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sexta-feira, 27 de março de 2020

Retrato da masculinidade: "Tentar estar à altura de estereótipos conduz a que muitos rapazes ponham em perigo as suas vidas"







Tatiana Moura, socióloga e investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, reflete sobre o que é "ser homem" hoje e a necessidade de adotar um paradigma de masculinidade mais saudável. Este sábado, na Revista do Expresso, leia a reportagem "Os homens também choram"

Homem que é homem é viril, é confiante, é dominante, é um líder. Homem que é homem não chora. Não sofre. Não mostra debilidade. Não fraqueja. Não é mole. Não é “maricas”. Não é “gaja”. Andam a contar-nos estas mentiras há tanto tempo que não faltam homens que acreditem nelas. E, ao fazê-lo, magoam-se a si e a todos à sua volta. Tatiana Moura é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, onde coordena projetos sobre masculinidades, igualdade de género, paternidade e cuidado. É responsável também pelo Promundo Portugal, parte de um consórcio global de promoção de masculinidades não violentas e equitativas. Nesta conversa, lembra que a luta das mulheres por uma sociedade mais equitativa precisa de aliados homens e de melhores modelos de masculinidade. Para o bem de todos.
Os pais ainda condicionam socialmente os filhos, contribuindo para perpetuar estereótipos de género?
Ainda. Alguns sim. Desde que nascemos – e até antes, durante o período da gestação –, somos colocados em caixinhas diferentes. Somos socializados para nos comportarmos, agirmos, vestirmos e brincarmos dentro do que é socialmente aceite. Como se, desde muito cedo, nos colocassem em duas linhas de comboio distintas, paralelas, que nos levam, a homens e mulheres, por caminhos diferentes e sem nunca se cruzarem, ficando cada um confinado àquele caminho ou papel. Azul e rosa. Forte e delicada. Provedor e cuidadora. E por aí seguimos. Na verdade, estamos a projetar as expectativas que muitos adultos têm sobre essas construções, moldando o que realmente queremos ser e limitando a nossa liberdade e autodeterminação.
Como é que o fazem?
Vemos isso, por exemplo, nas cores e nos brinquedos que se atribuem aos diferentes sexos: cor-de-rosa, brinquedos de tratar da casa, de cuidar de bebés e maquilhagem se formos meninas; e azul, armas, castelos e construções se formos meninos. Mas também o vemos nos comportamentos e nas atitudes que transmitimos de forma diferenciada a um rapaz e a uma rapariga: eles têm de ser fortes, corajosos, não chorar e não recuar perante um desafio; elas têm de ser delicadas, sensíveis e gostar de brincadeiras calmas e que não são atribuídas aos rapazes. Como chamamos a uma menina que gosta de jogar à bola e de subir a árvores? Pois, “Maria Rapaz”. Isso pode acontecer tanto em casa como na escola. Podemos ter em casa uma abordagem que não seja assente em distinções binárias de género, desiguais e estereotipadas, e na escola esse tipo de abordagem pode surgir. Ou vice-versa.
É um fenómeno que se acentua na adolescência?
Na adolescência dilui-se um pouco o papel dos pais e da família e acentua-se o papel dos amigos e dos grupos. Os adolescentes querem naturalmente ser aceites no seu grupo de pares e aí vêm ao de cima as “caixinhas” em que somos colocados mal nascemos e as que o grupo espera de nós. Um rapaz colocado na caixinha da masculinidade considerada dominante terá vantagens no seu grupo se se comportar exatamente como o que é esperado dele, porque “rapazes serão sempre rapazes”. Dá menos trabalho, os resultados são imediatos. Tem vantagens como ser reconhecido e valorizado, ser mais atraente aos olhos das raparigas, ser líder e por isso ser imitado, etc.
Como é que se desconstrói isso?
Transmitindo aos jovens que existem desvantagens em ficar retido dentro dessas caixas: somos limitados nas formas como nos podemos e devemos comportar; sofremos pressão dos pares para agir de certa maneira, mesmo quando não o queremos fazer fazemos; e há impactos em termos da saúde física e mental. Mas devemos ensinar-lhes e mostrar-lhes, também, que há vantagens em “sair das caixas”, nomeadamente em não nos conformarmos com as ideias que outros têm sobre nós e sobre o que realmente somos, e manter ligações mais fortes com outras pessoas, entre outras. Dessa forma minimizamos os impactos negativos na vida, na saúde, nos relacionamentos e na felicidade dos adolescentes e evitamos comportamentos e atitudes não igualitárias equitativas e desiguais.
Esses impactos podem ser devastadores tanto para homens como para mulheres. Muitos investigadores defendem, por exemplo, que há uma linha direta entre a ideia tradicional do “ser homem” tradicional e a violência sobre as mulheres.
A violência, especialmente e nomeadamente a de género, é uma das consequências. E é-o numa tentativa de demonstração ou de reposição de poder em relação a uma pessoa que é considerada subalterna. As formas de expressão de violência ocorrem em cascata – psicológica, doméstica, sexual, homicida – e, não afetando exclusivamente mulheres e raparigas, afetam-nas de forma significativa e frequente, é transversal a todas as sociedades. No entanto, homens e rapazes são igualmente vítimas desta construção de masculinidade “tradicional” ou dominante deste tipo de violência e a violência que ocorre entre homens ou rapazes está muitas vezes associada a normas de género rígidas e a dinâmicas de poder. Esta é uma questão que precisa de estar no centro dos debates, pelas circunstâncias.
Esse é um debate ainda pouco explorado: as consequências do que muitos chamam de “masculinidade tóxica” fazem-se também sentir nos homens.
As mulheres continuam a ser as mais afetadas pelos comportamentos ligados à chamada masculinidade tóxica, mas os homens também sofrem com isso. Tentar estar à altura de ideias e imagens estereotipadas acerca dos homens e da masculinidade conduz a que vários rapazes ponham em perigo a sua saúde e a sua vida ao adotar comportamentos de risco. Uma descoberta importante de estudos realizados com jovens revela que existe pressão para estarem constantemente a provar que merecem “ser homens” e “são homens” perante outros e perante si próprios. Isso tem como consequência colocarem a sua vida e a de outros e outras em causa.
Historicamente, os homens têm ocupado o lugar cimeiro enquanto vítimas de homicídios, suicídios, mortes acidentais, consumo excessivo de álcool e outras substâncias nocivas, bem como enquanto autores de assaltos e furtos, de agressões físicas em espaços públicos e privados. 90% dos homicidas são homens, mas 90% das vítimas também. Em grande medida em resultado disso, os principais ocupantes de estabelecimentos prisionais no mundo e os que tendem a ter uma esperança média de vida mais baixa são homens.
O silêncio emocional a que muitos se votam, por exemplo, muito por culpa da ideia de que “homem que é homem não chora”, está a matar muitos homens.
Em Portugal, a probabilidade de suicídio é superior entre os homens: três vezes superior à de uma mulher, sendo que pelo menos uma em cada dez mortes de indivíduos do sexo masculino com idades compreendidas entre os 15 e os 39 anos resulta de suicídio. Os homens morrem mais do que as mulheres e em idades mais precoces. Os óbitos entre os indivíduos de sexo masculino com idades compreendidas entre os 15 e os 64 anos correspondem a, pelo menos, duas vezes os óbitos nas mulheres na mesma faixa etária.
Central a este debate está a questão do autocuidado. Os homens também recorrem menos aos serviços de saúde do que as mulheres, têm hábitos de consumo menos saudáveis e são mais atingidos pelo excesso de peso do que as mulheres. Embora pratiquem mais exercício físico e recorram com menor frequência a fármacos, designadamente ansiolíticos e antidepressivos.
Todos estes números e factos são resultado destas expectativas, diferentes, complexas e pressionantes, das várias interpretações sobre “o que significa ser homem” e do comportamento que se espera que homens e rapazes tenham. Têm um traço comum, que pode ser simplificado e generalizado da seguinte forma: um homem tem de ser forte, corajoso, não pode falar sobre os seus sentimentos ou, simplesmente, dizer a um amigo ou a uma amiga que se sente triste e deprimido. Assim, procuram pouco a ajuda especializada para problemas físicos e psicológicos porque tal significa que não são autossuficientes para tratar dos seus problemas, o que pode em último caso conduzir à morte.
O movimento #MeToo pôs a masculinidade debaixo do microscópio e veio reabrir o debate sobre a necessidade de redefinir o que é “ser homem”. Nada será como dantes?
Foi um ponto de não retorno, de esforço de luta coletiva de denúncia. E foi um momento de profunda reflexão e autorreflexão sobre estas práticas. Permitiu que se abrisse a discussão sobre tipos e formas de atuação de masculinidades que se consideravam impunes. Sendo um movimento iniciado sob holofotes, abriu portas a que quotidianos silenciados pudessem ganhar coragem e voz para denúncias. E nessas vozes ouvimos também vozes masculinas, aliadas, que não se conformam.
Como é que se podem criar melhores homens?
Reproduzindo boas práticas e desconstruindo as más: nem todos tivemos pais exemplares; nem todos tivemos pais agressores. A reflexão sobre o que nos faz ser melhores, mais equitativos, mais cuidadores e auto cuidadores deve ser um exercício central na construção da nossa identidade e forma de agir. Especialmente em momentos de crise, que exigem, como agora, um esforço coletivo.
Depois transmitir que a autodeterminação, a liberdade e a felicidade se constroem e se alcançam de uma forma plena e completa se sairmos das “caixas” em que nos colocam desde a nascença.
Devemos também olhar para as questões da masculinidade de forma relacional, sob uma perspetiva feminista e com a noção de que o caminho pela igualdade foi iniciado, continuado e lutado pelos movimentos feministas ao longo dos tempos. De que o abordarmos a partir do prisma das masculinidades não pode servir para uma nova forma de hegemonia dos homens, dando-lhes mais holofotes e atenção, mas sim para que estes alterem comportamentos e atitudes de forma a serem aliados e estarem de facto envolvidos na igualdade social de género e na justiça de género social.
Por fim, participando ativamente na transformação de mentalidades, comportamentos e atitudes, seja no dia-a-dia, seja no trabalho de investigação com jovens, famílias e pais, em projetos que realmente alterem e mudem as formas de pensar e agir e que tenham como objetivo a erradicação da violência em todas as suas formas e no cumprimento de uma igualdade de género pura e abrangente de todas as áreas da sociedade.



expresso.pt

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