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Quero contar-vos uma história verdadeira: a do Manuel Morais
Contar uma história é boa maneira de chamar a atenção para uma ideia e até de a explicar como se, depois de ouvir a história, já só fosse preciso dar um remate por se ter antes lido, ou ouvido, o raciocínio. Mas contar uma história também pode ser o objectivo em si mesmo. Há uma pessoa de quem gosto muito que dizia que não há nada mais importante na vida do que contar uma história. Bom, gosto de pessoas exageradas.
Quero falar-vos do Manuel Morais, Agente Principal do Corpo de Intervenção na PSP, da sua história mas, desta vez, não para antecipar uma qualquer ideia. Contar uma história, hoje, é o fim e não um meio. É mesmo importante que se saiba o que está a viver o Manuel Morais, porque o está a viver e qual o significado que isso pode ter.
O Manuel Morais tirou uma licenciatura em Antropologia no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e, no mesmo instituto, frequentou um mestrado e escreveu a sua tese “Relação das Polícias com os Jovens dos Bairros Periféricos” agora em fase de conclusão. É um homem de esquerda mas este artigo não é sobre isso. Para o bem e para o mal não é. Dizia Nietzsche que “tudo o que se faz por amor está para além do bem e do mal”. Aqui, tudo o que tem a ver com o Manuel Morais está para além da esquerda e da direita.
Para escrever a tese entrevistou agentes da PSP do Comando do Seixal e os bairros que estudou foram os da Quinta da Princesa, Arrentela e Jamaica. Esta tese trouxe-lhe alguns dissabores junto de muitos colegas, poderia adivinhar-se o que aí viria.
Numa primeira fase e na sequência de uma entrevista que deu ao Diário de Notícias em 2018, na qual manifestou as suas posições de denúncia do que não estava bem na actuação das forças policiais, ainda teve o apoio da ASPP (Associação Sindical dos Profissionais de Polícia).
Foi vice-presidente desse sindicato, o maior da PSP, cargo que desempenhou até Maio de 2019. Não adianta tapar o sol com a peneira: Manuel Morais saiu pelo seu pé mas tratou-se de uma saída forçada depois de trinta anos de vida sindical a defender os interesses da sua classe profissional.
A razão?
As declarações que prestou, desta vez numa reportagem da SIC, sobre intervenções policiais violentas nas zonas urbanas sensíveis. Nessa reportagem, expressamente reconhecia a existência de racismo (na verdade é uma palavra que evita por recusar a ideia da existência de raças) nas forças policiais e de preconceito (esta sim a designação que prefere) que condiciona a actuação de alguns agentes policiais e que a inquina.
A ASPP decidiu distanciar-se da posição manifestada por Manuel Morais e o então Presidente Paulo Rodrigues, entendeu que “As declarações de Manuel Morais, apesar de terem sido a título pessoal, geraram uma enorme onda de contestação de muitos sócios que entendem que a opinião dele não representa os polícias.”, conforme relatou o Diário de Notícias, no dia 27 de Maio de 2019, num trabalho da jornalista Valentina Marcelino.
A questão do racismo – nas polícias, nos portugueses ou em cada um de nós – carece de uma análise muito profunda mas existe um aspecto que parece óbvio: é que todos aqueles que o negam padecem do mal.
Os que admitem a sua existência na sociedade, e eventualmente em si mesmos, são precisamente os que lutam contra o problema.
Este aspecto não diz respeito apenas ao racismo mas também a outros problemas: quem nega a existência de homofobia são os homofóbicos, quem nega a existência de misoginia são os misóginos e, já agora, quem nega a existência do domínio do patriarcado branco heterossexual deveria arranjar um bom par de óculos.
Deixo então o alerta, vale o que vale, mas quando ouvirem alguém afirmar que não existe racismo em Portugal, desconfiem – não só da afirmação – mas de quem a profere.
É que em vez disso deveria logo dizer: eu sou racista e vivo muito bem com isso. Não existe aqui radicalismo ou, se preferirem, existe o radicalismo de uma evidência. As coisas são o que são e esta é assim.
Quando Manuel Morais saiu da ASPP, em 2019, ouviram-se algumas vozes (mesmo de dentro ou ligadas às forças de segurança) em sua defesa. Vozes que concordavam, que reconheciam o problema e que valorizam Manuel Morais como agente da polícia, como sindicalista, como cidadão e como humanista.
As intenções de Manuel Morais, com as declarações prestadas na reportagem da SIC, ou na sua tese de mestrado - nas suas palavras - não pretendiam denegrir os agentes policiais mas sim contribuir para uma melhor formação dos polícias. Como acabar com o racismo nas forças policiais sem passar pelo momento em que se admite que ele existe? Desconheço tal fórmula.
O tempo passou. A sua vida não tem sido fácil mas sim uma luta. Muito cuidado com aquilo que se deseja. Prestar atenção ao Manuel Morais faz intuir que é um homem de luta, como se sempre o tivesse desejado.
Não é o melhor destino para quem as trava mas é uma grande sorte para o colectivo quando alguém, mesmo que sozinho, o decide fazer e por uma boa causa. É o caso.
Sucede que as coisas mudaram. As questões para as quais Manuel Morais chamou a atenção agravaram-se. Falo também da infiltração da extrema-direita nas polícias. Neste momento já não é bem um caso de infiltração. Estão encharcadas.
A infiltração que poderia acontecer agora é a do bom senso e a dos princípios democráticos.
Mais, a simpatia pelo Chega entre os agentes policiais e forças de segurança – com tudo o que implica: racismo, autoritarismo, repressão e tolerância, senão mesmo promoção, à violência policial - atingiu um ponto de alastramento e de gravidade tais que fará sentido questionar se, quem está à frente de sindicatos ou associações sindicais, não estará constrangido nas declarações que profere pelo receio de perder associados ou pela responsabilidade de definitivamente perderem a mão. Não falo em defesa dos sindicatos mas pela obrigação ética de admitir essa possibilidade. Claro que isto seria ainda mais grave. Estou a admitir a possibilidade de dirigentes sindicais, e eventualmente de elementos da Direção Nacional da PSP, medirem bem as suas palavras e as suas posições não pelas suas convicções mas por uma estratégia de controlar a praga que sabem ter em mãos.
O Manuel Morais segue a estratégia do que sente. É também por isso que hoje, num dia em que finalmente está sol, escrevo sobre ele, prescindindo do meu direito ao passeio higiénico (raio de nome. É suposto levarmos pasta de dentes?).
No dia 15 de junho de 2020, Manuel Morais publicou um post na sua página de Facebook, no qual se referiu a André Ventura como “aberração”. Nesse mesmo post criticava os que decapitavam estátuas – bom, ninguém é perfeito – e sugeria, de forma claramente metafórica que deveriam sim decapitar racistas. Fê-lo na sua página pessoal.
Por causa desse post foi instaurado contra Manuel Morais um procedimento disciplinar e foi entretanto proferida uma decisão de punição de dez dias de suspensão.
Talvez aqui faça sentido recordar que “é do conhecimento público que não se encontra em curso qualquer procedimento disciplinar relativamente a agentes condenados em processo crime e com condenação confirmada pela Relação de Lisboa que, também através das redes sociais, proferiram insultos contra o sistema judicial português”.
Foi o grupo parlamentar do PCP que assim o expressou num requerimento apresentado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, em 2 de fevereiro último. Nesse requerimento foi suscitada a existência de “dois pesos e duas medidas quanto ao exercício da ação disciplinar da PSP” e foi requerida a audição da Inspectora Geral na Administração Interna com o objectivo de conhecer a sua posição acerca dos critérios para o exercício da referida ação disciplinar. Todos os partidos, à esquerda e à direita, à excepção do PS, que se absteve, e do Chega e do CDS - cujos respectivos deputados faltaram - votaram favoravelmente este requerimento.
Adiante mas com algum recuo:
Se este é o critério da PSP porque não se abriram processos disciplinares contra os oito agentes envolvidos no processo da Esquadra de Alfragide, condenados na primeira instância, e com decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nos seguintes crimes (sem precisar aqui os nomes dos agentes e as respectivas condenações): ofensas à integridade física, sequestro agravado e falsificação de documento? Sobretudo, e se a questão é a importância de uma publicação numa rede social, porque não se abriu um processo disciplinar ao agente da PSP, João Nunes, condenado no âmbito do referido processo e que ainda fez um post no Facebook no qual referiu que o sistema judicial era “madeira podre” e, já agora, que as vítimas dos crimes cometidos pelos agentes da PSP eram “traficantes e bandidos”?
Muito bem.
Vejamos a fundamentação para a condenação de Manuel Morais. Refere a decisão que “a forma como se expressou, numa rede social, na qual se encontra identificado como polícia, sobre um deputado da Assembleia da República”, “Toda a liberdade tem limites e esta liberdade, a de expressão, também tem os seus limites”, “Não podem os profissionais de polícia ir tão longe nas suas liberdades”, “Publicando comentários depreciativos sobre um deputado da Assembleia da República, consubstancia a violação do dever de prossecução do interesse público”.
Isto faz algum sentido?
Faz.
As forças policiais dividem-se entre os que estão radicalizados pelo ideário de extrema-direita e os que, não estando, não sabem exactamente o que fazer para controlar o problema ou como se posicionar em relação a ele. Enquanto esta hesitação se mantém, o primeiro grupo cresce.
Manuel Morais está a fazer aquilo que deveria estar a ser feito pelo próprio Governo; o combate ao racismo e à extrema-direita nas forças policiais, a luta pelo valores democráticos e constitucionais. É nas mãos do Super Intendente Chefe Manuel Magina da Silva que está o recurso apresentado por Manuel Morais, é lá que pode ser revista a decisão da sua suspensão.
Não podemos, não devemos, deixar o Manuel Morais sozinho nesta luta. É importante que, quem tem nas mãos a decisão do procedimento disciplinar contra Manuel Morais, saiba que tem nas mãos muito mais do que a avaliação de dez dias de suspensão e que saiba também que o que for decidido é importante para todos. Um homem que luta pela Democracia merece que o povo o defenda. Está visto que parte do povo está cego mas os que não estão devem acusar que veem.
Lembro aqui um excerto da última entrevista de Jorge Luís Borges, foi em Outubro de 1985 ao jornalista Roberto D’Ávila:
“- Como é a cegueira?
- Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo a minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incómodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas, pouco a pouco, as coisas distanciam-se, esmaecem.”
Borges era melhor que quase todos nós mas, mesmo assim, era um homem. A descrição que fez do processo que o levou a ser cego, na qual quis ser literal em vez de usar uma linguagem simbólica ou metafórica como lhe era próprio, acaba por ser uma boa metáfora para este processo que faz as pessoas perderem a noção dos valores fundamentais em que assenta a democracia.
Primeiro perde-se o negro, depois o vermelho. Não, estas cores não se podem perder.
E a perda lenta da visão poupa o choque, o impacto bruto, mas vai-se ter exactamente ao mesmo lugar: um lugar onde não se veem os rostos e, por isso, a sua igualdade.
Nota final: Manuel Morais, esta história era sobre ti. Agora tenho uma para ti.
Vou contar-ta a propósito do que disseste no teu post sobre os que derrubam estátuas:
Em dezembro de 1997, em Nova Iorque, chegou ao fim o processo que poderá ter estado na origem dos derrubes de estátuas que conhecemos: após um ano de manifestações de protesto, e na sequência de uma petição pública, as autoridades do Bairro de Queens decidiram proibir uma estátua em bronze, de 15 metros, da escultora Audrey Flack. A estátua representava a rainha Catarina de Bragança que casou com Charles II de Inglaterra. Foi o seu cunhado, futuro sucessor da coroa, com o título James II, que, ao comprar Nova Amsterdão aos holandeses, rebaptizou a cidade como Nova Iorque e deu a uma parte da cidade o nome de Queens, em sua homenagem.
A justificação para a proibição foi que Catarina havia sido membro do conselho de administração da Royal African Company, durante séculos traficante de escravos de África para as colónias britânicas no continente americano.
Esta história, com muito mais detalhe, foi contada no Público, pelo também antropólogo, Manuel João Ramos, em 20 de Agosto de 2020.
Se fizeram bem? Diria que sim. Incompreensível é ter vindo uma réplica para a Expo, que ainda lá está, em tamanho proporcional ao nosso, à qual, graças à nossa sistémica distração, nunca ninguém prestou muita atenção. A mãe foi bem fundida numa fábrica em Boston.
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