expresso.pt
José Soeiro
Para desgosto de alguns, a nossa democracia não foi outorgada pelas elites nem nasceu de nenhuma “transição”. A democracia em Portugal tem origem numa Revolução. Isto é, numa operação militar que depôs o poder fascista pela força e que desencadeou, com essa ruptura, um processo de participação popular revolucionária. Não é outra a génese da democracia portuguesa. Nasceu a 25 de abril e não foi um acidente natural - alguém teve de marcar a data, de fazer o plano e de comandar a estratégia de derrube da ditadura, sabendo que poderia ganhar ou perder, que estava a arriscar a vida.
Quem teve essa audácia, quem dirigiu essa operação a todos os títulos exemplar (incluindo na ausência de baixas!), chama-se Otelo Saraiva de Carvalho. E se é certo que a história não se faz de homens providenciais, mas do movimento dessas “placas tectónicas” que sustentam e abalam as estruturas sociais, de fenómenos coletivos povoados de heróis e heroínas anónimas, também é verdade que, em determinados momentos, para que o tempo repetitivo dos relógios seja interrompido pelo acontecimento, é preciso que haja pessoas concretas que tomam decisões concretas.
É aos sujeitos, com todas as suas contradições, e não às estruturas em abstrato, que cabe essa capacidade e essa arte de, no momento certo, aproveitando as brechas da conjuntura, mudar o curso da história. Tantos e tantas, ao longo de anos, resistiram à ditadura, organizaram clandestinamente a oposição ao fascismo, garantiram a continuidade das ideias revolucionárias, alimentaram a aspiração democrática, sofreram e morreram por isso. Otelo planeou e fez acontecer a ruptura que desencadeou a revolução.
Não há definição mais prática e objetiva de um revolucionário: alguém que faz a revolução. Otelo está na génese da nossa democracia porque era um revolucionário. Vivemos nesta democracia por conta dessa opção e não por conta dos que jamais a tiveram, mesmo se receberam de Otelo, naquela tarde, o poder (como Spínola, entre outros). Não é de mais lembrar.
Louvo por isso todos e todas aquelas que, independentemente de terem tido com Otelo as mais profundas divergências (o caso de Eanes é o porventura o mais cintilante), tiveram a elevação elementar de declarar que qualquer democrata tem uma dívida de gratidão com Otelo. Não sabemos, claro, se haveria democracia sem o seu gesto, porque a história encontra sempre múltiplos caminhos. Mas sabemos que a nossa nasceu com o gesto que Otelo planeou. Isto é um reconhecimento que ninguém pode apagar.
Sobre o caixão de Otelo dançaram-se contudo, nos últimos dias, muitas danças macabras. Os militantes do enxovalho que se acotovelaram em jornais e televisões para fixar de Otelo a imagem de um louco, de um déspota em potência ou de um assassino, quiseram usar de forma oportunista os cadáveres de outros para uma batalha que tem, verdadeiramente, pouco que ver com eles, Otelo ou com debates passados. Ramalho Eanes, Costa Gomes, Pézarat Correia ou Vasco Lourenço, todos eles testemunharam a favor de Otelo na década de 80, e não consta que fossem uns sanguinários antidemocráticos.
A morte de Otelo não é, pois, a reabertura desse processo, relativamente ao qual ele pagou um preço, negou sempre ter responsabilidade, cujo julgamento foi anulado e que ficou encerrado, nos anos 90, pelas próprias instituições democráticas com uma amnistia.
É outro o debate. Aliás, são muitos. Junto-me aos que não compreendem como é possível a democracia portuguesa não assinalar o luto de quem concebeu e dirigiu o seu momento originário. Contra a militância dos que querem diminuir ou apagar esse facto histórico, celebremos a nossa história e a inquestionável génese revolucionária da nossa democracia.
Pela minha parte, presto ainda homenagem a outros dois Otelos para além desse.
O que, à frente do Copcon, entendeu que não caberia aos militares serem a vanguarda revolucionária, mas sim a retaguarda do movimento popular, isto é, uma força de amparo à iniciativa dos que, perante a ausência de estruturas, começaram a criar com as suas próprias mãos uma outra forma de organizar a vida coletiva e a produção, a aprendizagem e a cultura, a economia e as cidades, nas comissões de moradores, nas terras ocupadas ou nas fábricas autogeridas que os patrões tinham abandonado. Celebremos sim, com os seus desacertos e dificuldades, a política como poder exercido realmente pelo povo, como imaginação do novo e não apenas administração do que existe.
E também o Otelo que, juntamente com o Zeca Afonso e com tantos outros, deu voz a essa energia popular imensa que continuava a exigir o impossível, numa candidatura presidencial que, em 1976, quis ser muito mais que uma campanha eleitoral, uma candidatura que quis ser ainda a expressão de uma espécie de réplica, porventura a última, do sismo que a 25 de abril abalou todas as estruturas de dominação e de exploração.
A revolução portuguesa, que sacudiu drasticamente a oligarquia e os privilégios foi, como diz o Fernando Rosas, o “grande susto” das elites. E Otelo foi, nesse período histórico imediatamente a seguir à Revolução, um rosto inapagável do susto histórico que desde então, e nos dias de hoje com força redobrada, as velhas elites ainda tentam exorcizar.
Sem comentários:
Enviar um comentário