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segunda-feira, 16 de março de 2020

Uma política das lutas em tempos de pandemia



Espera demorada na farmácia, fila para entrar no supermercado: experiências que se normalizaram nos últimos dias, suficientes para ter uma ideia de como a difusão do coronavírus está a transformar a nossa sociedade. Muito destes aspetos, na verdade, são tendências de longo curso, exasperadas pela epidemia e pelas medidas que o Governo (italiano) tem tomado: décadas de medo, a política deixou a sua marca, evidente na fobia do contato e nos olhares cautelosos que presidem à “distância de segurança” entre as pessoas.
A ânsia do controlo reforça sem dúvida os poderes que dominam as nossas vidas e é importante relembrar que, uma vez implementadas, medidas como as destas semanas vão permanecer no repertório do que é politicamente possível. Por outro lado, há imagens de um sinal profundamente diferentes: os sorrisos que se trocam na rua, a música das varandas, a solidariedade que abraça não apenas os médicos e os enfermeiros, mas também os operários em greve para defender a segurança nos próprios lugares de trabalho.
A discussão destes dias, dentro do variado mundo dos movimentos sociais e da esquerda, parece privilegiar o primeiro aspeto, ou seja, o aprofundar-se, na emergência, dos dispositivos de controlo. Também prescindindo das posições expressas por afirmados filósofos que se improvisam virólogos e epidemiólogos, em muitos parece prevalecer uma espécie de ceticismo em relação ao COVID-19 e ao seu perigo efetivo. 
Decididamente considero esta atitude enganadora. Pelo contrário, a discussão deveria começar, para falar em termos muitos simples, pelo fato de que a difusão do coronavírus representa não apenas uma ameaça à saúde e à vida de milhões de pessoas (em primeiro lugar idosos e mais vulneráveis ao risco), mas também à manutenção dos sistemas de saúde. Não pode haver qualquer dúvida em relação a esse ponto. Se as coisas estão neste estado, o coronavírus representa uma ameaça por algo de essencial que, no nosso debate, definimos como a ideia de “comum”. A epidemia faz vir à tona a fragilidade e a precariedade do comum (bem como das nossas vidas), e as exigências dos “cuidados” que o debate feminista tem evidenciado nos últimos anos. Portanto, sem esquecer o tema do controlo, queria assumir este essencial ponto de vista para sobre o que está a acontecer na Itália, na Europa e no mundo.  
Os efeitos económicos do coronavírus são literalmente inauditos. Pela primeira vez, em  décadas, uma crise que tem a própria origem na “economia real” envolve violentamente os mercados financeiros globais provocando perdas sem precedentes. A metáfora mais útil para ilustrar a situação do capitalismo global neste momento é a da “obstrução”. A crise reflete, em modo de espelho, a imagem revertida de um capitalismo cujos circuitos de valor e acumulação dependem literalmente de um movimento contínuo de capitais, mercadorias e pessoas. As supply chains, as cadeias de fornecimento que constituem o esqueleto logístico e infraestrutural da globalização capitalista parecem estar hoje, em boa medida, bloqueadas. O andamento das bolsas que, durante muito tempo, guiou a extensão das supply chains, e a rede interligada de corredores, áreas especiais e hubs é agora forçada a registar este bloco.
Não é descabido afirmar que a pandemia em curso assinala um ponto de não retorno no desenvolvimento do capitalismo global. Não estou de modo algum a apontar para imaginários “quedistas” e apocalípticos. De certeza existirá um capitalismo depois do coronavírus, mas será um capitalismo profundamente diferente daquele que temos conhecido nos últimos anos (mesmo com as radicais mudanças que a crise financeira de 2007/2008 introduziu). Parece-me que é preciso começar por esta constatação ao nível global para refletir sobre o que está a acontecer na Itália, que, sem dúvida, neste momento volta a mostrar características de “laboratório”, mesmo que com contornos profundamente diferentes em relação a um não muito longínquo passado. Correndo o risco de exemplificar demasiado diria que, neste momento, está-se a delinear uma alternativa precisa: de um lado uma linha que podemos definir como malthusiana (ou inspirada por um essencial darwinismo social), bem exemplificada pelo eixo Johnson-Trump-Bolsonaro; do outro, uma linha que aponta para a requalificação da saúde pública enquanto instrumento fundamental para enfrentar a emergência (e aqui os exemplos, muito diferentes entre si, podem ser a China, a Coreia do Sul e a Itália). No primeiro caso, temos de introduzir na equação da seleção natural da população os milhares de mortos; no segundo, por razões em boa medida contingentes, encaminha-se para “defender a sociedade”, com grandes variáveis de autoritarismo e de controlo social.
 
Pretendo ser claro: não tenciono “promover” as medidas tomadas pelo governo italiano. Limito-me a evidenciar que, neste momento – a nível global –, está em curso um duríssimo confronto que terá consequências não apenas no futuro do capitalismo mas também (e no fundo, é a mesma coisa) nas nossas vidas. Este confronto atravessa também países como a Grã-Bretanha, os Estados Unidos e o Brasil, cujos governos promovem a solução que defini como malthusiana: são tenazes e enraizadas as resistências a nível social e político! Mas o confronto atravessa também o nosso país, encontrando uma expressão exemplar na recusa operária em aceitar as escolhas de Confindústria (a confederação italiana dos industriais) e de se sacrificarem ao primado da produção. Mas, de modo geral, a gestão do coronavírus mostra-se como um terreno de conflito: apenas a intensificação das lutas sociais (agora e nos próximos meses) pode abrir espaços de democracia e de “cura” do comum. Isto vale tanto para Itália como para os Estados Unidos. 

Vamos ver algumas das condições que permitem delinear cenários para o próximo futuro. O valor essencial do sistema sanitário público (que significa o direito social à saúde) é hoje um dado difícil de questionar. Isto significa que, pelo menos, durante um período será difícil propor cortes ulteriores, e poder-se-á abrir uma nova época de investimentos – também sob o empurrão dos trabalhadores e das trabalhadoras da saúde. Seria desejável que acontecesse o mesmo no mundo da educação, pois será sem dúvida necessário enfrentar tentativas de tornar irreversíveis algumas mudanças acontecidas nestas semanas (a começar pela didática online). Na crise, o trabalho de cuidados continua a ser descarregado nas mulheres, mas também esta circunstância abre cenários para novas lutas e novas negociações. As já mencionadas greves operárias, indicam a possibilidade de inéditos horizontes de sindicalismo, também social, e da reivindicação de um “rendimento de quarentena”. Mesmo com um preço muito elevado, as revoltas nas prisões determinaram uma renovada visibilidade num mundo que, nos últimos anos, tornou-se fundamentalmente opaco (e também obtiveram alguns significativos, ainda que parciais, resultados). Apesar de a tempos diferentes, o mesmo está a acontecer nos CPR (Centri per il rimpatrio), nos quais o Coronavírus determinou um bloqueio factual às repatriações, mas não dos processos. 

Repito: trata-se de cenários que indicam terrenos de luta essenciais e certamente não evoluções governamentais lineares. Mas do ponto de vista da estratégia parece-me importante começar por aqui. O vírus tem ironicamente mostrado o aspeto completamente ilusório da soberania e do seu fetichismo das fronteiras. É uma boa condição para reabrir um pensamento sobre a Europa. Claro, até aqui a União Europeia fez muito pouco, movendo-se de forma contraditória e até contraproducente. Mas como não reparar que está finalmente a austerity e o dogma do equilíbrio orçamental estão a vir à tona? Formidáveis são também as tensões “objetivas” que se vem abatendo sobre o Banco Central Europeu para que assuma o papel de prestador de última instância. São tendências “objetivas”, no sentido de que prescindem de uma intencionalidade política: mas definem as condições para uma recuperação das lutas no terreno europeu (ou melhor, para uma precipitação no nível europeu das lutas que se desenvolverão em muitas partes do continente).

Em modo de conclusão, proponho que se olhe para a pandemia em curso pondo a ênfase nos espaços que se abrem para movimentos, lutas sociais em curso e para a própria esquerda. Não subestimo a questão do controlo, a expansão dos poderes do Estado e a posterior promoção de uma política do medo. Isto está claramente presente no cenário atual. Mas como contrastá-lo? Comecemos pela “cura” do comum, para reverter o atual rumo do “laboratório italiano”, e colhamos, na situação atual, as oportunidades para generalizar uma política das lutas em tempo de pandemia. 
Artigo publicado originalmente (em italiano) em Euronomade
Translation:  Franco Tomassoni

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