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segunda-feira, 20 de julho de 2020

HISTÓRIA - D. SEBASTIÃO, CRIANÇA SUICIDA


Ainda antes dos dez anos de idade tive conhecimento a existência de um rei, chamado D. Sebastião, não por meio de qualquer livro infanto-juvenil, mas pela voz de um cantor chamado José Cid , autor de um disco de rock experimental, qualificado por já não sei que revista americana, como um dos melhores cem álbuns de sempre.
Isto será suficiente para fazermos uma pausa e respirarmos fundo. Qualquer coisa se passa aqui. Depois de D. Afonso Henriques, o heróico mata-mouros e fundador de Portugal, e antes de D. João V, o histrião de Mafra e o gastador de ouro, nenhum outro rei beneficiou de tão longa fama, e atormentou durante tanto tempo as cabeças das crianças portuguesas, estando por todo o lado, nos ditos populares, nos currículos escolares, nos filmes de eruditos realizadores de cinema, nas canções dos festivais, nas canções revolucionárias. Só os computadores e a invasão da música anglo-americana terão definitivamente empurrado para fora da cultura popular portuguesa esse «cadáver adiado que procria». Cadáver adiado que procria?
Digamos que Fernando Pessoa, autor desta descrição poética do rei, estaria eventualmente de olho no prémio literário, ao redigir os por vezes lamentáveis versos de A Mensagem. Convenhamos, um cadáver a procriar não é uma imagem bonita, e não estou sequer seguro de ser uma descrição muito útil. José Saramago, menos dado a fantasias, e mais atento aos efeitos pirotécnicos da polémica literária, ao escrever esse primeiro grande manifesto do seu estilo, a Viagem a Portugal, chamou de tudo a D. Sebastião: «mentecapto, degenerado, autoritário». 

Apesar de tudo, simpático, pois vários médicos publicaram ao longo do tempo, diversos estudos, onde o rei é apresentado como paranoico, neuropata, monomaníaco e débil275. Para se ver o que pode custar a uma pessoa não ter sucesso na vida.
Quando a história me começou a interessar, com o seu misto de fantasia e literatura, o desastre de Alcácer Quibir tomou lugar destacado. O famoso retrato de D. Sebastião era uma constante dos manuais escolares e, pelos quinze anos, a professora de história de arte levou os seus alunos (onde se encontrava o autor destas linhas) ao Museu de Arte Antiga de Lisboa. Estive diante da pintura de Cristóvão Morais, como se na sala de familiares afastados e muito ricos, impressionado pelo focinho do cão de caça afeito à cintura do monarca, a armadura fabulosamente trabalhada, com punhos e gorjeira de onde saem folhos, a mão esquerda na espada, e sobretudo a cara do rei, qual menino gordinho, louro, balofo e mimado. Aquela juvenil figura era intrigante e os filmes do realizador Manuel de Oliveira agravaram o problema, quando no fim da adolescência vi a invocação da batalha de Alcácer Quibir, com um cavaleiro vestido de lata, a bandeira à ilharga: imaginemos D. Quixote embriagado, a cambalear num cenário de fumo e corpos decepados. O facto de o ator ser também protagonista em novelas de qualidade duvidosa causou ruído suficiente para a cena ser mais inspiradora de riso do que da comoção trágica. Num outro momento do filme, mais perturbador, um jovem oficial do exército português em plena guerra de África, em abril de 1974, morre numa emboscada, delirando, e o espectador chega a sentir uma certa vergonha alheia quando D. Sebastião desce das nuvens, vindo molhar a espada no sangue derramado pelo jovem soldado.
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Créditos: Wikimedia Commons.
Talvez os portugueses tenham especial talento para transformar as tragédias em comédias, o que é uma virtude. Conta-se que nos campos de Alcácer Quibir, depois da batalha, havia dez mil guitarras, um manifesto exagero, após uma noite de vinho e cantoria. Um bom morrer, a vida honra, diziam os manuais de cavalaria espiritual tão amados por D. Sebastião, e há diversos relatos sobre as palavras edificantes do rei, no derradeiro incitamento à batalha. Se é para morrer, morramos com estilo. A soldadesca parecia ter assumido o espírito com antecedência, passando a noite a beber e a cantar; por certo, tinham uma ideia bem diferente do que é morrer com estilo. Figura enigmática, Sebastião arranjou um sarilho em torno de si quase maior que Portugal. Ainda recentemente, em dezembro de 2011, um jornal de grande tiragem, afirmava triunfante a publicação de um livro, onde se apresentavam «provas» sobre o facto de D. Sebastião ter «sobrevivido à batalha de Alcácer Quibir, reaparecendo no ano de 1598 em Itália, onde foi mais tarde preso em Veneza, Florença e Nápoles, com a cumplicidade dos espanhóis».
Impressionante, é o mínimo que se pode dizer sobre esta tendência para ressuscitar o cadáver. Sem dúvida, o rei tinha uma natureza complicada. Ainda adolescente, saía altas horas de madrugada acompanhado do seu pajem, D. Álvaro de Meneses, caminhando por praias desertas, amando a solidão da noite. Qual Hamlet, príncipe de Portugal. Na verdade, D. Sebastião jogou tudo e tudo perdeu, atirou a sua juventude para a guerra, mas não se furtou ao combate, numa época onde se considerava já ridículo o rei acompanhar o exército em batalha. Resultado: ninguém acreditou que tal fosse possível. Quando se procura o sucesso com muita força, às vezes custa muito acreditar no desastre.

O jovem

O pai de D. Sebastião, João Manuel, e filho de D. João III, muito dificilmente seria rei de Portugal, mas tornou-se príncipe herdeiro depois da morte dos seus quatro irmãos mais velhos. Contudo, João Manuel morreu pouco antes do nascimento do seu filho Sebastião. A mãe de Sebastião, Joana de Áustria, usou luto severo depois da morte do esposo. Sempre de véu nas audiências públicas — recato de tendência muçulmana a que a corte portuguesa demorou séculos a desabituar-se — comia em mesa baixa, como os humildes secretários e escrivões do rei, deixou de tocar a viola (uma paixão da juventude) e passou a estar toda empenhada na fundação de conventos. Depois da morte de D. João III — o avô do príncipe Sebastião — a educação do herdeiro foi disputada pelo irmão do rei morto, o cardeal D. Henrique, promotor dos Jesuítas e defensor da integridade portuguesa. Com efeito, cinco dias depois da morte de D. João III, foi jurada herdeira a criança de três anos e meio, a 16 de junho de 1557, mas garantida a educação do pequeno Sebastião pela rainha viúva, D. Catarina de Áustria.
O ambiente não devia ser o mais animado, apesar dos espelhos de Veneza, das almofadas da Holanda e dos esmaltes de França. Mortos todos os nove filhos de D. Catarina, e a maioria ainda antes dos catorze anos, e encarregue, já velha mulher, sobretudo para os padrões da época, do governo de um reino com numerosos territórios além-mar, em claro crescimento da burocracia imperial e dos problemas comerciais. Francisco de Borja, antigo duque de Gandía, jesuíta e depois santo, embora apreciasse ser tratado por «o pecador», representava em Lisboa os interesses espanhóis, na confusão familiar que unia as duas famílias reinantes, querendo Carlos V jurar como herdeiro, em caso de morte de D. Sebastião, um seu filho, o príncipe Carlos. Pela corte andava a filha de D. Manuel, a infanta Maria, lenda de beleza, a pele clara e os olhos azuis, e musa inacessível desse fidalgo rafeiro, obscuro e duvidoso, duas vezes condenado por pequenos delitos, Luís de Camões.
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Créditos: Wikimedia Commons.
Sebastião lá ia crescendo, a saltitar pelos aposentos da rainha, cuidado pelos seus criados. De Roma, chegou o jesuíta Luís Gonçalves da Câmara para educar o herdeiro. Para missões mais comezinhas como aprender a ler e escrever, foi encarregue o padre Amador Rebelo. A criança, pelos vistos, era viva, gostava de jogos. Mas Sebastião era colérico, o que não espanta, rodeado de tantos homens santos. Não terá sido fácil crescer num ambiente político de aberta crispação. D. Henrique procurou minar a influência castelhana e criticava as decisões da regente, D. Catarina. Mas o êxito da rainha a coordenar a defesa de Mazagão contra os ataques mouros agradou aos meios populares, e D. Catarina, apoiada por um inteligente e experiente secretário, Pedro Alcáçova Carneiro, demonstrava inteligência. O tom de adulação presente nas cartas do embaixador em Roma, Lourenço Pires de Távora, a Pedro de Alcáçova Carneiro, traduzia a sua posição privilegiada na Corte, o que nas palavras do professor Romero Magalhães «só se entende com os muito poderosos». Não admira esta deferência perante o secretário, pois D. Catarina conferia às cartas redigidas pelo punho de Pedro de Alcáçova Carneiro o mesmo significado das cartas escritas pela própria mão da rainha.
Esta proximidade entre D. Catarina e Alcáçova Carneiro decorria de uma combinação de interesses. Sendo a rainha mulher e sem experiência da decisão, fundava as suas decisões no secretário, ajudando-o, pois nunca um homem da escrita teria, por si só, estatuto para atingir as altitudes do poder. Contudo, farta das tentativas para subtraírem à sua influência o futuro rei de Portugal — lembremos que D. Catarina era espanhola, irmã de Carlos V — a rainha convocou as cortes para 11 de julho de 1562, numa sala do paço da Ribeira, D. Sebastião tinha oito anos. D. Catarina renunciou ao cargo e impôs dez dias para nomeação do cardeal D. Henrique como regente. No dia 23 de dezembro aceitou o cardeal a regência, desde que D. Sebastião fosse aclamado rei aos catorze anos e não aos vinte, que era a idade recomendada pela prudente vontade de D. João III. A ameaça pendente sobre a escassez de herdeiros reais ditava recomendações claras: que o rei mal fizesse nove anos fosse afastado das mulheres e entregue à companhia dos homens, vestindo, falando e cavalgando à portuguesa, e mal tendo idade, devia ser casado com uma princesa vinda de França, ainda criança, e criada em Portugal, não se dando ofícios da casa do príncipe a estrangeiros. Prova de que D. Sebastião tem as costas largas em relação ao delírio bélico é que nesta altura se desfizeram os Estudos de Coimbra e se mandou que o dinheiro dos estudos fosse aplicado na guerra de África, e quem quisesse estudar fosse a Salamanca ou a Paris.
Bem, os estudos de Coimbra custaram, entre 1522 e 1543, 30 000 cruzados, enquanto os casamentos da família real e presentes principescos custaram 1 550 000 cruzados. Não é fácil medir o valor em moedas antigas e, por vezes, em moedas contemporâneas, diga-se em abono da justiça. Mas para se ter uma ideia das prioridades, note-se que as esquadras de proteção do Brasil e da costa da Malagueta custaram, no mesmo período, 160 000 cruzados. Embora o rigor contabilístico não fosse um atributo do reino de Portugal, os números indicam pelo menos, com alguma segurança, uma hierarquia de importância. Os festejos da reprodução da monarquia custavam quase metade de um dos mais importantes aspetos da administração do império. Mas decidir o que era o império, e qual a razão para o manter, não era fácil. D. João III quis mesmo abandonar Safim, Azamor, Arzila, Alcácer Ceguer. Na Corte, ninguém se entendia sobre a estratégia. O duque de Aveiro chefiava um grupo, o duque de Bragança, outro. Só duas coisas eram seguras: um forte ambiente de ódio ao espanhol e uma religiosidade arcaica.

D. Sebastião, rei de Portugal

Com o crescimento de D. Sebastião e a aproximação da sua aclamação como rei, Alcáçova Carneiro, responsável por grande parte da estratégia de D. Catarina, falhou a nomeação para conselheiro do novo rei, perdendo a carruagem do poder. Nesta época, em meados de 1568, já D. Sebastião fazia «coisas estranhas» e o seu confessor, Luís Gonçalves da Câmara, era quem governava. O crescente poderio da família Câmara irritava grande parte da Corte. Em 1569, no primeiro ano do governo de D. Sebastião (tendo o rei quinze anos) reuniu em Almeirim, o Conselho de Estado, tribunais e oficiais da Chancelaria régia. O rei foi incentivado a fazer escolhas e restabeleceu o cargo de escrivão da puridade — uma espécie de primeiro-ministro — nomeando o irmão do seu confessor, ou seja, o antigo reitor da Universidade de Coimbra, Martim Gonçalves da Câmara. Este Martim Gonçalves da Câmara era um homem já muito influente, com administração de uma grande parte dos assuntos de justiça, que na época implicava também controlar a nomeação de muitos dos servidores do rei, além de fazer parte do grupo restrito dos membros do Conselho Geral do Santo Ofício, a Inquisição.
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Primeiro mapa de Portugal, desenhado durante o reinado de D. Sebastião. Créditos: Wikimedia Commons
Martim Gonçalves da Câmara e o seu irmão, o confessor do rei, Luís Gonçalves da Câmara, construíram uma poderosa aliança. Foram os Câmaras a afastar do rei D. Sebastião o cosmógrafo-mor e matemático, Pedro Nunes, e parecem ter instigado no rei a aversão ao casamento. Talvez tenham também soprado ao ouvido do jovem monarca a necessidade de D. Sebastião se encontrar livre para a preparação da Jornada em África. Segundo um famoso documento da época, o Memorial de Pero Roíz Soares, o escrivão da puridade, Martim Gonçalves da Câmara, rapidamente se tornou uma sombra de D. Sebastião, chegando a rasgar documentos assinados pelo rei. Certo escrivão, ao apresentar uns papéis para D. Sebastião assinar, quando o rei seguia em viagem atravessando a fronteira do Algarve com o Alentejo, confidenciou que «dali por diante olhasse sua Alteza como punha os pés, pois entrava no Reino de Martim Gonçalves». Farto da omnipotência do ministro, D. Sebastião acabou por discutir com Martim Gonçalves da Câmara, que terá saído do Paço, batendo portas com estrondo e abandonando a corte, mas as coisas ficaram de tal forma que só a menção do nome de Martim Gonçalves da Câmara enfurecia o rei.

Um rei como os outros

Em 1570, D. Sebastião transmitira ao Conselho de Estado a preocupação com a defesa do litoral. Era comum nessa época, a ocorrência de ataques mouros às costas do Algarve. O rei estava preocupado com a fortificação das praças e assuntos militares, querendo formar um exército mais organizado e dependente do rei 291. Tanto no reino como no império. Mas não só: peocupou-se com a Casa dos Vinte e Quatro, que regulava o trabalho dos artesãos de Lisboa, combatendo reeleições dos mesmos indivíduos e eleições de parentes de parentes, para evitar a corrupção. Em 1573, incentivou o fabrico de lã em Portugal. Em 1574, preocupou-se com a administração de S. Jorge da Mina, de onde chegara muito ouro, embora já custasse mais do que rendia. Embora não existisse contabilidade tal como a entendemos hoje, pairava nos corredores do paço a ideia do endividamento galopante, «de se gastar mais do que se havia». O excelente historiador Queirós Veloso refere a existência de um défice considerável em 1563. Se os historiadores falam da duplicação dos salários (artesãos, pedreiros ou carpinteiros) o custo de vida também subia, e muito mais. O preço do trigo terá crescido seis a oito vezes.
A crise do império ameaçava o reino. Entre 20 e 30% da população portuguesa no século XVI seriam viúvas, o que era uma situação insólita, com um impacto profundo na economia, pois muitas das profissões dificilmente podiam ser desempenhadas por mulheres. Começava a duvidar-se da honestidade dos governadores de Goa e do negócio das nomeações, pois era comum a falsificação de listas de pagamento com marinheiros e soldados já mortos. Como se vê, nada se inventa na literatura, e a ideia do escritor russo do século XVIII, Pushkin, a partir da qual o famoso Nikolai Gógol construiria o enredo do seu livro Almas Mortas — um impostor viaja pela Rússia profunda comprando listas de servos já falecidos a m de obter benefícios económicos — pelos vistos, já tinha sido inventada pela aristocracia portuguesa. Talvez Pushkin tenha lido sobre o tema, por algum livro francês sobre a decadência do império da Índia portuguesa.

A razão da guerra

No início de 1578, perante as conhecidas críticas do duque de Alba, o maior estratega de guerra na Europa, D. Sebastião enfurecido escreveu uma Memória. Um autêntico tratado de confusão mental, um hino ao delírio, onde se anunciava a incursão militar em África. O cardeal D. Henrique, desesperado, tenta dissuadir o rei, e a avó, D. Catarina, lança a sua maior cartada, ou seja, agoniza no leito de morte.

D. Sebastião vai ao convento de Xabregas e, na madrugada de 12 de fevereiro, D. Catarina balbucia diante do rei, preces para evitar a ida do neto a África. Tudo indica que também Filipe II tentou demover também D. Sebastião, mas este tão desajeitado quanto poderoso monarca, escolheu o relatório técnico para falar aos ouvidos de um jovem rei. Contudo, a D. Sebastião não interessava o palavreado militar dos capitães, com análise dos pontos de fogo e das condições geográficas das fortificações. Como escrevia o embaixador de Filipe II, D. João da Silva, aquele «moço ferve».
O moço Sebastião fervia, portanto, no lume das convicções religiosas, num século onde apesar de tudo, já se ia recorrendo aqui e ali aos esforços da razão lógica. Já o papa, Gregório XIII, considerava o empreendimento «próprio da grandeza e do prestígio passado e presente do reino português». Apesar da campanha de Alcácer Quibir ter entrado no imaginário popular como um rotundo fracasso, fruto da inexperiência do rei, o ataque tinha a sua racionalidade. Só não ajudou muito o facto de D. Sebastião ter perdido a batalha. Quando os ingleses decidiram bombardear as mais variadas possessões coloniais em pleno século XVIII, ninguém se lembrou de os considerar dementes por uma única razão: tiveram sucesso. No fundo, quanto mais mergulhamos nos pareceres e memoriais, escritos naqueles anos de 1577 e 1580, mais se nos afigura difícil ter uma ideia clara sobre o alcance da empresa fatídica. O rei pretendia estrangular a rota do Levante (a passagem de mercadorias da Índia pelo Egito, até ao mediterrâneo), o que era essencial para fazer frutificar a rota marítima do Cabo, nas mãos dos pilotos e capitães portugueses, e impedir a reorganização dos Venezianos e com isso, travar a queda do comércio de especiarias em Lisboa. Todavia, ganhar guerras em África não seria propriamente como caçar veados nas orestas do Alentejo.

A campanha

O exército, contratado em larga medida no estrangeiro — como era comum na época — começou a chegar a Portugal em maio. Alemães, holandeses, valões (todos trazendo consigo mulheres e filhos) num total de dois mil e oitocentos soldados, chegaram a Belém e caminharam depois até Cascais. O facto de serem maioritariamente hereges (protestantes) em vias de terçar armas contra exércitos espanhóis, em nada diminuía o ardor contra o inimigo comum, o mouro. Iriam juntar-se uns milhares de italianos, cerca de três mil, empenhando para isso, D. Sebastião, joias da sua casa. Os castelhanos, sobretudo andaluzes, eram para cima de mil e seiscentos, e vieram pela fronteira alentejana. Os portugueses eram mil e quatrocentos, entre numerosos fidalgos pobres e quatro terços de três mil soldados vindos de todo o reino. O recrutamento, como era muitas vezes hábito, era um negócio, e as famílias com dinheiro livraram os seus lhos da guerra, pagando aos capitães. Juntavam-se ainda as tropas de um rei mouro, cerca de mil soldados, e os mil e quinhentos cavaleiros portugueses de Tânger e Arzila. O exército atingiria os vinte e quatro mil homens. Quando o exército confluiu para Lisboa, numa invasão de soldados estrangeiros, a prostituição atingiu picos seculares, o que não ajudava à concentração. Mal se dispuseram os homens em treino, os exercícios foram considerados ridículos, desordenados. O exército era indisciplinado, apesar dos esforços do rei, entrando D. Sebastião nos exercícios como simples soldado, para dar o exemplo. Muitos dos homens andavam em rixas, os portugueses matavam soldados castelhanos, e foram mesmo presos vários capitães italianos, por distúrbios.
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Batalha de Alcácer Quibir. Créditos: Wikimedia Commons
Em todo o caso, isto não nos deve impressionar, era a norma dos exércitos da época, um bando mais ou menos descontrolado que os experientes generais manobravam à distância, como uma força da natureza, que pode atirar-se contra o inimigo, mas nunca se deixar inteiramente controlar. Apesar dos treinos, digamos, pouco entusiasmantes, Sebastião deixou um conjunto de aristocratas e secretários como governadores do reino e partiu. No dia 14 de junho, vestido com as cores do galo (veludo carmesim e chapéus de plumas brancas) em corcel ajaezado, D. Sebastião foi em direção ao navio almirante e chamaram a toque de trompa os soldados ao embarque. Estavam ancorados no rio Tejo, galeões, naus, caravelas e urcas, toda a espécie de barcos, por onde subia o material de guerra, tendas e provisões. Aqui começa o desfile das coisas desnecessárias: doces, baixelas de prata, vinhos generosos, para não falar dos séquitos (por vezes chegando até cinquenta criados) de alguns dos aristocratas. Algumas fontes falam em sessenta mil homens, três vezes o número de soldados, e mais de seiscentas velas, mas isto era uma expedição onde cabia meio mundo, incluindo o poeta Diogo Bernardes para cantar a épica vitória. Largou expedição a 25 de junho de 1578, parou em Cádis até 7 de julho e partiu depois para Tânger. O rei pernoitou ali na casa do governador e no dia 11 estavam de partida para Arzila. Discutiu-se o ataque a Larache por mar, ou a entrada por terra, em direção a Alcácer Quibir, encontrando o exército de Abd al-Mâlik, ou seja, o exército a derrotar. Alguns dos aristocratas portugueses opuseram-se, devido ao poderio terrestre dos dez mil cavaleiros de Abd al-Mâlik. O problema da entrada por terra era a facilidade de emboscada e o terrível desgaste da marcha sob o calor do verão, a falta de mantimentos, e naturalmente a dificuldade de fuga do rei, em caso de derrota.
Pelos vistos, havia gente avisada. Corriam os boatos dos gigantescos exércitos de al-Mâlik e das propostas de trégua, estando al-Mâlik disposto a entregar Larache aos portugueses. Perto do dia 22 de julho, o sultão muçulmano ainda escreveu a D. Sebastião propondo trégua com avisadas palavras: «se atribuíres (este pedido de trégua) ao medo ou à cobardia, isso será o princípio e o meio da tua perdição». E acrescentou: «isto há de custar mais vidas do que podem caber grãos de mostarda num grande saco. És moço e experimentado; tens cavaleiros com quem te aconselhas, já que não queres o meu conselho». Talvez não tivesse. A guerra de informação não é uma inovação da modernidade. Um francês, talvez pago por al-Mâlik, espalhou entre as tropas portuguesas ter estado no campo inimigo, onde se contavam trinta e quatro peças de artilharia, dezassete mil cavaleiros e dez mil atiradores, isto é, um poderio enorme. O barão do Alvito ainda terá proposto abortar a missão, travando o rei pela força, se necessário, mas era tarde.

Descrição de uma batalha

Os relatos da batalha são um daqueles casos onde a profusão de crónicas e textos de sentido diverso são tantos e tão contraditórios, que se torna impossível saber com detalhe como tudo se passou. As tropas tinham diante um rio, e D. Sebastião mandou observar se era possível passar a vau — conforme a memória da passagem de um antigo Capitão de Arzila — e os especialistas voltaram com informações cautelosas. Os veteranos de África, como D. Duarte de Meneses, aconselharam a evitar a passagem — devido aos problemas de não acertar com a maré vazante e apanhar a reponta da maré, transformando o leito num imenso lodaçal — mas D. Sebastião não quis recuar, decretando a passagem do rio.
A batalha foi de tal ordem que até a imagem da Rainha Santa Isabel em Coimbra terá suado, e por diversas vezes. Uma série de bispos e cardeais e mulheres santas avistaram esquadrões, cenas da batalha, combates, espadas de fogo, mas este dotes de visão seriam inegavelmente de maior utilidade se aplicados à estratégia militar, no campo de batalha. Mas ao que parece, também D. Sebastião foi rezar momentos antes do confronto. Segundo se sabe, os mouros iniciaram as hostilidades, cerca das dez horas da manhã, com tiros de artilharia.
Terá sido D. Sebastião a precipitar-se então para a cavalaria moura. Num primeiro momento, a batalha foi favorável aos cristãos, depois recuperaram os muçulmanos, impondo uma retumbante derrota. Os muçulmanos invocam o favor do céu e os seus cronistas dizem ter passado mais de trezentos projéteis de canhão sobre as suas cabeças. Outro exagero. Do lado português, porém, ninguém conduzia a batalha. Depois da ofensiva a cavalo, alguns nobres portugueses, como o duque de Aveiro, foram mortos pela resposta dos mouros.

    É então que o leitor destes relatos antigos não pode deixar de comover-se quando lê a facilidade com que foram destroçados os soldados no centro do exército português, pastores, cabreiros, gente do campo, aterrados e mal preparados, mal se opuseram ao ataque. Segundo alguns relatos árabes, o rei mouro aliado dos portugueses atrapalhou-se com o cavalo, em fuga através do rio, e morreu afogado. Abd al-Mâlik, muito doente, morreu na sua liteira, durante a batalha. Quanto a D. Sebastião, terá levado um tiro. Mas o mesmo autor fala num filho de D. Sebastião, o que prova não terem sido apenas os soldados portugueses a beber vinho durante a batalha. Na verdade, D. Sebastião foi avistado, já ferido, a lutar, quando já a retaguarda do exército português tinha sido destruída e era varrida a tiro de arcabuz. Foram vários os que do pequeno grupo de fidalgos, acompanhando o rei, terão pedido para recuar, salvando-se o monarca. Talvez se tenha dado então o diálogo tornado famoso. D. João de Portugal terá perguntando a D. Sebastião: «que pode haver aqui que fazer, senão morrermos todos?» E o rei respondeu: «morrer sim, mas devagar».

    Caminhando através do nevoeiro

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    Reconhecimento do corpo de D. Sebastião. Créditos: Wikimedia Commons.
    Apesar das lendas e da obsessiva renovação do mito, nos meses e anos logo a seguir à batalha circularam muitas descrições, dos autores mais diversos, com testemunhos da morte do rei e mesmo de quem tinha visto o corpo do jovem Sebastião. Estava completamente nu, desfigurado e inchado devido ao calor, mas não restando qualquer dúvida sobre a sua identidade, o que motivou lágrimas nos fidalgos expostos ao horror. O corpo tinha diversas feridas na cabeça, uma muita profunda, vários vestígios dos tiros no torso, e muitas feridas nas mãos. Quando se invoca uma suposta manipulação política espanhola, para justificar as notícias falsas sobre a morte do rei, julgo que o inverso é mais provável. Foi sobretudo em Portugal que se deu o silenciamento da morte do rei, por motivos óbvios: vergonha, antes de mais. Depois, para criar um mito de resistência contra o domínio espanhol. Na verdade, o corpo de D. Sebastião foi enterrado em Alcácer-Quibir em final de agostodepois desenterrado em dezembro de 1578 e transportado para Ceuta, escoltado por nobres portugueses resgatados.
    Corria o mês de novembro de 1582, quando Felipe II faz repatriar o corpo de Ceuta para o Algarve. O corpo de D. Sebastião foi então conduzido com grande pompa, por terra, e sepultado no mosteiro dos Jerónimos 303. Terá sido remetida ao Cardeal D. Henrique uma prova documental sobre a morte do rei, com testemunhos dos vários fidalgos, entre os quais o duque de Barcelos e o conde de Sabugal, confirmando a morte em batalha. O escritor do século XVIII, Duarte Barbosa de Machado, escreveu com invejável lucidez, sobre os delírios sebastianistas: «preocupados com futuras felicidades, suspiram que chegue aquele tempo, em que se verá restituída a Portugal a idade de ouro; não reparando que todas as suas esperanças se desvanecem no ar, e se resolvem em fumo». E acrescentou sobre D. Sebastião: «mais ambicioso da própria morte, que da alheia, rompendo arrebatadamente pelo centro da bárbara multidão que o cercava, se fez invisível aos olhos de todos, por cuja causa será sempre o suspirado assunto, e eterno argumento das saudades portuguesas». Não nos resta muito mais do que reconhecer uma certa grandeza nisto. Ou uma infinita estupidez.


    observador.pt

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