Manuel Carvalho Da Silva | Jornal de Notícias | opinião
Os exercícios de convergência que o PS/Governo e o PSD vêm concretizando indicam-nos que, provavelmente, estamos a caminho de sermos governados pelo centrão político.
A forma e o tempo da sua expressão estão ainda indefinidos, o que facilita as manobras dos envolvidos na empreitada, no quadro da aproximação às eleições presidenciais e autárquicas. O argumento da necessidade de se "unirem esforços para garantir a difícil travessia da crise" é atraente como ideia de senso comum e o centrão de interesses, que viveu uns anos incomodado com uma governação um pouco mais à esquerda, jamais abdicou do objetivo de dispor de um poder que lhe corresponda plenamente.
Os impactos da pandemia puseram a nu problemas estruturais e vulnerabilidades que Portugal acumulou; evidenciaram a necessidade de se reconfigurar o perfil de especialização produtiva e de se reterritorializar a provisão de bens necessários às comunidades; expuseram as misérias da precariedade, a injustiça e crueldade com que são tratados grande parte dos trabalhadores; tornaram evidente que o Estado deve dispor de meios e poder efetivo para ser ator determinante em muitas destas reorientações. As respostas efetivas a estes problemas implicam alterações significativas na utilização da riqueza, na estrutura e controlo de poderes e para isso o centrão não está disponível.
Na área do trabalho e do emprego, a herança que esta crise nos vai deixar provocará um lastro ainda mais pesado que aquele que herdamos na crise anterior. Ora, como se sabe, algumas medidas de combate à austeridade e reposição de rendimentos, adotadas nos primeiros anos da anterior legislatura, vingaram porque estavam plasmadas em acordos entre o PS, o BE, o PCP e os Verdes. Na altura o centrão engoliu em seco porque a maioria política formada à esquerda surgiu consistente, mas manteve-se intacto (com a proteção do presidente da República) e rapidamente fez barragem às medidas legislativas que visavam atacar a precariedade, repor equilíbrios de poder e de distribuição de riqueza entre o capital e o trabalho, e dinamizar a negociação coletiva. Hoje, passado o período de elogios aos trabalhadores pela sua abnegação e empenho na resposta à pandemia, vemos um mundo do trabalho carregado de subjugações, de desproteção da saúde de imensos trabalhadores, de violações de direitos, de injustiças que ampliam a pobreza.
O centrão político prepara-se para manipular os medos que as pessoas sentem perante a desconjunção da economia, as ameaças à saúde e a impossibilidade de termos uma noção do tempo em que continuaremos prisioneiros, para não permitir reparações de perdas que os trabalhadores e o povo sofreram e vão sofrer. Esse foi o sinal deixado pelo PS e pelo PSD na discussão e votação do Orçamento Suplementar. Esse é o sinal dado pela indicação de Francisco Assis para presidente do Conselho Económico e Social, a instituição mais centrão do país. E nos últimos dias foi anunciada a convergência entre os dois partidos para a machadada final na regionalização, quando é tão necessário organizar poderes dinâmicos, na escala regional e noutras dimensões infranacionais, para se implementar uma nova industrialização com emprego qualificante e melhor utilização dos territórios.
As vulnerabilidades não podem ficar escondidas e têm de ser resolvidas.
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