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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O misterioso “tio Herbert” com quem Salazar tratava dos negócios “sem papéis”


O enigmático “operacional” britânico Herbert Lester, que era visita de casa de António de Oliveira Salazar, tinha entre os seus amigos um gang de burlões de casinos procurados pelo FBI, cujo líder, um homem de "reputação insípida", foi protegido pelo Estado Novo




Herbert Lester tinha praticamente 80 anos quando desapareceu sem deixar rasto. Depois de cinco décadas a viver em Portugal na casa dos Garton, uma família inglesa da Madeira íntima de António de Oliveira Salazar, o misterioso “agente de negócios” britânico fez jus à sua fama.


Sair de cena sem uma palavra foi apenas natural. 
Ainda hoje ninguém sabe como é que, nos anos 1930, Lester apareceu na quinta que os Garton têm no Funchal, nem porque é que, tendo sido perceptor de John Garton, o filho mais novo de Leopold e Cary Garton, acabou por ficar na casa durante anos e anos, quando já não havia nenhuma criança a quem dar uma “educação inglesa”.

O facto é que em 1985, quando Mrs. Garton morreu em Cascais — a dias de fazer 100 anos — era ele quem estava ao seu lado, sempre vigilante.
A dedicação à senhora Garton valeu-lhe uma coisa útil: acesso à esfera privada de Salazar, o ditador português conhecido por ter um círculo de relações pessoais muitíssimo reduzido.

Até 1968, Herbert Lester correspondeu-se com Salazar de forma regular e às vezes intensa, discutindo o fornecimento de armas “sem papéis” para a África do Sul e a província congolesa do Catanga, negócios censurados pelos aliados de sempre com Estados pária como a Rodésia (actual Zimbabwe), trânsito de mercadorias que não podiam deixar rasto “no nosso sistema aduaneiro ou comercial”, licenças para importação de material de guerra com contrapartidas duvidosas, trânsito de produtos cuja “verdadeira origem e destino” só os dois conheceriam, para além de inúmeras operações secretas.

As 40 cartas que enviou ao Presidente do Conselho português entre 1961 e 1968, guardadas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, são um verdadeiro cortejo do fim da era colonial, no qual desfilam rebeldes negros secessionistas e líderes africanos brancos que resistiam à vaga independentista de África.
“Acho que o meu pai não tinha uma grande impressão de Herbert Lester”, diz ao PÚBLICO Patrick Garton, 48 anos, neto de Mrs. Cary Garton, à sombra de um frondoso barbusano da Quinta da Boa Vista, que a família tem no Funchal desde o século XIX, e onde vive com a mãe, Betty Garton, de 89 anos.

Foi provavelmente nesta quinta que nasceu o seu pai, Cecil Garton, um piloto da Royal Air Force que foi adido aeronáutico da embaixada britânica em Lisboa nos anos 1940 e oficial de ligação da NATO na base da Força Aérea do Montijo nos anos 1950 e que, aos 43 anos, se reformou para regressar de vez à Madeira. “Tenho a maior pena que o seu marido deixe a aviação tão cedo”, lamentará Salazar na carta (inédita) que envia a Christiana Garton em Abril de 1960, e que este Verão foi doada, com outras 32, à Torre do Tombo pela filha Carole Garton. “Com mais algum tempo melhoraria a pensão da reforma e seria melhor para todos.”



Tendo ignorado o conselho, o coronel regressou à quinta da família, onde desenvolveu um negócio de orquídeas que se tornou uma atracção turística com bilhetes pagos, e que Betty e Patrick Garton, que estudou Botânica em Oxford, mantêm ainda. 
“Quando se reformou, o meu pai ia todas as manhãs trabalhar na agência de viagens que o avô, Manoel dos Passos Freitas, abriu no centro do Funchal em 1879”, conta Patrick. Esse era, há muito, um dos negócios da família, que, entre muitos outros investimentos, da sumaúma à navegação e transporte de mercadorias, representara a britânica Aquila Airways, que nos anos 1950 fazia a ligação aérea Madeira-Inglaterra e Funchal-Lisboa com hidroaviões. Com o tempo, a Manoel Passos Freitas & C, Lda passou para os filhos: a madeirense Carolina dos Passos Freitas, Mrs. Garton por casamento, e o seu irmão Humberto. Naturalmente, a empresa tinha um escritório na capital. Chamava-se Touring Lisboa e a morada telegráfica era na Rua do Alecrim, 45.










O telegrama de socorro

É um telegrama enviado em 1964 para esta morada dos Garton em Lisboa que muda tudo — ou, pelo menos, muda tudo nesta história.

Com ele, Herbert Lester deixa de ser apenas o retrato de como se faziam negócios escuros no salazarismo — alguns com a anuência e o envolvimento activo do próprio ditador —, e passa a ser também uma janela para ver como o regime tolerava e protegia criminosos de delito comum procurados pela Interpol. 
Por ela entra João Donas-Botto, o “pai” dos carros de combate “chaimite”, William Ibershof, um procurador adjunto do tribunal federal de Detroit, Theodore Lewin, descrito pelo FBI como “um notório jogador a dinheiro e escroqueteiro” (na original tradução da PIDE), Harry Stonehill, suspeito de ter sido expulso das Filipinas por causa das suas “torpezias morais”, e muitos outros. Graham Greene charmar-lhe-ia um figo.

O telegrama para a Touring Lisboa foi enviado de uma prisão de Macau e era dirigido a… Herbert Lester.

LESTER URGENT INFORM TED
ISTANBUL HILTON
WE ARE ARRESTED MACAU
USE ALL POLITICAL INFLUENCE
BENNY LIPSON


Benny Lipson, um “negociante americano”, acabara de ser preso em Macau com mais cinco americanos e um chinês, todos acusados de terem roubado ao Casino do Estoril de Macau 1.155 contos (cerca de meio milhão de euros ao preço actual), com dados de jogo viciados.
Interceptado pela PSP de Macau, o telegrama foi transcrito e enviado para o director da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) em Lisboa, Fernando da Silva Pais, com uma gralha — “JLester” em vez de “Lester”. Além disso, o tradutor dirige a atenção para Theodore Lewin, o tal “escroqueteiro” procurado pelo FBI desde 1952, e não para Lester, visita de casa de Salazar: “Benny Lipson enviou um telegrama dirigido a Touring-Lisboa no qual informava que tinham sido presos em Macau e pedia para que TED (Ted Lewin?) usasse toda a sua influência política.” 

A interrogação dentro do parêntesis é do próprio comandante da PSP de Macau. Todos os dados de que dispõe parecem indicar que assim seja, mas o tenente-coronel Octávio de Figueiredo não tem a certeza se o Ted do telegrama é o Ted Lewin que o visitou dias antes com uma conversa esquisita. 

Apesar de tudo, a PSP de Macau faz um alerta relevante e nota que o telegrama fora enviado para a empresa dos Garton da Madeira. Mas fica a dúvida: a quem é que Benny Lipson pede o uso de “toda a influência política”? A Herbert Lester, a Ted Lewin ou aos dois?




Lester fala directamente com o inspector superior da PIDE Barbieri Cardoso e também com Marcello Mathias, o influente diplomata e ministro de Salazar

À partida, Lester é o que está em melhor posição: vive há anos em Portugal, fala e escreve português fluentemente, é um operacional multifacetado que conhece os canais dos ministérios, está habituado a pedir e a promover diligências complexas, e fala directamente com o inspector superior da PIDE Barbieri Cardoso, que a historiadora Irene Flunser Pimentel, autora de vários livros sobre a PIDE (incluindo O Caso da PIDE/DGS, Temas e Debates, acabado de sair), diz ao PÚBLICO ser quem, nesta altura, “manda na PIDE, apesar de formalmente ser o número dois”: “Barbieri era o homem dos serviços secretos e mandava na política externa europeia da PIDE, ou seja, era ele quem tinha o relacionamento com os serviços secretos internacionais.

” Lester também fala directamente com Marcello Mathias, o influente diplomata e ministro de Salazar e, já desde os anos no Funchal, almoça e reúne com vários ministros do Estado Novo. E, claro, priva com Salazar. Nos dez anos anteriores, o ditador recebeu-o 20 vezes em São Bento, com frequência à noite, depois do jantar. Lester ia sempre com Mrs. Cary Garton, mas nesta altura, conquistara alguma autonomia na sua relação com o Presidente do Conselho, que já tinha 75 anos. Trocam cartas e à margem dos Garton — cujas visitas eram um misto de reunião de família e reunião de negócios — conversam a sós sobre África. 

É Salazar quem explicita bem isso no seu Diário, os cadernos onde registou com minúcia todos os encontros dos seus 48 anos no poder. “Mrs. Garton e Lester” chegam às 22h30 e saem quase à meia-noite: “Vária sobre a concessão do jogo na Madeira — depois conversa com o Lester (vária de África e da política britânica)”; “Mrs. Garton e Lester — informações do Catanga (conversa que este teve com o Chefe de Gabinete do M.º dos Neg. Est. do Catanga, Kimba)”; “Mrs. Garton e Lester — Conversa com este acerca de África”. Pouco antes do telegrama a pedir ajuda de Macau, Lester tinha conseguido a primeira e única reunião que terá tido a sós com Salazar.
Se havia alguém em Portugal capaz de ajudar os homens detidos em Macau, Herbert Lester era um deles.


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Lewin era amigo de Mrs. Garton?

Já com Ted Lewin, o americano instalado no Hilton de Istambul no momento da burla, a história é outra. Não está perdido em Portugal, mas tem um rasto de alertas, mandados de captura e denúncias nos serviços de informação dos quatro cantos do mundo. 

Em 1964, é sócio da Sociedade Luso-Americana de Representações, Lda., que vende material eléctrico e tem como “objectivo o fornecimento às Forças Armadas de diversos materiais”, diz um relatório da PIDE consultado pelo PÚBLICO na Torre do Tombo, mas “funciona praticamente como um departamento técnico da ECOMAR, com sede em Luanda, uma importante empresa do Ultramar Português” que pertence ao milionário João Ildefonso Bordallo, de Cascais. O sócio original de Ted Lewin fora Manuel Roseta Fino, escreve a PIDE, mas em 1964 esse lugar era já do major reformado João Donas-Botto.


A PIDE faz este longo relatório sobre a empresa em Janeiro de 1964, dias depois de ter recebido uma carta anónima enviada para a Rua António Maria Cardoso ao cuidado de Silva Pais:

Exmo. Senhor,
Na Rua Castilho, 59, funciona uma firma cujo principal objectivo é o de concorrer para fornecimento de armamento ao exército e aviação. Como sócios ou colaboradores da firma figuram alguns oficiais superiores do exército na situação de reserva. Até aqui nada haveria digno de reparo se não fora o caso de alguns destes, sendo bem conhecidos pelas suas ideias anti-situacionistas e anti-nacionalistas, no mais elevado grau, poderem, ao abrigo do negócio a que se dedicam, constituir perigo para a segurança da tranquilidade em que felizmente vivemos. […] Com motivos ou sem eles, julguei do meu dever de boa nacionalista e patriota levar o assunto ao conhecimento de V. Exa.
Muito atenciosamente
Uma Portuguesa








Feita a análise, a PIDE tira quatro conclusões: 
“Não consta que até à data a Sociedade Luso-Americana de Representações, Lda. tenha feito fornecimento de armamento ao Exército ou Aeronáutica”; “estão tentando isso e até consta que se preparam para vender umas 5 ou 6 vedetas para a vigilância da costa algarvia”, e a ECOMAR de Bordallo prepara-se para entrar na sociedade com 333 contos (133 mil euros actuais). Sobre o americano, diz apenas que “o sócio Theodore Lewin não é conhecido nos meios comerciais”.

Do FBI, no entanto, Lewin era bem conhecido. Dias depois da denúncia anónima, Norman W. Philcox, assessor jurídico da embaixada americana em Paris, envia ao “Mr. Silva Pais” a sua segunda carta sobre “Theodore (Ted) Lewin, também conhecido como Theodore Lieweraenowski, nascido em Nova Iorque a 3 de Agosto de 1907”, dizendo que tem informações de que ele planeia, com Harry Stonehill, abrir um “hotel de luxo com casino” no Estoril, que teria um “investimento de cinco milhões de dólares” e seria “um dos melhores da Europa”. Lewin começa de repente a gerar papéis e papéis na burocracia da PIDE. “Parece que Theodore Lewin e Michael M. Merkiw são os indivíduos que estão a negociar o jogo do Casino do Estoril”, diz uma nota interna da PIDE.

Também Cary Garton — que entre 1942 e 1968 escreveu mais de cem cartas ao ditador, muitas delas a pedir autorização para a reabertura do Casino da Madeira na Quinta Vigia, sem licença de jogo desde 1939 — fala de um “Lewins”. Na carta que escreve a Salazar em Agosto de 1962, com papel timbrado do Boa Vista Cottage, a casa pequena da quinta do Funchal, diz:

Excelentíssimo Senhor e Meu Grande Amigo Doutor António Oliveira Salazar,
Agora as visitas e amigos que me visitam […] também me pedem o Casino aberto, e isso eu da minha parte também peço. […] O tal americano (o Sr. Lewins) telefonou-me sexta-feira de Vegas para eu lhe dizer se será possível ele vir aqui tratar dos assuntos do Casino, mas eu disse que por enquanto não. […] Ele não desiste! Já é vontade de vir para a Madeira! Realmente isto está tudo lindo, mas dinheiro não há e estamos todos aflitos."

Poderá ser outro Lewin, também americano e também interessado em casinos. Mas uma coisa é certa: quando Benny Lipson é preso com os seus alegados cúmplices, é ao amigo inglês de Lisboa, Herbert Lester, que pede ajuda. E se Lester conhecia bem Ted Lewin, é normal que este conhecesse Mrs. Cary Garton.











A burla em Macau

A burla de Macau é um filme rápido, cujas peças a PSP junta em poucos dias. A 12 de Março de 1964, o major Donas-Botto envia um telegrama ao comandante Octávio de Figueiredo que diz: “PEÇO FAVOR ATENDERES AMIGO SENHOR LEVIN PROCURARA MACAU ABRACOS DONAS BOTTO.

” Lewin chega a Macau no barco Fat Shan a 21 de Março, com um visto emitido no dia 3 pelo consulado de Portugal em Nova Iorque, já a PIDE sabia que ele era um fugitivo da justiça americana. No mesmo barco, vinham John Jackson Boyle, R.B. Legaspi, vice-cônsul filipino, e a mulher, e David Day.

No dia 23, Lewin telefona ao comandante da PSP e pede para ser recebido. Escreve Figueiredo ao director da PIDE, num relatório em papel-Bíblia de sete páginas: “Lewin apresentou-se no comando pelas 15h para pedir os bons ofícios no sentido de a gerência do Hotel Estoril de Macau permitir ali uma estadia mais prolongada”. “Trazia uma carta de recomendação do cônsul de Portugal em Honolulu” e também do “Dr. Carlos Assumpção (advogado local) e do Sr. Teodoro dos Santos”, um empresário que ficara rico com uma fábrica de malas do Aljube, ao pé da Sé de Lisboa, e tinha entretanto ganho a concessão do Casino do Estoril (cuja praça tem hoje o seu nome). 

Nesse encontro, Lewin falou do seu amigo major Donas-Botto e disse “que costuma ir a Lisboa-Estoril e pretendia em Macau estudar a possibilidade de se dedicar aqui à indústria hoteleira e de construção civil”, escreve Figueiredo. No dia 24, também no Fat Shan, desembarcam William McKinkley Barret, David Felstein e Harold Glenn Grayson. E a 28, James George Cyrus chega no hidroplanador Coloane.

Entre o instinto e os mandados de captura do FBI, alguma coisa deixou a PSP de Macau desconfiada. A 2 de Abril de 1964, chega à PIDE um telegrama com pedido urgente para envio de “todos os elementos conhecidos nessa Polícia sobre o cidadão americano TED LEWIN aqui presente há dias como turista”. 

Se a informação chegou, não foi a tempo. “Rogo V. Exa transmitir urgentemente director PIDE seguinte: grupo seis americanos possivelmente chefiados Teo Lewin aliás Ted Lewin aliás Theodore Lewin realizaram Casino esta cidade burla jogo dados viciados montante superior mil contos. Lewin saiu Macau antes realização burla”, lê-se no telegrama guardado no Arquivo da PIDE. 

Depois do desfalque na madrugada de 6 de Abril, “um dos burlões pretendeu expedir telegrama Touring Lisboa. Touring é endereço telegráfico firma Manuel Passos Freitas Companhia Rua Alecrim 45. Telegrama vai ser autorizado seguir depois este. Solicito Vexa informar reacções consequentes esse telegrama. Segue relatório via aérea. Lewin amigo major João Donas Botto, residente Estoril. Governador.”
Baralhado? 



A PIDE demorou de facto algum tempo a ver a “big picture” e a perceber que Lester fazia parte do puzzle. Demorou ou não quis ver, não sabemos. É só a 26 de Novembro de 1964, sete meses depois, que um inspector-adjunto da Secção Central/Centro de Informações (2), que tratava dos “estrangeiros e ultramarinos” nos Serviços de Segurança, dá ordens para juntar à pasta de todos estes americanos amigos de Ted Lewin um 15º estrangeiro: Herbert Lester.

A instrução diz apenas: “Para os devidos efeitos comunica-se que o Inglês HERBERT ARTHUR LESTER, com o processo individual 8494 e o processo reservado 941/53, foi atribuído o processo 1421-CI (2).” Ou seja, a pasta sobre a sociedade de Donas-Botto e Lewin, que inclui mais de 120 documentos.
O amigo de Salazar, que ainda na segunda-feira anterior estivera uma hora e meia no Palácio de São Bento, com Mrs. Garton, a conversar sobre a “sua viagem à América e pelo norte do País”, como registou o Presidente do Conselho no Diário, fora anexado pelos serviços de espionagem do Estado ao processo dos americanos procurados pela Interpol. 

Dias depois da burla no casino, o departamento de crimes comerciais da polícia de Hong Kong escreve à polícia de Macau e diz que, do grupo de sete detidos, só conhece Ted Lewin, mas que o conhece bem e desde a II Guerra Mundial: está “acusado de homicídio, roubo e rapto, mas nunca foi condenado”.
Apesar de ser brevíssima, a instrução da PIDE revela um facto interessante: Lester já tinha duas fichas nos serviços, incluindo um “processo reservado” criado em 1953. Já nenhum deles, no entanto, parece existir. 

Na Torre do Tombo, há a indicação de que os processos de Lester foram anulados pela própria PIDE e Irene Pimentel, que estudou este arquivo a fundo, alerta para o facto de haver “várias razões para anular documentos, mas nem todas ‘conspirativas’”. 

A historiadora diz também que há “centenas de milhares de processos reservados” no arquivo e que este tipo de procesos eram em norma feitos sobre “estrangeiros suspeitos de espionagem, adversários políticos perigosos, como dirigentes e funcionários comunistas, elementos dos movimentos de libertação nacional, alguns católicos progressistas ligados ao PRP/BR, organizações de extrema-esquerda e de luta armada e todos o que se relacionassem com a luta anti-colonial”. “Ter um ‘processo reservado’ podia significar que a pessoa estaria a ser escutada ou a ter intercepção postal.”






Cary Garton e Herbert Lester: nos anos 1930, Lester apareceu na quinta que os Garton têm no Funchal como perceptor de John Garton, o filho mais novo de Leopold e Cary Garton daniel rocha sobre imagem do arquivo de Carole Garton

“Eram um casal muito estranho”

“Lester era detestado pelo meu pai, tolerado pelos meus tios, gozado até ao limite pelas noras da minha avó e nunca levado muito a sério por ninguém da terceira geração de Gartons", diz Carole Garton, que já fez 70 anos e por isso tem memórias mais recuados do que o meio-irmão Patrick. “Mas todos nós tínhamos medo da avó, especialmente dos seus ataques de mau feito, e nunca mostrávamos desrespeito. As noras tinham ataques de riso por causa de Lester que nos deixavam a nós, crianças, muito intrigadas.”

Apesar disso, “no fim o meu pai dizia: ‘Ao menos, toma conta da avó’”, diz Patrick Garton, que quando nasceu, em 1969, já a avó e Herbert Lester viviam em Lisboa. “Lembro-me de o ver a preparar os remédios num tabuleiro — ele era licenciado em Química — e de ir dar-lhos à hora certa. Dava-lhe sais para isto e sais para aquilo, estava sempre a tratar dela.” Patrick Garton faz uma pausa antes de concluir o seu retrato de Herbert Lester: “Era muito austero, muito ríspido, muito seco, muito negativo e irritava-se à mínima coisa. Era uma pessoa…” Fica uns segundos à procura do adjectivo e acaba por dizer em inglês: “…uma pessoa abrasive. Metia medo a uma criança. 

Era um homem muito calado, quando falava só dizia coisas injuriosas, não sabíamos o que pensava nem o que fazia. Penso que o uncle Herbert, como nós o chamávamos, não era uma pessoa totalmente honesta”, diz por fim de rajada.

O “tio” Herbert era tão enigmático que ainda hoje se debatem na família diferentes teorias sobre a sua identidade. 
Era amigo, era procurador, era filho ou era namorado de Cary Garton? 
Numa das cartas que enviou a Salazar, o agente britânico refere-se a Mrs. Garton como “a mãe” — “A Mãe felizmente já ouve melhor embora ainda muito frágil”. 
A carta, enviada em Dezembro de 1967 do número 1 da Rua Padre António Vieira, em Lisboa, onde ele viveu dez anos com Mrs. Garton, é sobre a visita de C.C. Mojekwu, Comissário do Interior do Biafra, que acabara de autoproclamar-se como república independente da Nigéria e a cujos líderes secessionistas Portugal dava apoio financeiro e militar, facto criticado por Washington e outras potências ocidentais. 

A referência à “mãe”, no entanto, pode apenas ser um mimetismo, pois Lester sabia bem que era assim que Salazar se referia a Mrs. Garton.



Nos anos 1940, a empresária madeirense, uma mulher particularmente invulgar e frontal, começou por apresentar os filhos e as noras a Salazar, mas acabou por levar também os netos ao longo das duas décadas seguintes. Alguns deles tornaram-se tão íntimos de Salazar que passavam férias de Verão com o ditador no Forte de Santo António do Estoril

Para adensar o mistério, no seu Diário, Salazar escreveu três vezes que Mrs. Garton o visitou acompanhada pelo “filho adoptivo” (em 1950, 1951 e 1956), pessoa de quem, hoje, ninguém parece ter ouvido falar, a não ser em brincadeiras. “A minha avó era famosa pelas suas partidas", conta Carole Garton. "Para ter uma ideia: toda a vida celebrámos os anos dela num dia que, quando ela morreu, descobrimos que era inventado!”

O “filho adoptivo” seria o próprio Herbert Lester, como se chegou a dizer no Funchal? É improvável. Essa versão existirá por causa da diferença de idades entre os dois (Cary Garton era 20 anos mais velha do que Lester) e porque entre os 14 e os 18 anos estudou piano na Royal Academy of Music de Londres. Mas isso foi entre 1899 e 1903 e, no Arquivo da PIDE, Lester é dado como tendo nascido em 1906, em Warrinkson, Inglaterra, quando ela já regressara à Madeira.

Patrick Garton, que tinha 16 anos quando a avó morreu, lembra-se sobretudo da imagem dos dois, já no fim, a chegarem à quinta do Funchal, vindos de Cascais para visitar a família: “Ele com o seu grande chapéu antigo dos anos 1920 (parecia um gangster) e ela de cadeira de rodas… eles eram mesmo um casal muito estranho… muito estranho…”. Em muitas das fotografias dos álbuns de família dos Garton, Lester é o único com chapéu. “Ele fazia tudo por ela. Cozinhava para a avó e fazia uns ovos escalfados com queijo que eram muito bons, mesmo bons, e que a Gan [corruptela de “Granny”] adorava”, conta Patrick Garton. “Mas acho que era uma pessoa bastante manhosa.”




Ele fazia tudo por ela", recorda agora Patrick Garton. E acrescenta: “Mas acho que era uma pessoa bastante manhosa.” Herbert Lester entre o clã Garton.

“Olhe, promovi-o a branco”

Os serviços secretos do Estado Novo acabaram por chegar a uma ideia parecida. Nada disto, porém, parece ter complicado as actividades de Lester e, seguramente, não fechou a porta de São Bento.


É verdade que, depois da burla de Macau e do telegrama a pedir-lhe ajuda, Lester deixou de visitar Salazar ao ritmo dos anos anteriores. Mas 1964 é também o ano em que o piloto Cecil Garton e a sua primeira mulher, a francesa Christiana Andrée Stark Garton, iniciam um longo processo de divórcio. Salazar passou a almoçar, todos os domingos, com Christiana, que tratava sempre por “querida amiguinha” e com quem discutia literatura e música em francês, e Mrs. Garton, para além de ter entretanto 80 anos, deixara de dar-se com a nora. Perante o novo cenário, a relação entre Salazar e Lester passa a fazer-se por carta e por telefone.


Não há informação sobre se Silva Pais ou Barbieri Cardoso alguma vez informaram Salazar sobre o envolvimento do seu amigo Lester com os americanos de má reputação. O que se sabe é que, depois de tudo isto, o ditador continuou a trocar cartas com o enigmático “agente de negócios” e até o recebeu mais duas vezes. Por coincidência, foi no primeiro encontro que tiveram depois de a PIDE ter associado Lester ao dossier dos ladrões de casinos que Salazar registou Lester no seu Diário pelo nome próprio, coisa que nunca tinha acontecido até então e que não se repetirá. “1965: 5ª feira, Janeiro, 21 — 15h/16h: Mrs. Garton e Herbert — vai a Inglaterra — com o último, vária acerca de Tshombé."

Moisés Tshombé, que em 1960 declarara unilateralmente a secessão do Catanga, uma província do Congo Belga, e não tinha muitos amigos na África que tentava libertar-se dos colonos europeus, ocupou uma parte central da relação entre os dois. É a ele que o político congolês parece contactar sempre que quer ser recebido por Salazar. A 7 de Outubro de 1963, Lester escreve-lhe:



Excelentíssimo Senhor Presidente,
O Tshombé está em Madrid e pede-me para apresentar a Vossa Excelência os seus respeitosos cumprimentos e pede o favor de o Senhor Presidente o receber antes de ele voltar a África; pois ele gostaria de pôr Vossa Excelência ao facto [sic] de assuntos importantes, ao mesmo tempo ele precisa conversar com Vossa Excelência sobre coisas futuras. O Tshombé viria num automóvel e as coisas com certeza seriam feitas de modo a que a sua vinda a Portugal fique segredo [sic]. Ele vai-me telefonar esta noite portanto eu pedia o favor de a Sra. Dona Maria me telefonar, sim ou não, para assim eu poder dar resposta. Agradeço a Vossa Excelência. Os meus mais respeitosos cumprimentos e creia-me amigo muito dedicado. Herbert Lester

E assim foi. Depois de ler, o Presidente do Conselho deu instruções à sua fiel governanta, Maria de Jesus Caetano Freire, como se percebe pela carta que Lester escreve no dia seguinte:

Pouco antes do telefonema da Sra. D. Maria, pelo qual muito obrigado [sic], eu tinha falado com o Monsieur Martens, chefe de gabinete do Tshombé, que me disse: "O Pai das duas pequenas (Kimba) mandou dizer ao Grand Père (Tshombé) que o momento é extremamente crítico e para ele regressar o mais depressa possível, contudo antes de voltar, o Grand Père tinha grande empenho em conversar com o seu Patrão."

Nesse mesmo dia, Salazar discute com o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, a eventual vinda de Tshombé a Lisboa. A 13, Lester manda um breve recado:

Vou buscar o meu amigo e faço conta passar em Caia na Terça-feira próxima ou o mais tardar na Quarta. O meu carro é um PLYMOUTH, e a matrícula IG.37.73, sendo a cor preta.

Salazar escreve a azul, num canto, que falou com a PIDE a “14-X-963 só 18”. O “amigo” muito provavelmente é Tshombé. Em “meados do Outono de 1963 vem a Lisboa um visitante inusitado: Moisés Tshombé”, escreve Franco Nogueira em A Resistência – 1958-1964, título do quinto volume da sua biografia de Salazar (Civilização Editora, 1984). “Tendo abandonado o Catanga, viaja pela Europa e por sua iniciativa toma contacto com a polícia portuguesa. Esta organiza a sua deslocação a Portugal, com o auxílio da polícia espanhola e Tshombé passa de noite a fronteira do Caia. É recebido por Salazar ainda no Forte do Estoril.” Franco Nogueira, que não se refere a Lester, acrescenta que “as duas polícias conseguiram manter completo segredo”.

Tshombé “era muito controverso pois, ao mesmo tempo que tinha ambições políticas no Congo — chegou a ser primeiro-ministro — era visto com enorme desconfiança e hostilidade pelos anticolonialistas, devido ao seu papel na secessão do Catanga, em aliança com interesses económicos belgas”, diz o embaixador Bernardo Futscher Pereira, que há anos investiga a diplomacia de Salazar e acaba de publicar Crepúsculo do Colonialismo – A Diplomacia do Estado Novo, 1949-1961 (Dom Quixote, 2017). “Mostrar-se ao lado de Salazar seria tóxico."



Nesse primeiro encontro, segundo contou Franco Nogueira, Tshombé disse a Salazar que os EUA estavam a controlar o governo congolês de Cyrille Adula, que a ONU respondia a “poderosos interesses económicos internacionais” no Congo e que “a unidade africana é um mito”. Os dois discutem as bases militares “antiportuguesas” no Congo, de onde eram feitos ataques às tropas portuguesas em Angola. Se voltasse ao poder, trabalharia para "suprimir as bases". Segundo o Diário de Salazar, foi a 1 de Novembro de 1963 que os dois se encontraram pela primeira vez.

Investir no Catanga e no Biafra fazia parte da estratégia de “semear a desordem interna e o caos entre os inimigos de Portugal”, escreve Filipe Ribeiro de Meneses no seu Salazar – Uma Biografia Política (Dom Quixote, 2010). O ditador recebe Tshombé mais três vezes: em 1964, 1965 e 1966. Sempre em grande segredo. "Salazar percebia que, para ser eficaz, o seu apoio a Tshombé devia manter-se secreto — embora fosse um segredo de polichinelo", diz Futscher Pereira. É a seguir ao terceiro encontro que Salazar parece rendido. Em conversa com Franco Nogueira, diz-lhe isto do líder congolês: “Gostei do homem. Olhe, promovi-o a branco.” Com a ajuda de Lester, Salazar financiou Tshombé durante anos. O Catanga tem uma longa fronteira com Angola e por isso apoiar o líder secessionista significava “estabilizar a fronteira com Angola, ter armas para interferir no Congo e proteger os interesses económicos e as suas ligações com Angola através do caminho de ferro de Benguela”, diz o embaixador, que agora é assessor diplomático do primeiro-ministro.

Em Dezembro de 1966, o operacional inglês está a montar uma operação para fazer regressar Tshombé ao poder.
Após dois meses de trabalhos e despesas enormes, o programa para o regresso do P.T. está concluído. Além de nós, apenas uma pessoa em Portugal o conhece em todos os seus detalhes, o Inspector Superior da P.I.D.E. Senhor Barbieri, e só este. Temos trabalhado com esse Senhor, que reputamos ser o maior técnico do País nestes assuntos, já em outras operações anteriores que são do conhecimento de Vossa Excelência [...]. Estamos em condições de iniciar a operação no prazo máximo de 48 horas.

Não resultou. Tshombé não voltou ao poder, exilou-se em Espanha e acabou por morrer na Argélia, aos 50 anos e em estranhas circunstâncias — e ainda antes de Salazar. Foi como representante da empresa de José Morais Zoio, a famosa Norte Importadora, Lda. – War Material, com sede na Avenida da República, em Lisboa, que Lester fez muitas pontes entre quem tinha dificuldade em comprar armas e quem estava disposto a ajudar com "facilidades", "favores" e "empenhos". Pelo menos desde 1961, quando Lester e Mrs. Garton perdem um negócio de venda de armas para a Alemanha, queixam-se a Salazar de que "o negócio de armamentos é uma luta feroz" e viram-se para a África, onde a guerra colonial acabara de rebentar em Angola e está tudo a mexer.



A primeira vez que Lester fala sobre África com Salazar (ou pelo menos a primeira vez que sabemos que isso aconteceu) é a 14 de Setembro de 1961. "Vária de África". Um ano depois, na primeira carta que lhe escreve sobre o continente, parece que não fizeram outra coisa senão falar disso:

Há em depósito em Lunda [hoje correspondente a parte da República Democrática do Congo, de Angola e da Zâmbia] munições de calibres para os quais nós não temos armas. Os nossos amigos têm as armas, mas não as munições, e têm uma urgência vital em conseguir fornecimento. A mandar daqui, T.A.P. pode dispor de um avião; […] teria de fazer 5 ou 6 viagens de ida e volta, precisando pelo menos de 4 dias cada viagem de ida e volta.

Trata-se de:
1.000.000 munições de 77.
350.000 munições '50.
10 peças sem recuo de 106
1000 munições de 106.
O material é americano, inglês e alemão […]. Se fosse possível entregá-lo seria uma grande ajuda.

As coisas não correm como Lester pretende. Três dias depois, a 17 de Novembro de 1962, o agente britânico envia nova carta, sempre em português.
Lamento profundamente ter que incomodar Vossa Excelência outra vez, mas cumpre-me informá-lo que ainda não seguiu material nenhum. Pela terceira vez, estava o material carregado nos camiões quando o Senhor Governador deu ordem para não seguir, pois tinha recebido ordens do Ministério do Ultramar e do Ministério do Exército que não condiziam.
Outros negócios correram melhor, como se lê na carta de Agosto de 1967.

Vossa Excelência vai gostar de saber que apesar das inúmeras dificuldades consideradas por todos [...] como sendo insuperáveis, depois de 14 meses de incessantes trabalhos, sempre se conseguiu obter os motores de avião que os rodesianos tanto necessitam e sobre os quais o [primeiro-ministro] Ian Smith tem pedido notícias todas as semanas. É-me especialmente grato poder informar Vossa Excelência que [...] foi possível, para o bom nome de todos e em total refutação das más-línguas, baixar o preço para os rodesianos em 25%, ou seja, menos mil contos em cada motor.

O progresso era, no entanto, aparente. Seis meses depois, Lester pede ajuda.

Depois de 2 anos de trabalhos, o mês passado chegaram a Lisboa os 42 motores para a aeronáutica rodesiana. [...] Ainda em véspera do Natal, não podendo ser de outra maneira, pagaram-se cem contos de direitos e tiraram-se 8 motores da alfândega, que seguiram logo para baixo. Há muita urgência em despachar os [outros] 34. Os direitos chegam a 425 contos. 
Como não se pode fornecer provas de exportação, os motores estão ainda sujeitos ao Imposto de Transacção [...]. O chefe de estado-maior da aeronáutica esteve aqui no sábado e disse-me que depois de tantos favores recebidos e provas de amizade, ele não podia crer que o governo [...] possa desejar cobrar as taxas como se se tratasse duma importação comercial. É impossível tratar-se do caso pelas vias diplomáticas.

Num cartão identificado como "secreto", Franco Nogueira resolve a questão: "Como o Estado é livre de cobrar ou não os direitos que entender, penso que não haverá mal em facilitar o desembaraço dos motores, falarei neste caso com o Sr. Ministro das Finanças na 2ª feira, se Vossa Excelência não determinar o contrário."
Nas 40 cartas que envia a Salazar, há diferentes níveis de segredos. 
Em 1967, Lester pede uma reunião com o primeiro-ministro de Israel num modelo "incógnito e em segredo". Em 1968, transmite uma mensagem do ministro Mojekwu, pedindo a Salazar autorização para que o governador de São Tomé deixe transitar mercadorias para a República do Biafra e "ceda facilidades ao agente Mr. M. Brides". “O transporte aéreo do Biafra para São Tomé será feito secretamente durante a noite e a partir daí para a Europa por mar", assegura no final. E, a um nível ainda mais opaco, esta, de 12 de Junho de 1964:

A África do Sul está muitíssimo ansiosa para adquirir material. Já mandou quatro comissões sem nada conseguir. O Senhor Embaixador pede-nos encarecidamente para fornecermos morteiros e outro material disponível. Para isso, eu precisava de saber se o Senhor Presidente autoriza que tratemos do assunto nos mesmos moldes utilizados para os fornecimentos a Katanga, quer dizer, sem papéis, e possivelmente só com o conhecimento do Senhor Tenente-coronel Silvério Marques.

Salazar sublinha várias frases com o seu grosso lápis azul, incluindo “sem papéis”. O modelo inspirou os vizinhos. A 15 de Julho de 1965, Lester envia esta carta para São Bento:
Peço desculpa de vir novamente incomodar Vossa Excelência, mas tendo sido procurados pelo Governo da Rodésia do Sul para o fornecimento de armas, nos mesmos moldes em que fizemos para o Katanga, venho perguntar se Vossa Excelência nos autoriza a tornar extensíveis à Rodésia do Sul as facilidades que nos concedeu para a África do Sul.

O Presidente do Conselho marca um ponto de interrogação a azul. Que facilidades foram essas? O ministro da Defesa Nacional explica que, para o material de fabrico nacional, os fornecimentos devem ser feitos pelo "protocolo" e "portanto sem a intervenção dos intermediários". Já para as importações do estrangeiro, "as facilidades que se pretendem são a autorização de importação". Estas licenças de importação eram sempre um desafio novo, dependendo das regras do país fornecedor. 

Tanto Lester como Donas-Botto acabarão a queixar-se de o governo lhes ter retirado a confiança. Em Abril de 1967, Lester queixa-se de que Secretariado Geral da Defesa Nacional deu ordens a todos os departamentos para riscarem a Norte Importadora Lda. "com fundamentos de não merecer confiança comercial".

O Senhor Inspector Superior Barbieri da P.I.D.E. informou que Vossa Excelência era da opinião de que a informação não poderia ser bem fundada. Infelizmente não só era verdade como a posição continua na mesma. [...] Peço ao Senhor Presidente que me desculpe por tirar-vos tempo com este assunto, mas o prejuízo causado injustamente é de tal maneira grave e não posso crer que não merecemos a confiança de Vossa Excelência.









“Péssimo elemento sem escrúpulos”

Não sabemos o que Lester fez com o pedido de ajuda de Macau, se alguma coisa, quando ainda gozava de confiança no sistema. Sabemos apenas o desfecho da história. 

A 5 Dezembro de 1964, o comandante Figueiredo informou o director da PIDE que os “seis americanos e um chinês” tinham sido "libertados sem julgamento" e “expulsos da Província de Macau” por serem “considerados estrangeiros indesejáveis”.
E Ted Lewin? “Lewin saiu Macau antes realização burla”, dizia já o telegrama do governador. Depois de Istambul, o “súbdito americano" voltou para Lisboa, onde entrou “pela fronteira do aeroporto” a 30 de Maio, dois meses depois da burla, e alojou-se no Hotel Albatroz, em Cascais. Nas barbas da PIDE. 

Em Junho, o inspector-adjunto da Divisão de Estrangeiros pergunta à Secção Reservada “se há inconveniente em que seja autorizada nova prorrogação do visto”. É plausível que tenha circulado à vontade. Preso, não foi. Dois anos depois, quando a Interpol de Zurique pergunta se as procuras de Lewin "foram até agora negativas" e pede para "indicar se continuam a procurar esta pessoa", um inspector da PIDE responde “já não se tornar necessário a continuação da diligência”. 
E em 1967, quando a embaixada dos EUA em Roma escreve à PIDE a informar que recebera informações de que "Theodore Lewin está a viver no Hotel Estoril-Sol, apartado 1605, Cascais", ninguém se impressiona na António Maria Cardoso. Os americanos dizem que "Lewin é conhecido por associação com traficantes de narcóticos" e que, "com tal reputação, existe a possibilidade de que possa estar a usar Portugal como base de operação para as suas actividades ilícitas", mas os serviços de informação do Estado Novo respondem secamente: “Não lhe têm sido assinaladas quaisquer ligações com elementos com cadastro criminal."

É justamente quatro dias antes do regresso de Lewin a Portugal, em Maio de 1964, que o seu amigo Harry Stonehill – o das "torpezias morais" com quem quer abrir um “hotel de luxo com casino” no Estoril – sai do Hotel Ritz, em Lisboa, dando ao agente da PSP António Silva Ribeiro oportunidade para fazer um relatório original. “Consta que o caso se passou da seguinte maneira", diz o agente à PIDE. Stonehill "colocou diversos papéis, fotocópias e um ou dois rolos de filme, dentro da sanita, pertencente ao seu quarto e pegou-lhe o fogo, tapando a mesma com o tampo respectivo, que é de plástico, pouco tempo depois ardiam as fotocópias, os filmes e a tampa da sanita, o que levantou grande celeuma perante os empregados. 

Desconhece-se porém a natureza das fotocópias e dos filmes". Sabemos também pelo diligente Silva Ribeiro que Stonehill, sem mostrar embaraço, regressou ao Ritz no mês seguinte.
Nesse mês de Maio de 1964 Lester escreve três cartas a Salazar sobre o Casino do Estoril, apresentando-se como parceiro do "Senhor Bordallo" (ter-se-ia tornado entretanto no novo sócio de Lewin, como a PIDE previra uns meses antes?), que estava interessado "em tomar conta do Casino e das Praias do Estoril e fazer deles uma atracção mundial".

Em Outubro de 1968, já António de Oliveira Salazar tivera o acidente da cadeira no forte do Estoril, os serviços de informação da Legião Portuguesa abrem uma ficha para Herbert Lester, também arquivada na Torre do Tombo. Só há uma coisa que surpreende. Diz a ficha: “É indivíduo para 60 anos, nacionalidade não conhecida – Tipo alto. Faz parte da ‘Norte Importadora’, era procurador de Miss Gaston [sic] da Madeira, irmã do Passos Freitas. Foi expulso da Firma que é Agência de Turismo, Comércio Geral, Importação e Exportação, etc. Trata-se de um péssimo elemento sem escrúpulos, baixo carácter, vai frequentemente fora e tem relações muito duvidosas.”



Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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