A Catedral de São Paulo, na cidade belga de Liège, foi fundada no século X. Como seria normal esperar de um local de culto católico, ela está repleta de representações de homens e mulheres da história -bíblica ou não- do cristianismo. No entanto, conforme você chega na parte de trás do púlpito, uma escultura de mármore branco impressionantemente bela atrai o olhar: um belo jovem em agonia. Que ícone venerável da igreja pode ser este? Um mártir? Um discípulo? Ou será que é um anjo? |
Ganhou um doce quem respondeu o último, mas este anjo é notório, desprezado... caído. Parece que existe um pecador, e bem significativo, no meio dos santos. Ele é Le Génie du Mal (O Gênio do Mal), instalado na catedral em 1848.
A escultura é geralmente conhecida em português como o Lúcifer de Liége. Como em muitas obras de arte cristãs, o tema é circundado por uma mandorla, uma espécie de auréola de com forma oval que representa o brilho das nuvens celestiais que serve para enfatizar a santidade geral daqueles retratados. No entanto, neste caso, é uma espécie perversa de trompe-l'oeil.
Esta mandorla é um par de asas articuladas como as de um morcego.
Nu, exceto por um pano enrolado nas coxas, logo fica claro que, além de ter todas as melhores melodias, o Diabo também tem um corpão mais do que aceitável, apesar de estar situado no púlpito de uma catedral. Mas como diabos o Diabo foi parar em uma catedral?
A ideia ali era fantástica: que a beleza por si só não implica bondade, que o julgamento de alguém não deve ser cegado pelo fascínio do esplendor físico. E quanto mais próxima a inspeção, mais a verdadeira essência do assunto é revelada: o diabo está nos detalhes. Os lindos cachos de cabelo revelam um par de chifres; a verdadeira natureza da besta.
Ah... uma única lágrima escorre pelo lado esquerdo do nariz. A expressão é de horror, talvez o pavor que vem com a derrota, talvez o pânico que chega com a expectativa de um castigo iminente, talvez até mesmo a terrível dor que vem com a culpa e o remorso.
O lado esquerdo também tem sua razão pois é visto, na religião, de forma negativa, como o lado das trevas.
No quadril, o Diabo segura um cetro e uma coroa quebrados. Suas mãos estão acorrentadas. O pretendente perdeu a posição que ansiava, o poder que cobiçava.
E a seus pés acorrentados está a outra metade do cetro e uma maçã. Há uma mordida neste fruto proibido, nos lembrando da traição do Éden e de nossa própria queda e expulsão do paraíso.
Certamente alguém quis dar uma lição aqui, mas para muitos engendra uma certa simpatia pelo Diabo que certamente não era a intenção. Na verdade, a ambiguidade erótica da escultura foi a causa de muitas discussões nos mais de 150 anos em que esteve in situ.
No entanto, há uma surpresa nessa história: Le Génie du Mal é o substituto de uma outra escultura colocada antes, que foi considerada simplesmente sublime demais para representar o Diabo, uma distração demais para as garotas locais que ficariam boquiabertas com Lúcifer em vez de ouvir sermões.
A estátua que vemos hoje foi esculpida por Guillaume Geefs e o talento para o mármore era coisa de família, pois a encomenda original foi para seu irmão, Josef, quando Guillaume foi responsável apenas pelo púlpito.
A obra de Josef, L'Ange du Mal (O Anjo do Mal), foi erigida em 1843 e causou tumulto imediato. Ela foi removida depois de apenas um ano e hoje está exposta no Museu Real de Belas Artes de Bruxelas. Na foto logo abaixo você vê fotos justapostas das duas obras para que possa decidir por si mesmo qual é a afronta mais descarada às nossas percepções do bem e do mal.
Se Guillaume conseguiu ou não reduzir o fascínio sedutor do original, depende do gosto. A obra anterior certamente mostra mais carne e há menos iconografia diabólica nele, o que, tirando as asas, o deixa mais parecido com Adônis do que com Belzebu.
A obra substituta se refere mais amplamente à queda de Lúcifer e ao tema da punição, para não mencionar a adesão à academia. Irreverência à parte, ele faz seu trabalho com tal emoção que, para muitos, continua difícil associar totalmente essa estátua à personificação do mal, o anjo caído Lúcifer. Talvez as autoridades eclesiásticas da catedral daqueles anos deviam ter contratado escultores mais medianos ou quem sabe poderiam ter insistido em algo um pouco mais ... medieval.
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