
Marta Ramos canta acompanhada à guitarra por José Lopes no lançamento de um livro em 2017
DR
Houve várias tentativas para ajudar Zé, asseguram Marta, Mário e José. “Havia uma situação de fundo que não se conseguia resolver”, assim explica Marta, que tanta vez cantou acompanhada à guitarra por Zé. “Havia muito amor e muita gente que o acompanhou e tentou ajudar. Ele não aceitava.”
Queria trabalhar, não aceitava esmolas. “Era orgulhoso. Recusou muitas ajudas. Foi uma pessoa sacrificada e vítima da sociedade em que vivemos. Claro que os problemas de saúde mental não facilitavam as relação com as pessoas, mas ele era puro. Era muito diferente do padrão e tinha um espírito que não era desta época.” É assim que o descreve José Eduardo Rocha, músico com quem Zé Lopes trabalhou em diversos projetos. “Durante cerca de 15 anos da minha vida ele esteve muito presente. Por circunstâncias da vida, afastámos-nos.”
Para o maestro, que receia que o que aconteceu ao amigo posso vir a ser motivo de instrumentalização, as mudanças sociais tornaram a vida das pessoas “de uma determinada geração mais antiga muito mais complicada.” “O mundo cultural é hoje mais comercial, domina a ideia de querer agradar aos grandes públicos e isso dificulta a situação dos artistas independentes, que vivem em situações bem mais precárias.”

“SABEMOS MUITO POUCO”

A Cinemateca, o museu de cinema bem no centro de Lisboa, era possivelmente dos lugares onde Zé passava mais tempo. “Até fazia a barba lá na casa de banho”, diz Mário Fernandes, lembrando que estes são apenas pormenores de um homem que “marcou todas as pessoas que conheceu” pela sua extrema sensibilidade. “Uma vez passou a noite em minha casa e eu tinha afixado um poster da Lillian Gish [atriz norte-americana com mais de 70 anos de carreira] e começou a chorar”, recorda ainda o cineasta. Esta foi uma das tais noites em que ficaram acordados a conversar.
Mas nas longas conversas Zé pouco falava dos seus problemas, da sua vida além da arte. “Não queria contar. Não queria chatear os amigos. Preferia dar-nos amor do que falar das coisas difíceis. Há muita coisa nebulosa na vida dele. Apesar de sermos dos melhores amigos dele nos últimos anos, ele não queria falar. Sabemos muito pouco”, diz José Oliveira. “Ele queria dar amor às pessoas, não preocupá-las.”
Zé vivia hoje em condições que muitos amigos de outros tempos desconheciam. “Não fazia ideia”, diz Sandra Simões, produtora de teatro, que se cruzou algures no final do século passado com o ator na companhia de teatro O Bando. “Ele estava sempre lá e conversávamos muito, estava sempre muito alegre e bem disposto. Nunca começava uma conversa sem me perguntar se eu e o meu filho estávamos bem.” A última vez em que se cruzaram foi numa manifestação contra os cortes na cultura.
Também a atriz Carla Vasconcelos desconhecia a situação do Zé. “Neste meio vivemos muito intensamente cada um dos projetos e as pessoas com quem estamos nesse trabalho. Quando termina, seguimos os nossos caminhos e acabamos por perder contactos.” Sabe que há umas semanas Zé foi assistir à peça “Gertrude Stein e Acompanhante”, de Win Wells. No final, ficou para falar com as atrizes. “Disseram-me que estava muito magro, muito debilitado.”
Não é certo há quanto tempo a tenda junto à estação de comboios servia de lugar de pernoita para Zé. Porque a casa dele continua a ser a Cinemateca, onde passava várias horas e para onde carregava sempre a sua guitarra. Quando podia ia a eventos culturais. “Ia muitas vezes aos espectáculos e no final falávamos sempre. Estava claramente num estado precário”, diz o ator e encenador Luís Miguel Cintra. “Ainda assim era de uma humildade enorme. Era incapaz de protestar.”
Foi na Cornucópia, fundada por Cintra, que a vida tratou de os fazer encontrar em 1989, levando a cena “Vida e Morte De Bamba”. “Era um entusiasmo maluco pelo teatro. Aliás, ele teve um período difícil em que teve de escolher entre ficar connosco ou ir para outro teatro. Estava nos dois lugares ao mesmo tempo e não conseguia.”
Em 2016, Zé protagonizou “Longe”, realizado por José Oliveira, e convidou Cintra para gravar uma pequena cena. “Foi a última vez que estivemos juntos. Pareciam-me saudável, a equipa de produção também me disse o mesmo, que ele estava muito bem, que estava estável”, diz o encenador. Juntos filmaram uma sequência em que dois ex-companheiros de guerra se encontram num cacilheiro. Depois disso, cruzaram-se de longe na Casa da Achada, um polo cultural em Lisboa.
Nos últimos tempos, Zé era a personificação do artista precário. Muitas vezes aceitava trabalhos mesmo que não fossem pagos. “Não ganhava dinheiro, mas estava vivo. Quando participava em algo, fazia-o de corpo e alma. Trabalhava como se estivesse a ganhar um milhão de euros”, refere José Oliveira. “Muitas vezes aceitava trabalhar em projetos em que não era pago e fazia-os só pelo amor àquela ideia”, acrescenta Mário Fernandes. Deu aulas de dicção, trabalhou em projectos artísticos com presidiários, ingressou em companhias de teatro, participou em projectos de estudantes de cinema só pelo gozo. “Lembro-me de uma vez ter ido 15 dias para Marco de Canaveses para gravar um filme para uma aluna da escola de cinema”, contam.

“ERA O PARADOXO DA ALEGRIA E TRISTEZA”

“Tinha de o ver. Só vendo”, diz Francisco Suspiro quando tenta descrever a presença de Zé Lopes em palco, assim como a voz profunda que enchia uma sala. “Foi genial a forma como parodiou Wagner numa sala cheia de alemães na Expo Hanover.” Foi em 2000 e ambos faziam parte do Ensemble JER, um grupo pensado por José Eduardo Rocha que interpretou um repertório com “instrumentos musicais à séria e outros de brincar”.
Também para Francisco Suspiro foi “uma surpresa absoluta” as condições em que o antigo companheiro de banda vivia. Nos anos 90 e até os primeiros de 2000, estavam juntos com frequência para os ensaios. “Era de uma generosidade tal. Era muito expansivo mas notava-se a tristeza”, diz. “Era o paradoxo da alegria e tristeza.”
José Lopes nasceu a 31 de março de 1958. Estudou na Casa Pia e frequentou o curso de Antropologia Social. Cedo o teatro tomou lugar como prioridade. “O núcleo familiar era complicado e a vida dele está longe de ter sido fácil”, acrescenta Francisco Suspiro sem mais se alongar. Tinha um irmão com o qual não mantinha contacto.
O membros do Ensemble JER estiveram no casamento do Zé, que não muito depois haveria de ser pai pela primeira - e única - vez. Nasceu uma menina. Depois da Expo 2000 a formação do grupo alterou-se e na vida do Zé continuou apenas muito presente Zé Eduardo Rocha. “Tentei ajudá-lo, não aceitou. Quando lhe perguntava, dizia-me que ficava em casa de amigos ou de alguém. Nos últimos anos, ia sabendo dele por interposta pessoa”, diz o maestro.
José Eduardo tinha falado há um ou dois meses com Zé e a filha. Tinham um encontro marcado para breve.

expresso.pt

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