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sábado, 21 de agosto de 2021

Histórias que a Cidade não conta – Manifesto74


 manifesto74.pt 


Para Orquídea era o morto que partia, só ele; e cá em baixo a vida persistia, mas uma vida dissoluta, de madrugada sem forças, (…) A vida tornava-se àquela hora quase intransitável, uma comédia tão torpe, uma beberagem tão repulsiva…

Urbano Tavares Rodrigues in Aves da Madrugada

A cidade de Lisboa, tal como outra qualquer, é um organismo vivo, é uma peça de teatro intempestiva, é um constante improviso que se conjuga numa harmonia que estranhamente flui e faz mexer cada órgão.

Infelizmente, o neoliberalismo, ideologia dominante na Europa, fomentador do individualismo desenfreado, tem tentado impor a ideia da cidade enquanto a forja de mais riqueza para o capital que, por via do trabalho, açambarca a mais-valia de quem todos os dias sai do seu “dormitório” para trabalhar. Aos olhos de hoje, a cidade, em que Lisboa é o exemplo perfeito, não é mais um organismo. É sim, um conjunto de operações de loteamento individuais que, graças à mão imaginária do mercado, se acaba por conjugar e fazer uma cidade. Nada mais é do que um somatório de edifícios e equipamentos que, se magicamente corresponderem a determinados critérios, poderá eventualmente ser considerada uma cidade. Não é um sítio para se viver, nem para se trabalhar. É um sítio para se dormir, com ou sem teto, com ou sem saneamento ou condições. É sobretudo um espaço de aprofundamento das desigualdades e da exploração.

Cabe-nos a nós, quem trabalha e estuda, ser a contra-corrente, ser aqueles que mudam tempos e mudam vontades. É preciso ouvir, aqueles que às paredes se confessam, em fados e desgarradas e que tanto nos têm para contar. Ao caminharmos pela cidade percebemos que a cidade tem duas faces. Uma é a bela cidade dos turistas, a cidade das sete colinas, à beira-rio plantada. Outra é a cidade que as colinas ocultam, onde moram os mais desfavorecidos, aqueles que incomodam as vistas dos vistos gold, dos portugueses e imigrantes de bem. Nesta face oculta da cidade moram as mulheres que têm dois e três trabalhos para se sustentarem a si e aos seus, moram os mais velhos, acorrentados por não terem mobilidade e não conseguirem sair de casa. Moram as crianças para as quais o sol não nasce, que lhes dizem que não têm futuro e que são empurradas para a marginalidade. A uns o poder político e económico tudo dá, concentram a riqueza e controlam o destino da cidade e, por consequência, o destino dos segundos. Os segundos ficam entregues ao seu fado, i.e.:  à falta de saneamento, à ausência de equipamentos, à caridadezinha, ao desprezo e, noutros casos, como se pode assistir em vários bairros, até de lixeira e aterro dos mais ricos servem.

As histórias das aves da madrugada, que Urbano Tavares Rodrigues contava, são as histórias dos nossos vizinhos, são as histórias de que ninguém quer ouvir sequer falar. Às vezes nem nós mesmos. São as histórias dos problemas que eles metem debaixo do tapete, porque é mais fácil ignorar do que ouvir, unir, transformar e resolver. Não os podemos deixar na mão, é preciso mobilizar quem a cidade esqueceu para a transformação, porque a cidade também é deles. É preciso contar a história da senhora Odete que vive num pátio que esconde uma autêntica favela, da história da D. Fernanda que foi despedida, tem um marido doente e dois filhos ao seu encargo e não consegue pagar a renda; do Sr. Duarte que possui uma deficiência devido a ferimentos na guerra Colonial, que não tem uma farmácia no bairro em que vive e o multibanco mais próximo está a 7 minutos de distância, mas que para as suas pernas se convertem em 20 minutos; do filho do Sr. Alfredo que não tem um parque para brincar, um campo para praticar desporto e que no último mês de aulas a única refeição quente que teve foi na escola. A estes, que escondem histórias reais, não podemos falhar e não podemos calar.

A solução é só uma: construir uma cidade, uma cidade de facto. Que inclua todos na sua construção em que as colinas não sirvam só para ter miradouros e manter longe da vista estas histórias. É preciso ser um organismo vivo, em constante transformação, de incansáveis e variados contributos.

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