Fomos obrigados a deixar a “fast-vida”, a correria, o massacre da competição e do tempo sem tempo. Com burnout, agora, só os profissionais de saúde. E se pudéssemos aproveitar para mudar?
Médicos, um engenheiro hospitalar e um militar, integrados em respectivas associações, entendem juntar-se para em conjunto exprimir que esta pandemia nos coloca problemas políticos que dizem respeito ao Estado em geral e ao Estado social em particular, ao desempenho dos vários actores políticos nesta crise e ao nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS). Colocam-se também questões sociais e até filosóficas mais latas, relativas ao ser humano no ecossistema e no modo de vida.
Vários pensamentos esperam do Estado coisas diferentes. Alguns esperam segurança e voz de comando. Outros, como nós, esperam, para além disso, o funcionamento do Estado social. O que é que este significou e significa. Foi a seguir à Segunda Guerra que o Estado Social se corporizou. As decisões dos governos das democracias foram tomadas após grandes movimentos das massas trabalhadoras em geral e dos sindicatos em particular. Portugal, Espanha e Grécia ficaram debaixo do tapete das democracias e bem sabemos as consequências. O espírito que atravessou as democracias, com liderança do Reino Unido e dos países escandinavos, consistiu na nacionalização das grandes indústrias e do caminho-de-ferro. Num levantamento de estruturas de habitação, de saúde e de educação a partir do Orçamento Geral do Estado. Constituído este a partir de impostos progressivos de acordo com o rendimento. Foi um grande salto para diminuir a desigualdade entre as pessoas, com a qual elas nascem. Foram precisos 30 anos para Portugal, após Abril de 1974, adoptar a mesma estrutura, estabelecendo-se informalmente após a revolução, mas só se tornando lei em 1978. O SNS estabeleceu-se e a sua concepção é idêntica à do Reino Unido e dos países escandinavos. Chama-se beveridgiana porque o seu legislador em Inglaterra foi Beveridge. Os outros países da Comunidade Europeia também têm cobertura universal mas na base de seguros obrigatórios ou segurança social.
O problema é que a nossa legislação foi na contra-onda que entretanto se estabelecia na Europa e nos EUA em 1979/80, com R. Reagan e M. Thatcher. Para esta última, segundo as suas palavras, não havia “sociedade”, só havia “indivíduos”. A partir daí o pensamento progressivamente hegemónico foram as privatizações das fontes de rendimento do Estado e a redução progressiva dos serviços públicos a favor da “concorrência” com os privados. Porque o espírito foi e é: mercado, concorrência, individualismo. Está expresso na Lei de Bases da Saúde de 1993, aprovada por um parlamento com maioria de direita.
O nosso medíocre cavaquismo foi o thatcherismo luso, inspiração para uma grande parte da direita portuguesa. Liberais, com várias designações, que falam contra a “carga fiscal” (ressalva-se as dificuldades das pequenas e médias empresas), sabendo que é daí que vem dinheiro para a educação e a saúde, falam contra as “taxas e taxinhas”, quando são aplicadas às bebidas açucaradas, são os que falam em “menos Estado, melhor Estado” (mas qual é que escolhem?). Infelizmente, a pandemia veio demonstrar o que é ter ainda algum Estado social ou não ter nenhum, como acontece nos EUA.
A resposta da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e do Ministério da Saúde (MS) foi adequada, serena e resistente ao desgaste do trabalho exaustivo, e dos ataques directos ou enviesados. Duas mulheres sem experiência de uma pandemia, porque ninguém a tem, enfrentaram a crise com inteligência e coragem, tomando medidas proporcionais. O primeiro-ministro tem a liderança necessária com a mesma sabedoria. Realce-se o conhecimento transmitido por cientistas portugueses, virologistas, infecciologistas, pneumologistas, epidemiologistas ao nível do melhor pensamento internacional. Não é por acaso. Tiveram formação e experiência no SNS. Os profissionais de saúde têm feito um trabalho extraordinário com risco de vida, como se constata pelo número de infectados em percentagem superior ao da população em geral. Continuem nesse caminho de generosidade e profissionalismo.
Não é de estranhar, mas é de denunciar o aproveitamento político daqueles que acham o momento bom para atacar a DGS e o MS, evidenciando carências que existem e outras que poderão vir a existir. Mais não fazem do que alarmar, lançando o pânico. Não é boa altura para guerrilhas. É igualmente de denunciar todos os aproveitamentos comerciais de grandes empresas fornecedoras.
Nós sabemos que há muitas questões a colocar no futuro relativamente ao SNS: orçamentação, estrutura hospitalocêntrica, necessidade de auto-suficiência em grande parte dos meios auxiliares de diagnóstico nos Cuidados Primários e articulação destes com os centros hospitalares, retenção dos jovens especialistas no serviço público através de estímulo material (muitos estão agora nas urgências dos privados e bastante falta nos fazem no SNS), substituição e atualização tecnológica de equipamento. Destacamos a perda de 4000 camas de agudos no SNS desde 1995 (de 25.000 para 21.000), agora com 2,1 camas por mil habitantes, macas nos corredores e taxas de ocupação superiores a 90% em vez dos normais 85%. Camas públicas e privadas, temos 3,3 camas por mil habitantes, a França tem 6,2 e a Alemanha 8,2 (Fonte: Eurostat, 2017). Consequência de muitos anos de politica neoliberal com enorme investimento e crescimento dos serviços privados. Para que servem agora? Seria interessante perguntar porque só a 23 de Março os hospitais privados, Luz e Lusíadas, admitem doentes com covid-19 . O que é que têm feito aos doentes com covid que lhes aparecem? E os ventiladores da CUF vieram sozinhos ou com doentes? É certo que a CUF no Porto e na Infante Santo ofereceram-se para entrar na rede. Mas a que preço? E qual é o preço dos testes que fazem? Os serviços privados ofereceram-se também para receber doentes não contaminados para libertar camas do público. A que preço? E qual é o jogo do mercado no fornecimento de materiais de defesa da desinfecção? Tudo isto devia ser transparente.
Verifica-se também que a União Europeia só serve para regular mercados financeiros. Não tem nenhum mecanismo para actuar em casos de pandemia ou catástrofe humanitária. Acentuam-se já as assimetrias dos países do sul da Europa em relação aos do norte. A falta de solidariedade europeia contrasta com a solidariedade da China e Cuba. O tempo é de solidariedade e não de egoísmos nacionais ou de grupo.
No meio do infortúnio torna-se dia-a-dia evidente, através dos contactos à distância, que as pessoas estão a gostar de se sentir no colectivo, que encontraram tempo e paciência para a família, que os sentimentos bons ressurgiram, o desfrute da arte erudita e popular aconteceu. Fomos obrigados a deixar a “fast-vida”, a correria, o massacre da competição e do tempo sem tempo. Com burnout, agora, só os profissionais de saúde.
E se pudéssemos aproveitar para mudar?
É também altura para lembrar que não vivemos sozinhos na terra. Não somos os reis do Universo, nem este é humanocêntrico. Os vírus e muitos outros seres vivos coexistem connosco num ecossistema. Não é Satanás, nem uma conspiração. É o acaso ou é aquilo que cabe no nosso enorme desconhecimento. Mas será a ciência, a divulgação, a paixão de saber que, tal como o vírus, não podem ter preço nem fronteiras, a permitir que se vença este inimigo, tal como já foram vencidas muitas bactérias e como foi prolongada a esperança de vida nos países desenvolvidos.
Isabel do Carmo, médica, professora da Faculdade de Medicina de Lisboa, associada da Associação de Médicos Portugueses em Defesa da Saúde (AMPDS); Jaime Teixeira Mendes, médico, presidente da AMPDS; João Durão Carvalho, Engenheiro, membro da direcção da Associação de Técnicos de Engenharia Hospitalar Portuguesa; Martins Guerreiro, almirante, militar de Abril
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