A DGS olha para o surto de coronavírus na Austrália, onde o inverno já chegou, como exemplo do que pode acontecer no hemisfério norte dentro de meses. Cientistas australianos garantem ao SOL que o novo surto não tem a ver com o inverno, mas com sucessivos erros.
Nem ultrapassámos o nosso primeiro surto de coronavírus, mas já se receia o próximo. Na ausência de uma solução, como uma vacina eficaz, vamos estar a entrar e sair de confinamento nos próximos meses? Com tantos infetados assintomáticos, como controlamos tantos casos que não conseguimos ver? É de esperar uma segunda vaga? E será que essa segunda vaga estará ligada à sazonalidade? Em busca de respostas, a Direção-Geral de Saúde (DGS) tem os olhos postos na Austrália, que enfrenta um súbito aumento na taxa de novos casos, quando parecia que já tinha a situação sob controlo. É que no «grande país de observação», como descreve Graça Freitas, que tem alguns dos dados mais robustos no hemisfério sul, o inverno já chegou.
Apesar da sugestão de que a pandemia poderá acelerar com a diminuição da temperatura e aumento da humidade, à semelhança de outros vírus transmitidos por via aérea, cientistas australianos mostram-se convictos de que não é isso que motiva o novo surto no país. Ou seja, a haver um possível aumento dos novos casos em Portugal após o verão, não se pode deitar as culpas na meteorologia.
«O alastrar não é devido a nós estarmos no inverno», garante ao SOL Ian Mackay, professor de Virologia na Universidade de Queensland. «Apesar do vírus poder persistir mais tempo no ar ou em superfícies no inverno – algo que não provámos ainda –, o motor da pandemia são pessoas infetadas que infetam pessoas suscetíveis, que infetam mais pessoas, etc».
No caso australiano, isso foi potenciado por «quebras na gestão governamental (por exemplo, medidas de quarentena inadequadas na chegada de passageiros internacionais) e do relaxamento das medidas de isolamento social», afiança John Mathews, epidemiologista da Universidade de Melbourne.
Surtos e trabalho de detetive
Mas, afinal, o que está a passar-se na Austrália? No coração do problema está o surto no estado de Vitória, onde na sexta-feira foi registado um recorde de 428 novas infeções – no resto do país foram detetadas apenas 10. Isto quando os cerca de cinco milhões de habitantes de Melbourne, capital do estado, voltaram ao confinamento em inícios de julho.
«Não vimos nenhum impacto ainda», lamenta Ian Mackay. De qualquer modo, o cientista australiano mostra-se esperançado de que as medidas de isolamento consigam baixar o número de novos casos em Vitória. «E porque tem havido tantos testes rápidos a serem feitos (18,492 testes por 100 mil vitorianos, um número world-leading), nós esperamos ver essa tendência emergir em tempo real», acrescentou.
Importa reflectir em como é que Melbourne chegou a este ponto. Entre o início de maio e finais de junho, a Austrália parecia ter controlado a pandemia como Portugal nunca conseguiu: nesse período, não ultrapassou os 30 novos casos diários, enquanto Portugal tinha centenas. E mesmo esses poucos casos australianos «foram devidos a casos importados», adianta Mackay.
A Austrália, que à semelhança da vizinha Nova Zelândia desfruta de um certo isolamento geográfico e de baixa densidade populacional, diminuiu tanto as infeções que se pôde dar ao luxo de usar uma abordagem caso a caso, ou seja, quebrar cadeias de transmissão paciente a paciente. Contudo, o surto de Melbourne veio baralhar as contas australianas.
«As causas da epidemia vitoriana não são completamente conhecidas, mas ‘fugas’ na quarentena de viajantes parecem ter tido um grande papel», considera Mackay. O súbito ressurgimento da doença sugere que, algures, havia cadeias desconhecidas, com infeções assintomáticas ou ligeiras a borbulhar debaixo da superfície – um aviso contra o excesso de confiança.
É uma preocupação que se estende para lá de Vitória. Apesar de já haver barricadas policiais nas fronteiras com o estado, permitindo somente viagens essenciais, esta semana surgiram três casos misteriosos nos subúrbios de Sydney, na vizinha Nova Gales do Sul. Tratam-se de pessoas que não viajaram recentemente, nem entraram em contacto com nenhum caso conhecido.
«Pode simplesmente querer dizer que essas ligações ainda não foram feitas pelas equipas de rastreamento, que estão extremamente esticadas», sugere Mackay. «Também é possível que as ‘brasas’ deixadas por casos presintomáticos tenham ateado novos fogos».
«Obviamente, ficamos preocupados quando encontramos casos que não conseguimos rastrear, porque significa que falhámos uma cadeia», admitiu a responsável estadual para a Saúde, Kerry Chant. É que, entre os restantes casos encontrados recentemente em Sydney, a maioria tem sido ligado a um surto no Crossroads Hotel, no início do mês, que obrigou milhares de pessoas a isolarem-se.
Os detetives encarregues da investigação usaram análises genómicas para verificar que o vírus vinha de Melbourne. Eventualmente, acabaram por identificar a origem num trabalhador do transportes de mercadorias, que não tinha sintomas, e esteve em Sydney numa festa com colegas de trabalho, a 3 de julho, no bar do Crossroads Hotel – três colegas terão ficado infetados, dando início a cadeias próprias.
«Erros humanos acontecem, é por isso que ocorrem surtos e epidemias», comenta Mackay. «Mas um patogéneo oportunista como o SARS-CoV-2 vai explorar esses erros sempre que acontecerem».
Claro que uma investigação tão meticulosa nunca seria possível, neste momento, em Portugal. «O rastreamento torna-se mais complicado quando os números de casos são grandes. Torna-se impossível em cenários onde a epidemia está fora de controlo», quando há demasiadas potenciais fontes de contágio, nota John Mathews. «É mais útil no início de um surto, como o rastreio de chegadas do estrangeiros nas primeiras semanas do surto australiano». Em Portugal talvez volte a ser uma abordagem eficaz, mas até lá é preciso baixar a taxa de transmissão.
Contudo, mesmo aí, o risco de um ressurgimento: por mais que se investiguem cadeias, pode haver buracos causados por pacientes assintomáticos ou com sintomas ligeiros. Face a isto, o Governo australiano, de Scott Morisson, garante que a Austrália não consegue voltar ao confinamento geral, optando por confinar as áreas mais afetadas à medida que surgem surtos, como em Melbourne – algo semelhante ao feito pelo Governo português nos arredores de Lisboa.
Abordagens à Pandemia
«Esse é o real dilema que a Austrália enfrenta», considera Mathews. «Não é claro que confinamento localizado e outras medidas sejam suficientes para suprimir o vírus a longo prazo. Mas o país está decidido a tentar essa via». Portugal, entretanto, irá assistir com atenção e tomar nota dos resultados.
Entretanto, já é possível tirar algumas conclusões. «A Austrália mostrou que até jurisdições sem litoral podem eficientemente fechar as suas fronteiras e parar o tráfego de viajantes infetados», considera Ian Mackay – tirando o desastre do Crossroads Hotel, que envolveu uma profissão essencial, os bloqueios de estradas parecem estar a funcionar. Até com a dificuldade adicional de serem decididos a nível local: na Austrália, os estados gozam de grande autonomia, como no Estados Unidos, cujo Estado é menos centralizado que em países como Portugal.
É uma situação que tem potencial para criar conflitos entre os vários níveis de poder – até em Portugal vimos isso, por exemplo, quando o Presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, disparou críticas contra a Direção-Geral de Saúde e o Ministério da Saúde. «O patamar para se declarar o confinamento local parece variar na Austrália. Alguns parecem mais ou menos prontos para premir o gatilho», menciona o cientista da Universidade de Queensland. «Seria preferível que agíssemos como nação e não como jurisdições independentes».
Aprender com os Vizinhos
Enquanto Portugal tira lições da Austrália, os australianos olham para os seus vizinhos da Nova Zelândia, que parecem ter praticamente erradicado a covid-19: já passaram 77 dias desde que foi registado o último caso de transmissão comunitária. Desde meados de junho que os neozelandeses até podem dar-se ao luxo de ir a um estádio, para assistir a um jogo de rugby no meio de milhares de outras pessoas, com poucos receios de contrair o vírus.
«A Nova Zelândia agiu excecionalmente rápido», salienta Mackay. Além disso, beneficiou «do seu isolamento enquanto estado insular e do tamanho relativamente pequeno da sua população», concorda Mathews, em completa sintonia com o seu colega. «Como a Austrália e outros países que responderam cedo, eles tiveram menos casos para conter no início e tiveram sucesso em virar a maré da pandemia», continua Mackay.
Então, por que razão a Nova Zelândia teve tanto sucesso e a Austrália ainda enfrenta estes surtos? «Eles escolheram a eliminação do patogéneo – remover o vírus da sua região e fechar as suas fronteiras nacionais a todos exceto cidadãos que regressavam. A Austrália teve uma abordagem parecida, mas escolheu o caminho para a supressão do vírus, não eliminação», explica o cientista da Universidade de Queensland. Além disso, a Austrália «teve azar no facto de que houve falhanços iniciais no cumprimento com algumas medidas de controlo chave», diz o epidemiologista da Universidade de Melbourne.
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