Artefacto de jogo apareceu numa escavação na Rua Ivens, número 16, onde foram identificadas estruturas romanas. Arqueólogos estão surpreendidos com o achado que não é em marfim, nem osso, como os conhecidos. Estudo detalhado do dado romano agora encontrado poderá trazer «algumas surpresas».

Onde era a agência do extinto banco Banif, na baixa de Faro, deverá em breve nascer um novo restaurante. Durante as obras para adaptar o espaço à nova função foi preciso abrir o chão e substituir a canalização, intervenção que exigiu o acompanhamento arqueológico previsto na lei.

O inesperado, contudo, aconteceu no dia 30 de setembro, quando o arqueólogo Carlos Vilela achou, dentro de um caneiro romano, que se estima datar de meados do Século I depois de Cristo, um dado de jogo, que aparenta ser, em madeira e não em osso ou marfim, como a maioria dos que são conhecidos dos investigadores.





O arqueólogo Francisco Rosa Correia junto do poço medieval.

«Sabemos que esta era uma zona residencial. Também encontrámos vidros, um dos quais de janela, o que é bastante raro, cerâmicas sigilatas, tecelas que eram usadas na construção de mosaicos, e cerâmicas finas, tudo materiais de muito boa qualidade que indicam ter sido de gente de posses», explica Francisco Rosa Correia, arqueólogo da ERA Arqueologia e responsável pelo acompanhamento da obra.

O dado estava dentro do caneiro, que seria, talvez, o esgoto de uma grande domus romana, que estaria onde hoje é a Rua do Compromisso ou na Rua do Capitão-Mor.

Por debaixo da estrutura, havia «um sedimento esverdeado», que talvez tenha propiciado um ambiente que ajudou a conservar o material do dado.

«Apareceram também artefactos de cerâmica que foram reutilizados para fazer peças de jogo», como se fossem peças de damas.

No número 16 da Rua Ivens, «fizemos três sondagens. A primeira apenas revelou uma lixeira contemporânea/moderna. 

Na segunda apareceu um poço no qual terá sido usada uma nora até ao século XIX, antes de esta zona ser urbanizada. 

Na sondagem principal apareceu um poço que remonta à época medieval. Podemos ver que sofreu um derrube a dada altura e que foi arranjado mais tarde já na época moderna. 

Em princípio, o estrago poderá bater certo com o terramoto de 1755», acrescenta Francisco Rosa Correia.




O «invulgar» dado foi encontrado aqui, dentro do que teria sido o esgoto de uma rica domus romana.

Por de trás desse poço foi ainda escavada uma lixeira romana mais antiga. «Sabemos que o caneiro romano seguirá por aí fora e está cheio de material arqueológico. 

A intenção que temos, já que os materiais são tão bons e ricos, e por exemplo, nos restos das lucernas até temos as marcas dos oleiros, o objetivo era que tudo isto pudesse dar origem a uma tese de mestrado», diz.

Agora, «o registo de campo está feito. Estamos na parte final do tratamento dos materiais. Temos a intenção de divulgar e publicar um estudo sobre os achados. 

Após a aprovação da tutela, tudo será tapado de novo com Geotêxtil» para a sua preservação.

Miguel Lago, CEO da ERA Arqueologia mostra-se cauteloso, mas igualmente surpreendido. «Não me lembro de em alguma escavação aparecer um dado romano», confirmou.

«Os cantos são biselados e numa análise prévia, a matéria-prima parece ser de madeira, mas terá que ser analisado em laboratório para se confirmar».





Aspeto do caneiro que ainda terá continuidade no subsolo da baixa de Faro.

Estudo aprofundado poderá trazer «algumas surpresas»

Lídia Fernandes, coordenadora do Museu de Lisboa – Teatro Romano é talvez a maior investigadora do país no que toca à temática dos jogos de tabuleiros.

Ouvida pelo barlavento, afirma que «o dado em questão é, sem qualquer dúvida, um espécime invulgar. Invulgar pela morfologia, dimensões e material. Trata-se de uma peça de qualidade e não é, em absoluto, um simples dado. É uma peça singular e cujo estudo mais detalhado poderá trazer algumas surpresas».

«Sabemos até que os tabuleiros de jogo e o ato de jogar, ainda que alguns jogos fossem condenados, havia outros que equivaliam a destreza de espírito e eram bem vistos» na sociedade romana.

«O imperador Cláudio, Nero e até Augusto jogavam e, portanto, sabemos que toda a população jogava. Aliás, a quantidade de tabuleiros de jogo traçados na pedra que encontramos em sítios romanos é disso uma clara prova. Existem alguns tabuleiros de jogo que sabemos as regras, poucos, mas há outros que de facto não nos chegou qualquer informação, nem em termos documentais, nem em termos arqueológicos», detalha Lídia Fernandes.




Ainda se desconhece qual o material de que é feito o dado.

«Aparecem em alguns sítios romanos, pedras com um quadriculado um pouco estranho e com covinhas. Trata-se de um tabuleiro de jogo, mas que desconhecemos como se jogava. Um dos mais conhecidos e que foi divulgado por todo o império através dos soldados romanos, era por exemplo o Ludus latrunculorum e o Duodecima scripta, que deram origem ao jogo do Gamão. E existe o tabuleiro do moinho, que é mais ou menos os três em linha que hoje jogamos. Mas não há muitos mais sobre os quais possamos dizer alguma coisa e muito menos conhecer as regras», admite.

Ainda em relação ao dado da Rua Ivens, Lídia Fernandes considera que «a confirmar-se a cronologia romana, será dos poucos exemplares que se conhecem em Portugal. Existem em pré-época medieval e época moderna, mas dados da época romana não existem muitos. De facto, não são habituais em Portugal dados do Século I, muito menos em madeira. A madeira é um material perecível, sendo portanto muito poucos os artefactos e especialmente peças desta dimensão», neste caso, 12,36 milímetros (mm) de altura e 7,16 mm de comprimento.

Também o formato em paralelepípedo é invulgar. «Alguns tipos de jogo medieval e modernos têm dados retangulares e não quadrados. Os dados assumidamente retangulares estão associados a tabuleiros de jogo ou do Egito ou então do continente africano. Não conheço próximo de nós tabuleiros de jogo originais que tenham dados retangulares», conclui.




Fragmento de vidro de janela. Só as mais ricas casas romanas e alguns edifícios públicos tinham tal luxo.

Faro tem um dos subsolos mais bem preservados do país

Ouvido pelo barlavento, João Pedro Bernardes, professor da Universidade do Algarve, Departamento de História, Arqueologia e Património, também considera as descobertas dignas de interesse científico.

«O dado é sobretudo uma curiosidade. 

É uma peça bem feita, até pode ser importada, mostra que quem jogava aos dados era uma elite, aristocrata, o que está de acordo com os materiais que foram recolhidos» na Rua Ivens.

«Os vidros de janela, só as casas ricas e muito ricas é que tinham isso. Nessa altura, era uma coisa caríssima. Não era vidro soprado, mas sim uma pasta que era colocada num tabuleiro com cinza, espalhado e feito à mão». Como é possível identificar?

«Desde logo, porque os vidros ainda têm os vestígios do molde. Repare que qualquer peça tem curvatura, um copo, uma taça, um prato. Aquele não tem. E a própria espessura. Tudo cruzado, só pode ser de janelas que por norma aparecem associadas às domus urbanas ou termas (banhos públicos). Podemos ver isto como um contexto do Século I. Antes desse período, a cidade de Faro estava confinada quase à Vila Adentro. Depois, a partir do imperador Augusto, a população já não cabia lá dentro, salta as muralhas, e vem cá para fora. Possivelmente, esta era a casa de algum colono que se radicou aqui em Faro, já com uma cultura romana», estima.



Fragmento de cerâmica terra sigillata marmorata.

E mais. «Nas primeiras décadas do Século I, o que se importava eram cerâmicas finas de Itália, que a partir dos anos 40/50 começam a ser substituídas por finas cerâmicas de mesa gaulesas, da atual França. 

Ou seja, o que apareceu ali é algo desse período e aparenta ser um contexto doméstico», confirma.

Mas seria seguro uma domus tão rica fora das muralhas de Vila Adentro? 

«Nesta altura, estamos a falar de um contexto pacificado. Quase toda a região fica pacificada com o Imperador Augusto. Ele escreveu um livro, no final da vida, em que diz que erradicou a pirataria dos mares mediterrânicos. A maior segurança vem com o imperador Cláudio, que assume o poder entre 41 e 54. E logo em 42, aqui nesta zona, vem fazer uma campanha contra o Norte de África», já que terá montado em Baelo Claudia (antiga cidade romana, localizada a 22 quilómetros de Tarifa, perto da vila de Bolonia, no sul da Espanha) um destacamento militar «recrutando gente dequi, algarvios também, seguramente».

«A ameaça a toda esta zona do Algarve e Andaluzia eram o piratas que vinham a partir de Marrocos. A partir de 42 quando ele toma Tânger, toda esta zona fica pacificada. A partir daí, o Algarve tem um desenvolvimento, pois é tão seguro estar aqui como estar em Itália», compara.

Para João Pedro Bernardes, «Faro é das cidades do país que tem o subsolo melhor conservado, como poucas têm. 

As casas tradicionais do século XIX e até XX, não têm, regra geral, caves. Dependente das zonas, tudo o que se faça na zona ribeirinha, a partir de 1,20 metros de profundidade, temos muitos vestígios. Quantos mosaicos é que não devem estar por descobrir?».




Fragmento de gargalo.

O mosaico do Deus Oceano, classificado como tesouro nacional, «tem uma inscrição de quatro indivíduos, que pagaram o terreno e o mosaico, contribuíram para a construção do que teria sido um edifício público. 

Que poderia ser? Provavelmente, uma associação ou corporação de mercadores, que havia muitas nestas cidades portuárias», diz.

«Todos os dias surgem vestígios romanos. Ao lado do Palácio Belmarço, está a ser intervencionado um quarteirão, onde se apanhou um bairro moderno do Século XVI, quase à superfície. Mais abaixo, surgem edifícios romanos. Como era uma zona ribeirinha, temos ali cetárias».

Outro problema da arquelogia urbana é que «a lei só obriga a ir até à cota de afetação, onde estão os pilares das casas modernas, que só vão até aos 80 cm. Quando começam a aparecer os vestígios romanos, um pouco mais fundo, já não se escava. Bem, ao menos não se destrói» nada.

Segundo o académico, «sobre Faro conhecemos algumas coisas, mas sabemos pouco. Nunca foi escavada nenhuma casa romana a sério, como em Braga ou em Beja. Estes achados são um pequeno fragmento do puzzle».

Para o docente universitário, o conhecimento sobre Faro antigo devia ser compilado «numa plataforma virtual de informação geográfica, com uma planta com vários layers para a cidade romana, islâmica e pré-romana, onde pudesse ser inserida informação atualizada à medida que aparecessem novos achados», à semelhança do que existe no Porto ou em Braga.





Fragmento de lucerna romana. É possível ver a marca do oleiro que a fez.

Por exemplo, perto do local onde foi descoberto e mosaico Deus Oceano mosaico, na Rua Infante D. Henrique, há uns anos, «a EDP realizou uns trabalhos e apareceu uma grande estrutura em apside que não foi reportado pela arqueóloga» que acompanhou a intervenção.

«Isso seria muito importante para se perceber melhor o edifício em que estaria o mosaico. Mas a estrutura ainda está lá, não foi destruída. Infelizmente, não temos o resultado dessa escavação».

Fotos: © Nuno de Santos Loureiro.


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