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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A queda de Claude. Da vida de luxo a trabalhador sem-abrigo





No segundo país mais rico per capita do mundo, pode ser mais fácil encontrar trabalho do que casa. Claude Bintner que o diga. Ao fim de mais um dia a trabalhar num armazém, o luxemburguês, de 59 anos, é obrigado a dormir no dormitório de emergência para sem-abrigo. Uma descida ao fundo da escala social, para um homem que já foi quadro de um banco.
É uma linha de autocarro sem paragens. Sai da gare, na capital luxemburguesa, e só pára na chamada “Wanteraktioun” (WAK), um dormitório de emergência para sem-abrigo, perto do aeroporto de Findel, a funcionar apenas de 1 de dezembro a 31 de março. Pouco antes da hora da partida, às 19h05, já lá estão dois homens: Claude Bintner e um idoso, de muletas. Todos os dias, Claude dá-lhe um cigarro. “Ele nem sequer pede, mas eu vejo que ele apanha as beatas do chão, o que eu também já fiz, quando não tinha dinheiro, e não é saudável”, explica o luxemburguês.
Aos poucos vão chegando mais pessoas. Uma mulher e dois homens, mais dois de muletas. Um paquistanês ou indiano carrega um balde cheio de rosas, as que não conseguiu vender. Ao todo, são uma dezena. Há dias em que são poucos mais, há outros em que o autocarro vai quase cheio. Claude chama-lhes “Los Desperados”, como no western spaghetti com o mesmo nome. Num dos bancos vai um rapaz que destoa do grupo, roupas mais limpas que os restantes, mochila às costas, a lembrar um estudante que estivesse a fazer um Interail. Passa a viagem toda a bater na própria cabeça. Ninguém estranha: no dormitório há muitas pessoas com problemas mentais e dependências.

Entrada da WAK, o abrigo temporário para sem-abrigo no inverno. Foto: Pierre Matgé

Vinte minutos depois, o autocarro chega à WAK, um antigo edifício de escritórios da Luxairport cedido ao Governo para acolher a Ação Inverno, uma iniciativa para evitar que os sem-abrigo morram de frio. Os passageiros fazem fila à entrada, à espera de passar pelo detetor de metais e os dois seguranças. “Next!” (“o próximo”), ouve-se. É ali que Claude Bintner dorme ao fim de oito horas de trabalho na Proactif, uma associação que promove a reinserção profissional de pessoas com dificuldades para aceder ao mercado de trabalho. A rotina é sempre a mesma: quando chega à sua vez, Claude levanta os braços para ser revistado e deixa que o segurança lhe revolva a mochila, à procura de álcool, proibido no dormitório, e de armas. Depois, passa por um assistente social da Caritas que verifica se o nome de Claude está na lista dos inscritos para dormir nessa noite. Como trabalha de segunda a sexta, Claude foi dispensado de ir registar-se todos os dias no gabinete de inscrições, em Bonnevoie, a dez quilómetros do abrigo, um passo obrigatório para a maioria. Mas mesmo estando inscrito, “é preciso esperar, é a regra”. A seguir, Claude sobe um lanço de escadas até ao primeiro andar e aguarda na fila que se vai formando no corredor, em frente a um gabinete onde são distribuídos artigos de higiene, para levantar a senha com o número da cama onde dormirá nessa noite. “É aleatório. Vêem que camas estão livres e dão-nos um ticket, e depois lá vamos”, conta o luxemburguês.

Provavelmente, o Estado luxemburguês não quer encorajar este grupo de pessoas a ficar no Luxemburgo.”



Do lado esquerdo, ficam os beliches para a maioria dos sem-abrigo, onde chegam a dormir mais de uma centena de pessoas. Ao lado direito, fica a camarata reservada aos trabalhadores, como Claude. Ali dormem entre 20 a 30 pessoas, todos a trabalhar em situação precária, segundo Charel Schmit, vice-presidente da Caritas, a instituição mandatada para gerir o local pelo Ministério da Família. Em dezembro, o abrigo foi notícia por causa da polémica regra que limita o acesso de imigrantes sem-papéis com temperaturas superiores a três graus negativos. O responsável da Caritas denunciou nessa altura também a situação dos “trabalhadores pobres” obrigados a dormir na WAK. “Era preciso realizar uma cartografia dos sem-abrigo, que o Governo deveria encomendar”, defendeu ao Contacto. “Era importante conhecer melhor a situação desta população que recorre ao dormitório de emergência, nomeadamente os trabalhadores pobres e nómadas”. Há os que “migram através da Europa para aceder ao mercado de trabalho”, mas também quem viva em quartos por cima de cafés no resto do ano, “em situações de alojamento muito precárias”. “Para algumas pessoas, dormir na WAK é uma forma de poupar esse dinheiro durante três meses”, aponta. Mas defende que “a WAK não pode ser uma escapatória para outros sistemas de ajuda que funcionam mal ou não funcionam”, ou para a falta de alojamento. “Provavelmente, o Estado luxemburguês não quer encorajar este grupo de pessoas a ficar no Luxemburgo”. Mas há também quem, como Claude Bintner, não tenha conseguido outra alternativa, apesar de ser luxemburguês e de receber o salário mínimo. “Será que este é o local apropriado para estas pessoas, ou seria preciso pensar noutra possibilidade, um albergue, por exemplo, que estivesse aberto também no resto do ano?”, questiona o responsável da Caritas

Dormir com medo de ser roubado

Claude já tem o número da cama e desce até ao rés-do-chão, onde fica o refeitório. Dois a três voluntários servem fatias de pão, queijo, fumados. Há água quente em termos para fazer sopa instantânea, café e chá. O luxemburguês senta-se sozinho, tal como a maioria dos homens. “Aqui não é um sítio para fazer amigos. Quando alguém fala contigo, é para te pedir cigarros ou dinheiro”. Conta que um dia recusou um cigarro a um polaco - “eu próprio tinha poucos” - e foi ameaçado: “Esta noite, quando estiveres a dormir, vou-te cortar a garganta”. Queixou-se aos assistentes sociais e deixaram-no em paz. “É a este ponto”.
Rafael é espanhol e também dorme na área reservada aos trabalhadores. Foi cozinheiro em Inglaterra, perdeu o emprego, e viaja pela Europa à procura de trabalho. Há três anos que vem passar o inverno ao Luxemburgo. “Em Espanha ainda está pior”, justifica, enquanto prepara uma das sopas instantâneas servidas no refeitório do Findel, a que acrescenta malagueta e coentros, comprados no supermercado, para “dar gosto”, porque “todos os dias o jantar e o pequeno-almoço é igual”. O espanhol conta que começou a trabalhar há dois dias num restaurante, mas ainda está à espera que lhe façam contrato. “Encontrei trabalho, mas isto não serve de morada, não tens direção legal, coisa que não entendo, porque o Governo sabe que estamos aqui”. E mostra uma fotografia que tirou com o primeiro-ministro do Luxemburgo, numa visita recente que Xavier Bettel fez ao abrigo. Diz que gostava de lhe contar algumas coisas, a ele e ao Grão-Duque, “se se sentassem à minha frente, como tu”. E o que lhes diria? “Bom, em primeiro lugar agradecia por não nos deixarem morrer na rua”, responde. “E depois perguntava-lhes se não têm vergonha que um país que é o segundo mais rico do mundo não seja capaz de tratar as pessoas de uma forma mais humana”. Rafael diz que os assistentes sociais que trabalham na WAK “não fazem seguimento da situação social das pessoas e não separam os que têm dependências, como os viciados em heroína”. “Dão-nos comida e cama, para não morrermos. E por isso agradeço-lhes. Mas podia transformar-se a sociedade com tão pouca coisa...”

Dão-nos comida e cama, para não morrermos. E por isso agradeço-lhes. Mas podia transformar-se a sociedade com tão pouca coisa...”

O espanhol tem uma lista de coisas que era fácil mudar no acolhimento dos trabalhadores que dormem no abrigo. O problema, defende, “é que falta senso comum”. “Deixam-nos guardar aqui a mochila e a mala [durante a semana], mas ao sábado temos de as tirar, porque é dia de limpeza”. O que não for retirado, é destruído, dizem os avisos no dormitório. “Não podes imaginar o que é ter de passar o dia todo às voltas, ao frio e à neve, com a mala”. Outra coisa que critica é que, apesar de dormir na WAK há um mês, todas as noites lhe dão uma nova cama, uma nova gilette, uma nova escova de dentes. “É o negócio da pobreza. Ganha-se muito dinheiro à custa desta gente”, acusa. Dois dias depois, Rafael contou ao Contacto que o dispensaram sem lhe pagarem os dias que trabalhou, uma situação que o jornal não conseguiu confirmar.
Sentado noutra mesa está um cabo-verdiano, na casa dos 30, que chegou ao Luxemburgo em criança. Esteve preso uns meses, “por causa de drogas”, e depois ficou difícil arranjar emprego e casa. “Desde aí estou assim, até cair aqui agora”. Agora trabalha na Proactif, a fazer jardinagem, 40 horas por semana, e também é obrigado a dormir na WAK.
Claude Bintner passa pouco tempo no refeitório. Deita-se por volta das 9h, até porque no dia seguinte tem de se levantar às 5h da manhã, para chegar a horas ao trabalho, um armazém da Proactif na zona industrial de Contern, onde é responsável por arrumar e distribuir o material. Para não ser roubado, dorme com a cabeça em cima da carteira e de tudo o que tem, o seu “esconderijo”. Há um cofre onde podia guardar as coisas de valor, mas sai tão cedo que tem medo de não encontrar ninguém que lhe abra a tempo. As roupas estão guardadas no armazém da Proactif, em dois cacifos que lhe cederam, e quando sai, Claude não deixa nada para trás. Antes de sair da WAK, tira os lençóis da cama e deixa-os num cesto à entrada. Depois, acende um cigarro e dirige-se à paragem. Ainda tem de apanhar dois autocarros e um comboio para chegar ao trabalho.

Da banca ao banco de jardim

Não foi sempre assim. Claude Bintner nasceu em 1 de maio de 1960, e quase a fazer 60 anos, diz que já viu “todas as facetas da vida”. Em 2006, conta, ganhava “8.300 euros líquidos”, como administrador de sistemas informáticos no banco BGL. Chamavam-lhe o “Serge Gainsbourg da informática”, por causa dos jeans, a destoar do habitual fato e gravata no setor financeiro, cigarro sempre na mão, como o cantor francês, explica, a rir. Tinha mulher, uma filha, casa, cavalos – a filha faz equitação –, praticava tiro desportivo, tocava guitarra, passava férias onde lhe apetecia. Numas férias nas Seicheles, a filha, então com “oito ou nove anos”, apresentou-o a uma nova amiga como “o meu papá, o Indiana Jones”. “Fazia coisas impossíveis”, ri-se. E bebia. “Começa-se com um Ricard, depois dois, depois comecei a levar álcool para o trabalho, às escondidas. Comprava uma coca-cola e misturava com rum, ia bebendo durante o dia. No fim, já não conseguia sequer refletir sem a minha dose de álcool”, recorda. “Só funcionava – é essa a expressão - quando tinha álcool no sangue”.
Quando o banco descobriu, foi obrigado a demitir-se, para evitar um processo, sem direito a subsídio de desemprego. A partir daí, a vida de Claude entrou em roda livre. “Todos os diretores dos bancos se conheciam. Depois disso, não tinha hipótese”. Na ADEM disseram-lhe que, com 47 anos, era velho demais para encontrar trabalho. Perdeu a casa, a mulher, deixou de conseguir ver a filha, hoje com 24 anos. Fez uma cura de abstinência num hospital na Alemanha. Mas voltou a beber.
Claude conta os episódios da vida por ordem aleatória, à medida que se lembra. Durante um ano e meio, teve um bar de prostituição em Trier, foi ameaçado pela máfia russa, “que queria partilhar os lucros”, e regressou ao Luxemburgo. As dívidas acumulavam-se. “A minha mãe não queria ficar comigo, foi assim que aterrei a primeira vez no Foyer Ulysse”, o único albergue para sem-abrigo da capital que está aberto o ano todo. Um dia encontrou ali o dono de um restaurante onde costumava ir, “quando ainda trabalhava na BGL, no Boulevard Royal”. “O que fazes aqui, o que te aconteceu?”, perguntou-lhe Claude. “Fez falência e abriu outro, voltou a abrir falência, tinha dívidas enormes. Já morreu. Um ex-patrão de um restaurante… Isso acontece a toda a gente, e no Luxemburgo há mais alcoólicos do que se pensa”. Claude acabaria por ser expulso do albergue para sem-abrigo em Bonnevoie, depois de uma discussão com um funcionário.


Dormi uma noite na morgue, em Bonnevoie, ao lado de um morto, porque havia aquecimento.”

Durante “oito meses e meio”, viveu na rua. “Não havia mais opções, deitava-me no passeio, e pronto”. Nesses meses, Claude dormiu em sítios estranhos, alguns assustadores. “Dormi uma noite na morgue, em Bonnevoie, ao lado de um morto, porque havia aquecimento”. Foi o guarda que um dia lhe disse: “Deixei a porta aberta para ti”. Nessa noite, admite que não pregou olho. Dormiu na Charly Gare, com outros sem-abrigo, mas de manhã “vinha a equipa de limpeza, a ameaçar com baldes de água”. Nas entradas dos prédios, “as pessoas ameaçavam chamar a polícia”. Passou horas na catedral, “apesar de não ser crente, só para estar ao calor”. O álcool continuava a ser o fiel amigo. “Só conseguimos suportar a vida na rua bebendo. Muita gente não percebe isso, e diz: é um vagabundo, para o álcool tem dinheiro, para o resto não tem. Mas a primeira necessidade na rua é ter álcool, para não pensar, para suportar a miséria”.
Um dia, em desespero, foi pedir ajuda a um posto da polícia. “Não aguento mais, não podem encontrar-me um alojamento, um sítio para dormir?’. Dois polícias pegaram em mim por baixo dos braços e puseram-me na rua”. Claude perguntou: “Se eu vos der uma bofetada, levam-me para Schrassig [prisão], para poder dormir?”. “Não, vamos bater-te”, ter-lhe-ão respondido. Só depois é que dois agentes saíram da esquadra e o meteram num carro. Levaram-no a um ‘foyer’ em Esch, de onde seguiu para o Centro Hospitalar Neuro-Psiquiátrico (CHNP), em Ettelbruck, onde ficou internado um ano e meio, para fazer uma cura. Com a ajuda da Maison Sociale, o gabinete de apoio da autarquia de Ettelbruck, viveu três meses num quarto. Foi também com o apoio do assistente social em Ettelbruck que conseguiu trabalho na Proactif, em dezembro passado. Mas se arranjar trabalho foi difícil, encontrar casa parece impossível. “Não é normal”, critica Claude. O assistente social da Proactif explica ao Contacto que tentaram encontrar-lhe um quarto numa residência para trabalhadores, “mas estava tudo cheio”. A maioria do alojamento social está a rebentar pelas costuras. “O Fond de Logement tem uma lista de espera de cinco anos”, diz o assistente social. Claude ainda esteve a viver duas semanas na Pousada da Juventude, em Clausen, a pagar 25 euros por noite. A WAK foi a última hipótese.
O Contacto tentou ouvir o assistente social da Proactif e da Maison Sociale de Ettelbruck. Ambos recusaram responder às questões do jornal, alegando segredo profissional
erro de Descartes
Claude Bintner estudou matemática, numa altura em que ainda não havia cursos de informática, e leu Descartes, uma das suas embirrações. “Ele também era matemático e filósofo, e o que escreveu era muito racional e muito claro, muito lógico. Exceto no fim, quando ele diz: ‘Deus deve existir, senão não poderíamos imaginá-lo’, o que é completamente ilógico para mim”.
Que não basta imaginar uma coisa para que esta seja verdadeira, parece evidente: mesmo um sonho modesto, como ter um quarto a que chamar seu, ainda não se concretizou. “O Luxemburgo só reconhece a classe superior, não os que estão em baixo. Esse é o maior problema no Luxemburgo”, diz Claude. “Onde está o dinheiro? Há demasiadas diferenças entre ricos e pobres”.
Não ter casa destabiliza-o. O pior são os fins de semana. A WAK fecha às 9h da manhã e só reabre às 19h, e ao sábado e domingo Claude é obrigado a vaguear nas ruas, na estação de comboios e nos cafés, e acaba por beber. “Ando por aqui [na gare], porque há aquecimento. E vou ao café, mas não posso ficar lá eternamente”.
Se tivesse uma casa, “podia ver televisão, ouvir música, em vez de estar sempre em lugares públicos. Refletir um pouco, ver um filme, é tudo”. É tudo e não é pouco. Há coisas básicas em que não se pensa quando nunca se viveu na rua. “Uma coisa muito simples é ir à casa-de-banho, paga-se 70 cêntimos, na gare.” Carregar o telemóvel é outro problema. Durante a semana carrega-o no trabalho, mas ao fim-de-semana é difícil. Na estação de comboios, as tomadas nas salas de espera estão desligadas. “A não ser a do cais 4, talvez porque se esqueceram de a desligar. Talvez agora, depois de ouvirem isto, a desliguem”, ironiza. Faz frio no cais, numa sala de espera em vidro, sem aquecimento, no meio da plataforma. Num dos dias em que o Contacto acompanha Claude, estão menos nove graus.

Foto: Sibila Lind

Sentado num banco da estação, passa uma pessoa que o conhece e vem cumprimentá-lo – um português com quem trabalhou em tempos, na Sodexo. Às vezes, conta, cruza-se com colegas do banco. “Houve mesmo um informático da BGL, que eu conhecia bem, que me deu vinte euros”.
Para almoçar, ao fim de semana, Claude vai à cantina da Ação Inverno, em Bonnevoie, gerida pela Cruz Vermelha. Faça chuva ou faça sol, há sempre fila cá fora, numa entrada que não é coberta. Mesmo quando há apenas uma dezena de pessoas à espera, demoram quase meia hora a entrar, porque é preciso passar pela revista dos seguranças, no interior. Às vezes há discussões. “É um meio de que não gosto, tive más experiências, há muito toxicodependentes”, diz Claude.
Perto dali, fica o Bistrot Courage, um espaço para sem-abrigo, na rua du Dernier Sol. “É uma designação exata”, brinca Claude, a olhar para a placa com o nome da rua, “quem está aqui chegou mesmo ao último andar”. Claude não gosta de lá ir, porque quase nunca há lugar sentado, “ou então fica-se à porta”. O luxemburguês acaba por passar a maior parte do dia num café português, perto da Gare. “Eles conhecem a minha situação e aceitam-me”. Quando regressa à WAK, está completamente embriagado.
Num sábado em que o Contacto o acompanhou no regresso ao dormitório, tropeçou à entrada e magoou a cara. Um português ajuda-o a levantar-se e a passar à frente dos que estão na fila. Com a cara a sangrar, Claude espera que o segurança o reviste. “Claude, consegues segurar-te, estás bem?”, pergunta o guarda. O segurança diz-lhe para se apoiar com as mãos na mesa, enquanto lhe revista o saco. É a regra. Só depois é que Claude recebe primeiros-socorros.

Foto: Sibila Lind

Sempre-em-pé

Domingo, “ça ne va pas”. Claude está visivelmente desesperado. Tem ataques de choro, tenta ligar à irmã, com quem mantém contacto, diz coisas incongruentes. “Levanta-te, Claude, levanta-te!”, repete alto. “Às vezes acho que tento cair ao chão só para poder levantar-me de novo. Não sei se quero provar alguma coisa a mim mesmo”. Admite que já pensou suicidar-se, fala numa tentativa no ano anterior, quando estava na WAK. Mas na segunda-feira vai trabalhar, como todos os dias. “O meu psiquiatra no CHNP dizia-me: ‘Senhor Bintner, o senhor é um ‘Steh-auf-mensch’ [um sempre-em-pé, em alemão], um daqueles bonecos com fundo redondo. Foi isso que o psiquiatra me disse: ‘é um sempre-em-pé, empurram-no e volta a levantar-se’”.
No armazém situado na zona industrial de Contern, às 7h da manhã, a azáfama é grande. Há homens que vão desmontar caravanas num parque de campismo, outros vão assentar azulejo, outros fazer pintura em casas de privados, outros ainda desmontar os estores de uma casa. Claude está na oficina que distribui as ferramentas de que as equipas precisam. “Sou o ‘big boss’”, brinca. Alguém pergunta pelas chaves de uma camioneta. “Keng Ahnung”, não tenho ideia, responde Claude, que ainda está a aprender onde estão as coisas. Luís, um português que trabalha na oficina, vai orientando o luxemburguês: explica-lhe onde fica uma chave de fendas, uma bata de pintor.

Às vezes acho que tento cair ao chão só para poder levantar-me de novo. Não sei se quero provar alguma coisa a mim mesmo.”

A Proactif tem vários locais, mas só em Contern trabalham 57 beneficiários de contratos de reintegração profissional, que podem durar até dois anos. Recebem o salário mínimo não qualificado. No fim, só 20% encontra trabalho no mercado normal, segundo dados da associação. Um dos funcionários explica que são tolerantes. Os “beneficiários” podem faltar, se avisarem a tempo. Não é segredo para ninguém que Claude é alcoólico. Já lhe aconteceu ter bebido demais e não conseguir ir trabalhar, conta. “Recebi um aviso”.
Às 16h30, o luxemburguês pica o ponto e faz o percurso inverso: primeiro um autocarro até à estação de Pfaffenthal/Kirchberg, depois o funicular, a seguir o comboio até à Gare Central. Chega à estação por volta das 17h30, mas tem de fazer tempo até serem horas de a WAK abrir, às 19h. Compra “a sua garrafinha” de aguardente, “para relaxar”. “Um bom dia é quando estou ocupado o dia todo, compro a minha pequena garrafa, como alguma coisa, e depois durmo. Para mim é um bom dia, não peço mais. Só me falta um alojamento”.
Admite que cometeu “erros”. “Tive escolha no passado. Foi nessa altura que devia ter aproveitado e seguido outro caminho, mas foi este que segui”. Na WAK, aprendeu algumas palavras árabes, “porque há lá muitos”, e há uma que repete muitas vezes. “Há uma expressão que é só uma palavra, mas quer dizer muitas coisas: ‘Kismet’, o destino que recebemos na vida”. Se a vida fosse como nos filmes, e pudesse voltar atrás, com o mesmo salário e regalias que já teve? “Já não tenho as mesmas competências que tinha, o álcool fez-me perder muitos conhecimentos”. Hesita. “Precisaria de muita força, não sei se ainda tenho força suficiente. Já me levantei tantas vezes, e chega a uma altura em que uma pessoa diz: ‘já chega’”.
Em meados de fevereiro, Claude deixou de conseguir ir trabalhar. Disse ao Contacto que tinha pensamentos suicidas. Em março, foi internado num hospital, onde faz atualmente uma cura de desintoxicação. Continua sem ter casa.

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