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sábado, 15 de fevereiro de 2020

Portugal à lei da bomba


 

Centenas de atentados e acções violentas levados a cabo pela rede bombista de extrema-direita deixaram Portugal a ferro e fogo no pós-25 de Abril. O Verão Quente de 1975 fez subir a temperatura política, mas os atentados mais violentos aconteceram já em 1976, depois da alegada "pacificação" permitida pelo 25 de Novembro. No livro "Quando Portugal Ardeu", com recurso a documentos e testemunhos inéditos, o jornalista Miguel Carvalho conta uma outra história da revolução. Levanta o manto de silêncios que foi estendido sobre o país, contra a amnésia sobre o que se passou em Portugal há 40 anos.
Portugal à lei da bomba



Num dos seus raides da Póvoa para o Porto, Ramiro Moreira tinha colocado uma série de bombas debaixo de carros de militantes de esquerda, mas uma não explodiu. Intrigado, pois como operacional orgulhoso que era não admitia que uma bomba sua não rebentasse, pegou no engenho e continuou o seu caminho. Perto da saída para a Maia, abriu o vidro e disse: "Ora vamos ver se esta merda rebenta ou não" e atirou a bomba, fazendo explodir um barracão do PPD.

O episódio com o mais activo operacional da rede bombista, que na altura desconcertou a Polícia Judiciária (PJ) porque "só poderia ser da autoria dos comunistas", é uma das histórias da violência política do pós-25 de Abril, relatada pelo jornalista Miguel Carvalho no livro agora publicado "Quando Portugal Ardeu".

Entre meados de 1975 e Abril de 1977, o país assistiu a quase 600 atentados e acções violentas da extrema-direita. Operacionais do Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), liderado por António de Spínola, fizeram ir pelos ares automóveis, casas e escritórios de quem era conotado com a esquerda. Multiplicavam-se os ataques a sedes do PCP num país profundamente dividido, à beira da guerra civil.

Ramiro Moreira chegou a ter o número sete no cartão de militante do Partido Popular Democrático - que mais tarde passaria a PSD -, mas as suas actividades desagradavam a Francisco Sá Carneiro. "Uma coisa era fazer segurança aos dirigentes e envolver-se em escaramuças. Mas colocar bombas, participar em atentados e manter-se ligado ao PPD tornava a militância insustentável e reprovável" para o fundador do partido, relata Miguel Carvalho. Num dia de Novembro de 1975, chamou o operacional a sua casa e disse-lhe: "Ou sais do partido ou expulso-te."

Sá Carneiro, sublinha o jornalista, "viu mais além do que a simples táctica" e percebeu que, "tanto quanto ele pudesse, o partido tinha de entrar numa linha que não resvalasse para caminhos que ele condenava". Um exemplo, diz o autor de "Quando Portugal Ardeu", que o PS podia ter seguido. Mas os socialistas, aponta, "lançaram fósforos em fogueiras que já ardiam".

Fotografia de 1974, em que numa mesa e em pose formal, aparecem, da esquerda para a direita, Jorge Terroso, Francisco Sá Carneiro e Ramiro Moreira, quando era dirigente e segurança do PPD no Porto.
Fotografia de 1974, em que numa mesa e em pose formal, aparecem, da esquerda para a direita, Jorge Terroso, Francisco Sá Carneiro e Ramiro Moreira, quando era dirigente e segurança do PPD no Porto.
Arquivo Pessoal do Coronel Ferreira da Silva
"O PS teve um grau de envolvimento muito grande com a rede bombista e com os seus objectivos. Achou, a determinada altura, que valia tudo para combater o PCP e isso significou, em certo momento, uma cumplicidade com o radicalismo de direita", afirma Miguel Carvalho, explicando que essa foi uma das grandes surpresas da sua investigação.

Como recorda, o primeiro acontecimento de grande violência após a revolução de Abril aconteceu em Rio Maior, em Junho de 1975. "Foi um momento-chave, em que várias sedes foram incendiadas, em que a Confederação dos Agricultores de Portugal (como viria a chamar-se meses depois) teve um papel relevante na agitação e a Igreja deu os primeiros sinais de que se poderia envolver no combate à ameaça comunista", conta o jornalista, sublinhando que dias depois dos acontecimentos "Mário Soares vai à região participar num comício onde afirma: 'Era bom que o exemplo de Rio Maior fosse seguido noutras zonas do país'."



Anos mais tarde, em Dezembro de 1991, é Mário Soares que assina o indulto a Ramiro Moreira, condenado a 20 anos de prisão. Miguel Carvalho fala em duas intenções do antigo Presidente da República. Por um lado, reconhece que essa foi "uma tentativa sincera de pacificar o país, numa altura em que se procurava encontrar um perdão para o terrorismo de extrema-esquerda". Por outro, "era também uma intenção que essa pacificação levasse a uma amnésia propositada sobre esta época de violência política".

Para Miguel Carvalho, "há uma zona de sombras" sobre a rede bombista de extrema-direita, cujas acções continuaram mesmo depois de terminado o Verão Quente de 1975.


O jornalista é peremptório: "A data que frequentemente nos dizem que é a da pacificação e da normalidade democrática, o 25 de Novembro de 1975, não o é de todo." Os atentados bombistas mais violentos e mortais ocorrem precisamente em 1976. "Os meses de Abril e Maio são os mais sanguinários: é assassinado o padre Max, a embaixada de Cuba em Lisboa vai pelos ares, matando dois funcionários diplomáticos, um jovem morre na sequência do rebentamento de um carro armadilhado junto à sede do PCP na Avenida da Liberdade, em Lisboa, uma bomba explode numa residência em São Martinho do Campo, Santo Tirso, matando Rosinda Teixeira, a mulher de um trabalhador fabril", descreve.
Em São Martinho do Campo (Santo Tirso), a 21 de Maio de 1976, Rosinda Teixeira morreu na sequência de uma bomba colocada na sua casa por Ramiro Moreira. O marido tinha simpatias de esquerda.
Em São Martinho do Campo (Santo Tirso), a 21 de Maio de 1976, Rosinda Teixeira morreu na sequência de uma bomba colocada na sua casa por Ramiro Moreira. O marido tinha simpatias de esquerda.
Arquivo de Nelson Teixeira
"Ninguém explica como é que o 25 de Novembro é a data da pacificação e os atentados continuam", salienta, lembrando a resposta dada por Ramiro Moreira, na confissão que fez na PJ quando foi detido em Agosto de 1976, de que "o que interessava era haver confusão para que os grandes negócios de armas, de droga, e de divisas continuassem. O que interessava era ter a polícia ocupada com as bombas para eles andarem nos seus negócios." De Coimbra para cima, os operacionais sentiam-se protegidos a nível policial, militar e político, sustenta.

As costas largas dos comunistas

E que papel teve o PCP? O PCP não se meteu em atentados, mas admitiu ter colaborado em assaltos a sedes de outros partidos. "O PCP cometeu muitos erros, excessos, como a extrema-esquerda, mas teve as costas largas para muita coisa naquele período. Para o cidadão comum, na altura, tudo era culpa do PCP", diz Miguel Carvalho, dando o exemplo do cerco ao congresso do CDS no Porto, em Janeiro de 1975. "O próprio Freitas do Amaral atribui, nas suas memórias, responsabilidades ao PCP quando está mais do que provado que não as teve, tendo em conta declarações de dirigentes de outras formações de extrema-esquerda que se vangloriam de ter organizado o cerco àquele congresso", remata.

Também para o outro extremo as costas dos comunistas foram largas. "Há documentos da PJ e da PJ Militar que demonstram que as próprias organizações e operacionais ligados à rede bombista incendiavam sedes de direita para justificar os ataques que faziam à esquerda", afirma Miguel Carvalho. A Ramiro Moreira, exemplifica, "foi pedido que pusesse bombas em igrejas e chegou a ser planeada uma operação no Santuário de Fátima, mas ele recusou".


Num país em risco de guerra civil, cruzou-se a tragédia e a comédia. "Houve coisas 'fellinianas'", lembra o autor, remetendo para a história dos Corrécios, um gangue de Braga que também fez serviços políticos, cujo líder "entrava a cavalo em cafés da cidade e mandava sair os comunistas". Para o jornalista, "havia amadorismo, mas também uma noção clara do quanto estavam protegidos". Os operacionais da rede bombista "andavam tão à vontade que contavam nos cafés as histórias do que faziam. Estavam no território deles e sentiam-se impunes". Como sublinha, os seus "feitos" tinham o apoio dos militares do Norte, eram bem vistos pelos senhores da terra, pelas paróquias e igrejas e pelo cidadão comum mais conservador.

Quatro décadas depois dos acontecimentos que puseram o país a ferro e fogo, Miguel Carvalho reconhece que "as pessoas que controlavam a rede bombista, apesar de algum amadorismo, conheceram melhor o país". Na altura, "a esquerda achava que umas simples excursões de militares do Movimento das Forças Armadas (MFA) ao Norte, nas campanhas de dinamização cultural, seriam suficientes para que o povo esquecesse 48 anos de ditadura e se entregasse a um país prometido", frisa. "Não foi assim, como se viu: quando chegavam, o trabalho mediático já tinha sido feito, com grande apoio da Igreja", acrescenta. Para o jornalista, "as forças mais à direita revelaram um conhecimento maior do povo e souberam aproveitar melhor os ressabiamentos e as frustrações".

Condenados e absolvidos

Ramalho Eanes é eleito Presidente da República a 27 de Junho de 1976. O país quer serenar. Os primeiros operacionais da rede bombista são detidos a 6 de Agosto e denunciam nomes. Depois de avanços, recuos e reviravoltas, o julgamento da rede bombista acaba em 1982. Miguel Carvalho não tem dúvidas de que os operacionais ou eram mercenários ou idiotas úteis, como Ramiro Moreira admitiu ter sido. "O julgamento acaba sem que alguma vez se tenham sentado no banco dos réus alguns dos principais financiadores. Outros sentaram-se, mas foram absolvidos ou fugiram."

Ramiro Moreira é nessa altura condenado a 20 anos de prisão, mas foge para Espanha sem ouvir a sentença. Chega a ser admitido nos quadros da estatal Petrogal no país vizinho e entra e sai de Portugal quando quer, até para ver jogos do Benfica.

Miguel Carvalho questiona os motivos por que o julgamento foi feito num tribunal militar. "Se tivessem sido julgados nas instâncias civis, a história era outra, e a democracia tinha amadurecido com uma consciência mais profunda dos seus heróis e vilões", considera. Nas instâncias militares "permitiu-se que muita gente escapasse e que o julgamento tivesse sido uma farsa, que protegeu quem de facto manobrou nos bastidores e acabou por condenar apenas a plebe".


"Não é possível acreditar numa parte da sentença que diz que meia dúzia de operacionais se encontravam à mesa e decidiram os quase 600 atentados ou acções violentas que este país teve em dois anos de uma forma amadora", sustenta.

Para Miguel Carvalho, foi o trabalho "nunca reconhecido" da PJ, que investigou a rede bombista, que permitiu a detenção dos seus principais elementos. "Serviu para conhecermos pelo menos uma pequena parte do que foi aquele período", sublinha, lembrando que ainda há muito por desvendar. É o caso do assassinato do industrial Joaquim Ferreira Torres, um dos financiadores da rede, em 1979, quando ameaçou revelar o que ainda não se sabia dos meandros do MDLP caso tentassem pô-lo novamente em Caxias.

O jornalista lamenta que as vítimas do bombismo tenham sido esquecidas, que as famílias nunca tenham sido ressarcidas. Com recurso a documentos e testemunhos inéditos de alguns dos principais intervenientes da História que se fazia há 40 anos, Miguel Carvalho não tem dúvidas do muito que há ainda por descobrir sobre aqueles que quiseram fazer em Portugal política à lei da bomba.
ENTREVISTA

Miguel Carvalho


PERDÃO FOI DADO PARA PROTEGER BIOGRAFIAS 

O jornalista lamenta que quando se começou a desenhar a chamada geringonça se tenha voltado a repetir em Portugal um discurso com o mesmo objectivo de há 40 anos.

Qual foi o objectivo deste livro? Lembrar as vítimas desta época que foram esquecidas? Recordar os responsáveis pela violência neste período da nossa história?
Não há nenhum objectivo de ajuste de contas. Há neste período uma zona de sombras, maior do que eu imaginava antes de fazer o livro, que o jornalismo tem obrigação de trazer para a claridade. Esse período é muito analisado com narrativas de sentido único, de que estivemos à beira de uma ditadura de esquerda, que o PCP e a extrema-esquerda quiseram impor um regime comunista. É essa a narrativa oficial. Mas isto não é preto e branco e era importante que as pessoas interiorizassem que as direitas não foram tão civilizadas, ordeiras e democráticas, como às vezes parecem fazer crer. Esse foi um dos objectivos, sem deixar de mostrar que aquela época foi de excessos, muitos deles compreensíveis depois de 48 anos de ditadura, mas outros não.

Como foi possível que durante dois anos o país tenha sido palco de quase 600 atentados?
Ramiro Moreira, o autor de dezenas de atentados, diz a certa altura que era preciso continuar com as bombas para lançar a confusão e avançar com um regime o mais à direita possível. Ferreira da Silva, que é uma figura-chave no livro, que enquanto capitão da PJ Militar coordenou as investigações à rede bombista, diz que estivemos à beira de uma ditadura de extrema-direita. Havia gente descontente com o 25 de Abril, consciente do que estava a fazer. Nas zonas rurais havia desinformação e aí houve uma ajuda da Igreja.

Em 1982, quando terminou o julgamento da rede bombista, o país queria esquecer e regressar aos brandos costumes? Isso justifica a cortina de silêncios?
Alguns dos homens que fizeram o 25 de Novembro estiveram altamente comprometidos com as acções da rede bombista, mesmo não tendo feito parte dela. Mas a determinada altura acharam que, para conquistar o mínimo de razoabilidade democrática e para que as instituições começassem a funcionar, era necessário apagar o seu comprometimento com tudo o que tinha ardido e de alguma maneira instalar um regime que fosse relativamente aceite por todos. Institucionalmente, foi dado um perdão com objectivos em alguns casos muito interesseiros, para proteger biografias e percursos.

Mais de 40 anos depois da época em que Portugal ardeu, o país voltou a ter uma linha clara a separar esquerda e direita?
Há duas décadas que eu acumulava papéis, testemunhos, livros sobre o papel da direita neste período, mas o clique para este livro foi quando se começou a desenhar um acordo entre as várias forças da esquerda que estavam desavindas desde o 25 de Abril, a chamada geringonça. Assisti, li nas redes sociais e em colunas de opinião, coisas escandalosas, de um desconhecimento doentio do que se passou naquele período. Muito se escreveu com o mesmo objectivo de há 40 anos. Em pleno século XXI, vi escritas as mesmas barbaridades que se escreveram na altura do PREC. E não há sequer a desculpa de que vem aí uma guerra civil. Vivemos numa democracia consolidada. Ver gente a fazer manifestações para combater o comunismo, a escrever nos jornais que já estavam a fazer as malas porque vinha aí um regime soviético... Agora já acalmou, as pessoas já perceberam que este Governo, que tem as suas trapalhadas, é tão criticável como qualquer outro, que a crítica é livre e que o escrutínio pode ser feito. 


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