A27 de abril de 1966, o homem mais poderoso do mundo, Lyndon B. Johnson, foi fotografado no seu quarto, na Casa Branca. Estava deitado na cama, encostado a duas almofadas, as mãos cruzadas a suportar-lhe a nuca. A cama tinha um dossel coberto por um tecido estampado, o que dava maior intimidade à cena – um contraste extraordinário porque à volta do Presidente americano estavam sentados e sem cerimónia, quatro dos seus conselheiros económicos. Democracia: um cidadão líder com outros cidadãos.
A América atolava-se na guerra que iria perder, a do Vietname, as manifestações, sobretudo dos jovens, atingiam uma violência antigovernamental rara, e o líder do país permitia-se uma foto tão coloquial e simples.
Nesse mesmo dia, 27-04-1966, o Diário de Lisboa publicava no alto da primeira página a foto de António de Oliveira Salazar sentado no seu sofá do gabinete de trabalho, em São Bento. O Presidente do Conselho de Ministros comemorava 38 anos de ter entrado para o Governo e recebia um dos seus ministros mais antigos, Arantes de Oliveira, das Obras Públicas. O ministro inclinava-se para o chefe de forma subserviente, o que podia ser um acaso, não fosse ter as mãos com dedos cruzados, à altura dos seus joelhos. Ditadura: um chefe e os outros servis (mesmo que sejam ministros).
Na página 10, daquela edição do DL, havia uma pequena notícia de 13 linhas. Dizia o que a imagem aqui o reproduz. Nessa mesma quarta-feira (o DL era vespertino, vendia-se à tarde e tinha notícias do próprio dia), o boletim oficial Diário do Governo (hoje, Diário da República), III Série, publicara a constituição da pequena empresa “Oliveiras, Salazar & Companhia Lda”.
Dois tipos chamados Oliveira e um chamado Salazar tinham-se juntado, no Porto, para vender bijutarias e confeções de malhas. Provavelmente com o sentido comercial de beneficiar com a coincidência batismal de três sócios (Alfredo Oliveira, Luís Oliveira e Miguel Salazar). Não era um acaso o nome da firma, até porque um quarto sócio, com patronímicos imprestáveis, era só Castro e Feijó, prescindira, para dar mais som à sociedade, de constar na tabuleta da firma. Oliveiras, Salazar & Companhia Lda era uma boa piada, mas numa ditadura parecia um atentado.
No notário, o nome da firma passou, no Diário do Governo, III Série, também. Mas tendo sido publicado num jornal, naquele dia, talvez fosse um torpe atentado contra a maior das instituições nacionais, ainda por cima nesse dia em festa. Parecia uma blasfémia. A Pide foi ao jornal saber quem decidira a inclusão da notícia e, no Porto, uma brigada ouviu os quatro sócios, que levaram um susto pela mania das grandezas.
No fim, um relatório policial de 15 páginas concluiu não terem sido encontradas provas de “vontade de prejudicar”, da parte do Diário de Lisboa. A história está contada no tão útil NewsMuseum, Museu das Notícias, em Sintra.
A notícia remetida para uma escondida página e em poucas linhas, num jornal selado logo na capa com o aviso “Visado pela Censura”, é uma demonstração notável da fraqueza das ditaduras e sobre o que as assusta. Mas é também uma prova do mal que nos fazem, pois, disse Sophia de Mello Breyner (O Velho Abutre), elas “têm o dom de tornar as almas mais pequenas”.
Uma redação onde houve das melhores escritas com que a língua portuguesa foi tratada – Fernando Assis Pacheco, Luís Sttau Monteiro, Artur Portela Filho, José Cardoso Pires, Beça Múrias, Mário Zambujal… lista de grandes e tão injusta de curta –, um Diário de Lisboa era obrigado a só uma pequena brincadeira, em página par e lá para o fundo, na 10.
Em liberdade sorrimos com essas pequenas brincadeiras, e certamente que em ditadura também, e até com mais vontade, embora rindo baixinho… Mas leiam as entrevistas que, em democracia, Fernando Assis Pacheco escrevia, sempre boas, mas magníficas quando feitas a gente comum (parafraseio o que Manuel Bandeira dizia do cronista Rubem Braga). Lendo-o em liberdade, ao nível que tinha de ser o dele, livre, sabemos os anos que a ditadura nos roubou.
E, roubando-nos escritas claras, quanto nos ficámos menos inteligentes! Não foram só os agentes da Pide que foram tolos perseguindo a edição do Diário de Lisboa, de 27-04-1966, obrigados a investigar a página 10. A maioria dos portugueses que teve aquela edição nas suas mãos não se deu conta que o mais estranho, e merecedor de firme investigação, vinha na capa do jornal: um ministro inclinava-se para o chefe de forma subserviente, o que podia ser um acaso, não fosse ter as mãos com dedos cruzados, à altura dos seus joelhos.
Leia mais sobre o centenário do Diário de Lisboa, aqui.
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