Ana Gomes é igual a André Ventura?
Uma sondagem sobre intenções de voto nas próximas presidenciais, divulgada esta segunda-feira pelo Jornal de Negócios, faz aparecer Ana Gomes a par de André Ventura na casa dos 9% de intenções de voto. Ao ouvir a notícia, esta manhã, na TSF, a pergunta assaltou-me: Ana Gomes é igual a André Ventura?
Comecemos por recordar quem é Ana Gomes.
Ana Gomes sempre se interessou por política e foi militante do MRPP quando era estudante na faculdade de Direito - filiou-se em 1972. Mas a sua chegada ao círculo do poder deu-se na democracia, com a entrada no gabinete do Presidente da República Ramalho Eanes, onde foi assessora de 1982 a 1986, já depois de ter ingressado na carreira diplomática.
A maior parte das pessoas da minha geração conheceu Ana Gomes como a figura da diplomacia portuguesa, nos anos 90, que mais pressão fez sobre a Indonésia para que Timor-Leste, ocupada pelas tropas do regime ditatorial de Suharto, aceitasse a independência dos timorenses.
Quando esteve na Secção de Interesses Portugueses que funcionava na embaixada da Holanda na Indonésia (Portugal não tinha embaixada ali por causa da questão de Timor-Leste), começou a comprar passaportes indonésios com origem na ilha das Flores. Quando os timorenses queriam sair de território indonésio, ela vendia-os. E Ana Gomes conta este episódio, desta forma, ao jornal Público: "A procura foi tanta que inflacionámos os preços dos passaportes, passaram de 800 mil rupias para três milhões, e a população da ilha das Flores aumentou exponencialmente", revelou com, diz o jornalista que a entrevistou, "um sorriso de malícia".
Temos, pois, um antigo registo da carreira de Ana Gomes que demonstra que, apesar de ter feito toda a vida profissional nas instituições mais solenes - Presidência da República, na diplomacia do Ministério dos Negócios Estrangeiros e na União Europeia - nunca se coibiu de contornar as regras e, mais do que isso, de parecer adorar contornar as regras para alcançar os seus objetivos políticos. Fazer contrabando de passaportes indonésios, como ela contou, será, provavelmente, apenas um exemplo
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É por, para a sua natureza, parecer que as regras pouco valem que ela hoje defende Rui Pinto, tentando que a Justiça portuguesa ignore as supostas tentativas de extorsão de dinheiro a pessoas e instituições a quem o hacker terá roubado dados comprometedores por, entretanto, esses dados terem posto a nu alegados casos de corrupção no futebol, nos negócios e na política, onde as suspeitas sobre a empresária angolana Isabel dos Santos surgem em primeiro plano.
Ana Gomes entrou no PS em 2002 e especializou-se, com o tempo, na denúncia da corrupção em Portugal, o que no partido que lidou com as acusações de corrupção ao líder José Sócrates deve ter-lhe dado bastantes inimigos.
Esta discrição sobre o passado político de Ana Gomes serve-me para compor um retrato sobre como ajuízo a personagem: corajosa, mas com a mania que é justiceira; demagoga, mas com capacidade de perceber que a democracia portuguesa pode morrer se não vencer a batalha contra a corrupção no Estado; inoportuna, mas esclarecida; figura que vive das instituições, mas que passa a vida a acusar as instituições.
Quando olho para Ana Gomes, em suma, parece-me que vejo uma versão adulta da personagem do cartoonista Quino, a criança Mafalda, a contestatária.
Desconfio que se a conhecesse e fosse amigo de Ana Gomes, nunca seria capaz de lhe contar um segredo pessoal, pois não podia confiar nela, mas, por outro lado, admito que, nessa relação, se eu fosse vítima de uma injustiça, ela seria capaz de fazer tudo e mais alguma coisa para me ajudar, o que é raro.
Os quase 9% de intenções de voto que Ana Gomes obtém na sondagem que hoje é publicada sobre possíveis candidatos à Presidência da República fazem-me adivinhar que muitos eleitores veem nela o mesmo que eu: uma voz denunciadora fora da extrema-direita; uma protagonista irreverente do lado das instituições; uma personagem contraditória no jogo político que manda no país; alguém da esquerda do PS, que mantém credibilidade suficiente para ser uma líder do combate à corrupção - o principal problema de Portugal, que leva muitos eleitores a apostarem em André Ventura.
Quer isto dizer que Ana Gomes é igual a André Ventura?
Na demagogia e no perigo de acabar por ter um comportamento justiceiro, que leve à condenação pública de inocentes, talvez, mas Ana Gomes dá garantias de respeito por valores básicos da democracia que André Ventura não dá - por exemplo, a Ana Gomes é muito difícil apanhá-la numa posição classificável de racista, ao contrário do que já aconteceu com André Ventura.
Além disso, Ana Gomes não se importa de incluir o Benfica no seu rol habitual de acusações de suspeitas não provadas de corrupção, assunto que o benfiquista e comentador de futebol André Ventura evita, o que o coloca numa posição dúbia.
Portanto, Ana Gomes não é, definitivamente, André Ventura.
No campeonato do populismo anticorrupção, como parece ser a aposta de uma parte dos militantes do Partido Socialista que pretendem, com o lançamento da ideia de Ana Gomes, embaraçar a escolha de candidato presidencial do seu líder, António Costa, o nome da mulher que quer libertar o hacker Rui Pinto é, desse ponto de vista, ótimo e pode ajudar a esvaziar o crescimento de André Ventura.
É populista, o que em si não tem mal nenhum e pode até ser necessário, mas corre, porém, o perigo de ser, mesmo involuntariamente, demagoga, falseando a leitura da realidade e, dessa forma, enganando os eleitores.
Mas isto suscita-me outra pergunta a que não sei responder: combater a demagogia da extrema-direita com uma versão de demagogia à esquerda é um movimento saudável para as instituições onde, afinal, Ana Gomes sempre se sustentou? Tenho muitas dúvidas...
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