Se, como defensores da democracia, nos auto-atribuirmos o papel de meros gestores de inevitabilidades, então é certo que os populistas têm o caminho aberto para tomar conta do espaço público e destruir a democracia.
Celebraram-se os 75 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz, um dos palcos mais emblemáticos das monstruosidades cometidas pelo regime nazi. Nada existe no contexto político actual do mundo ocidental, onde a democracia e o respeito pelos direitos fundamentais continuam maioritariamente a prevalecer, que nos permita afirmar a proximidade de algo parecido ao período mais negro do século XX. Mas uma coisa é deixarmos de lado esse género de proclamações apocalípticas carecidas de utilidade e significado. Outra, completamente diferente, é ignorarmos os sinais alarmantes que nos chegam regularmente e que revelam uma quase normalização de comportamentos provocados pelos extremismos políticos, designadamente pela extrema-direita.
De acordo com uma notícia publicada em Dezembro último no PÚBLICO, em 2019 registaram-se na Alemanha, onde em tese a “vacina” deveria durar mais tempo, 1241 actos criminosos contra políticos e representantes públicos alemães, na sua maioria comprovadamente cometidos por elementos de extrema-direita. Esses actos criminosos percorrem toda a hierarquia da bestialidade: começam em ameaças de morte que resultam em demissões; passam depois a violentos ataques causadores de graves lesões; e, por fim, culminam no assassínio de algumas destas pessoas.
A confirmar este cenário pouco animador, o presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, lembrou, no seu discurso na cerimónia de celebração da libertação de Auschwitz, que era inexacto assumir que os alemães tinham aprendido com a História: “Não posso dizer isso quando o ódio se está a espalhar. E não posso dizer isso quando crianças judias são cuspidas nas escolas.”
Supõe-se que as cuspidelas não sejam dirigidas por adultos, mas sim por outras crianças. E esta é uma particularidade que torna tudo mais doentio e assustador, pois estamos perante uma doutrinação através do ódio e do racismo que começa desde tenra idade e que, muito provavelmente, não será refreada com o passar do tempo, propiciando a escalada da hierarquia de que falávamos acima.
Colocando o foco nas mudanças que a viragem de década pode trazer na incontornável luta contra os extremismos, Daphne Halikiopoulou, professora da Universidade de Reading, no Reino Unido, alerta: se na década que agora terminou assistimos ao aparecimento dos movimentos populistas associados à extrema-direita, na nova década vamos assistir à concretização daquilo que defendem, ou seja, à passagem da sua linguagem insultuosa, da sua retórica estridente e das suas propostas absurdas e contrárias ao humanismo para o mainstream da política, para a normalidade do dia-a-dia. De espécies exóticas que pela sua barbaridade e falta de preparação eram motivo generalizado de chacota, passam a actores tão legítimos como quaisquer outros do espaço público.
Existe, então, algum modo de evitar esta normalização dos extremos ou estaremos perante um processo inevitável? Se como defensores da democracia nos auto-atribuirmos o papel de meros gestores de inevitabilidades, então é certo que os populistas têm o caminho aberto para tomar conta do espaço público e destruir a democracia.
Para evitar, ou pelo menos conter, tal retrocesso civilizacional e cultural, a democracia tem de se defender a si própria. Tem de ser intolerante com os intolerantes. Não pode proporcionar os seus mecanismos democráticos, nomeadamente o acesso à imprensa livre ou o princípio do contraditório a quem tem como único objectivo miná-la e destruí-la. Porque o que a democracia representa não é o livre debate de ideias sem mais, é o livre debate de ideias democráticas.
* Escrevinhador a tempo inteiro, estudante de Direito nos tempos livres
Imagens: Prisioneiros no campo nazi de extermínio de Auschwitz
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