Rute caminha às voltas no escritório até deter os olhos numa fotografia sua a escalar uma montanha no Gerês, no final de 2012. Aproxima-a até poucos centímetros dos olhos azuis e confessa que prefere escalar do que andar a pé.
"Para mim, é uma sensação ótima, natural. Adoro a adrenalina! Sei lá, não há explicação. É o meu desporto preferido”, confessa. Sente-se um tom de mágoa na voz. Rute nunca mais escalou. Depois de mais de 20 anos ao serviço da Câmara Municipal de Mirandela, decidiu regressar ao sítio onde nasceu, Terras de Bouro, para que um dos filhos, diagnosticado com autismo, pudesse ter mais apoio da família.
Foi colocada ao serviço da autarquia, após ter concorrido a um concurso público e ter recebido a nota mais alta, mas, depressa percebeu que algo estava errado. Conta que os 27 anos de experiência na anterior lhe davam "uma bagagem de trabalho" que achava ser uma mais-valia.
Eu vinha com aquela motivação de muito trabalho. Cheguei ali e foi um impacto muito grande. Ninguém me dava trabalho e eu apresentava várias propostas e nenhuma proposta era aceite. Escrevi ao Sr. Presidente [da Câmara Municipal de Terras do Bouro] a dizer que queria trabalhar e ele nunca disse eu iria fazer isto, ou fazer aquilo. Zero”, confessa.
Rute Martins está há 9 anos na Câmara, mas desde 2013 que cumpre horário, não tendo trabalho atribuído. Outros trabalhadores da Câmara Municipal de Terras de Bouro queixam-se do mesmo. Estão encostados, sem funções.
Face às insistências para lhe darem trabalho, Rute foi parar a um gabinete isolado, com o pretexto de que seria uma oportunidade para se desenvolver na área social, um caminho paralelo aos seus estudos. Ela achou que a sua situação ia mudar. Pensou que ia estar mais ativa, a “andar no terreno” e a ter contacto com o público e com os colegas, a trabalhar em equipa. “Mas não! Aquilo tornou-se um tormento. Foi uma humilhação de todo o tamanho”. Esse gabinete viria a ser o seu posto de trabalho até hoje. Nove anos depois, continua no mesmo sítio e sem ter funções atribuídas. Fechada num bloco à parte dos outros trabalhadores do serviço camarário.
Sentia uma humilhação tremenda, porque eu tenho o meu pai, tenho dois filhos. E é muito complicado os meus filhos virem visitar-me a um gabinete e verem a mãe sempre ali parada, isolada” [...] O meu filho não compreendia e ficou extremamente alterado”, explica com lágrimas nos olhos.
O filho de Rute, ao ver o sofrimento da mãe, "ficou muito agressivo, muito revoltado" e foi preciso recorrer a um psiquiatra. “Ele não entende porque é que eu estou isolada". E perguntava: "Porque é que não te dão trabalho? Porque é que não te dão funções?" A mãe não tinha resposta para lhe dar: "Ele via as outras colegas no ativo e via a mãe fechada".
Encostada, Rute está numa situação semelhante a outros trabalhadores.
São muitos funcionários que recebem e não têm funções. Há muitos. Seis, sete, dez, depende. Há uns que fazem alguma coisa, outros que não fazem rigorosamente nada. Há outros que são seguidos de perto nas suas funções. São coagidos e, se calhar até, impedidos de realizar as suas tarefas”, afirma ‘Sérgio’, nome fictício.
Sérgio conta que também foi impedido de desempenhar as suas funções. Quando falou com a TVI, explicou que não revelava a sua identidade por temer "represálias profissionais, pessoais e familiares".
Tenho medo de ser prejudicado na minha vida”, justifica-se.
De voz tremida e com o polegar a raspar incessantemente no anelar, o funcionário explica que as pressões aos trabalhadores acentuaram-se quando Manuel Tibo tomou posse, após as eleições autárquicas de 2017. Sérgio diz mesmo que o presidente iniciou uma campanha de reeducação.
O Sr. Presidente da Câmara impõe a todos a sua conduta. Porque ele quando chegou à Câmara quis logo educar, entre aspas, as pessoas que lá estavam à sua maneira. Educar. No seu rigor, na sua prepotência. E levando-as a fazer aquilo que ele queria que elas fizessem”, afirma.
A tensão entre o presidente e os trabalhadores escalou desde 2017. Rute diz que, para si, o momento mais dramático ocorreu no ano passado, durante uma visita do seu pai, que que vive numa casa a poucos metros do seu gabinete.
O pai de Rute foi diagnosticado com cancro e, confessa a trabalhadora, é tudo para ela e para os seus filhos.
Estava a falar com o meu pai, não ia em dois minutos e o presidente viu-me e fechou a porta à chave. Eu disfarcei para o meu pai não notar e vi que o presidente estava à minha espera”. Rute lembra a resposta do presidente: “Disse que eu não podia ausentar-me do serviço que dava direito a um processo disciplinar”.
A trabalhadora descreve este momento como tendo sido o ponto de rotura na sua relação com o presidente da Câmara Municipal. Especialmente porque o autarca “não tinha o mesmo trato com os trabalhadores que faziam pausas para ir fumar, ou para tomar o pequeno-almoço”.
Numa ata de uma reunião municipal datada de 3 de junho de 2020, a que a TVI teve acesso, o vice-presidente da autarquia, Adelino Cunha, é citado como tendo dito que Rute “não tem perfil para o lugar” e que não foi o atual executivo que a contratou. O vice-presidente diz também que “quem lê o seu facebook percebe que não tem perfil''.
Segundo fonte da autarquia, as frases foram proferidas após o vereador da oposição Paulo Sousa ter questionado a vereadora dos Recursos Humanos sobre o porquê de ainda não terem sido atribuídas tarefas a Rute.
Paulo Sousa, questionado sobre a que se referia Adelino Cunha quando disse “Não fomos nós que a trouxemos para cá”, disse que o membro do Executivo estar-se-ia a referir “ao anterior mandato político”.
Onze dias após ter tomado posse, o presidente da Câmara decidiu dispensar cerca de 70 trabalhadores com vínculos precários. Muitos desempenhavam funções para a Câmara há mais de cinco anos.
Teresa trabalhava para a autarquia como auxiliar educativa há sete anos e em outubro de 2017 recebeu uma chamada para não se apresentar mais.
Fiquei de rastos, porque até ali estava a trabalhar e contava com esse trabalho e rendimento, portanto foi um descalabro a nível pessoal e psicológico, para mim e para a minha família”, explica.
Em janeiro do ano seguinte, a Câmara de Terras de Bouro aderiu ao Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários da Administração Pública. O chamado PREVPAP dava a oportunidade de admitir 27 precários nos quadros da autarquia.
De acordo com a autarquia, o processo de admissão dava prioridade à “Avaliação Curricular” do candidato, que tinha como base o tempo ao serviço da Câmara. Em caso de empate, era realizada uma entrevista para avaliar os comportamentos profissionais do trabalhador. Se nesta entrevista a nota fosse abaixo de 9,5 valores, o candidato não era admitido.
Teresa recebeu uma nota de 16,4 valores na Avaliação Curricular, mas recebeu 8 valores na entrevista. Impedindo-a de concorrer ao cargo.
Achando incompreensível, colocou uma ação judicial contra a autarquia e acabou por ser indemnizada em quase 6.900 euros.
Depois de receber o valor, foi chamada para uma conversa com o autarca em que este lhe disse que a “não conhecia assim” e que o facto de ter recorrido ao Tribunal do Trabalho terá sido “por influência de outros”.
Mas não, não é por influência. Sou responsável e adulta, não preciso de influências de ninguém. Porque eu quero o meu posto de trabalho e preciso de trabalhar”, explica.
Questionado sobre a realização dos concursos, o vereador Paulo Sousa admite a existência de irregularidades e destaca as condições em que se realizaram as entrevistas que negaram a entrada de Teresa na autarquia.
Eu penso que ali houve um erro, porque o júri foi quase o mesmo para todos os concursos. A sensibilidade do entrevistador não tinha nada a ver com a atividade que as pessoas iam desenvolver”, explica.
A TVI teve uma entrevista marcada com o presidente da Câmara Municipal de Terras de Bouro. Um dia antes, Manuel Tibo cancelou-a, alegou motivos de “força maior” e não respondeu às posteriores tentativas de contacto.
O conflito entre Rute e a autarquia ganhou outra forma em agosto de 2020. Depois de uma cirurgia, a trabalhadora recebeu um e-mail a informá-la de que um alegado pedido para a reforma tinha sido aceite.
Rute estava deitada e sentiu a vibração do telemóvel. Leu a informação e entrou imediatamente em pânico. “Não tinha posto nada para a reforma. Longe de mim, o que mais quero é trabalhar, que me coloquem no ativo”.
A trabalhadora instaurou uma queixa-crime contra a Câmara. No dia seguinte dirigiu-se ao local de trabalho e descreve como apanhou toda a gente de surpresa. Dirigiu-se, ainda em choque, ao vice-presidente e disse que se estava a apresentar ao serviço.
A primeira coisa que me disse foi para ir aos recursos humanos. Eu disse que já lá tinha ido e que estava ali para trabalhar”, lembra.
A TVI sabe que a Caixa Geral de Aposentações enviou, entretanto, um documento à Câmara a comunicar que o pedido de reforma foi arquivado.
Nos dias mais tensos, Rute gosta de caminhar pela natureza protegida da região. Sentada numa rocha, observa o Gerês, sabendo que a justiça por que espera é ainda uma montanha por escalar.
O cabelo loiro esvoaça selvagem e de maneira consonante com a ansiedade que tem vivido nos últimos anos.
O meu pai é uma das pessoas mais importantes para a minha vida. Há pouco tempo, virou-se para mim e disse que não queria morrer antes de ver o meu processo terminado.
Rute explica que ouvir as vontades do pai magoa-a “imenso”. Uma dor exacerbada pelo facto de não saber qual a razão por estar a trabalhar sem trabalho atribuído.
Se eu soubesse o porquê? Ela é incompetente, faz desvios, ou rouba, mas não há motivos que digam o porquê de não me deixarem desempenhar as minhas funções”.
VÍDEO
tvi24.iol.pt