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sábado, 13 de fevereiro de 2021

Cemitérios políticos

 ladroesdebicicletas.blogspot.com




Imaginem um país onde a esquerda tivesse sido dominada desde os anos noventa pela linha que Rui Tavares por cá encarna. 

Esse país existe e chama-se Itália: do soberanismo popular do PCI de Togliatti, o que foi contra o Tratado de Roma, passou-se para o euro-federalismo dos PDS, PD, P qualquer coisa, desta história triste. O governo dito de unidade nacional de Draghi, cuja transcendência entusiasma agora Tavares, terá quatro ministros do cinco estrelas, três do Chega, perdão, que disparate, da Liga de Salvini, mas também três do PD ou dois do Livre lá do sítio. Até parece o fim da história, tão do agrado de Jorge Almeida Fernandes.


No final da Primeira Guerra Mundial, a grande guerra de pilhagem imperialista entre as grandes potências capitalistas, dizia-se que a Europa era “um imenso laboratório construído em cima de um imenso cemitério”. 

A Itália é hoje um imenso laboratório neoliberal, construído em cima de um cemitério de siglas partidárias e de uma economia mista que funcionava. 

O regime de crescimento do milagre italiano a seguir à Segunda Guerra Mundial foi possível porque a integração da altura era moderada e dava margem de manobra ou porque o PCI metia medo. Este regime foi sendo desmantelado dos anos oitenta em diante e substituído pelo vínculo externo constrangedor criado pelo mercado único e pelo euro da UE, com privatizações e liberalizações sem fim, num quadro de política orçamental em modo de consolidação sem precedentes no novo milénio, de investimento público em colapso e de uma estagnação com mais de duas décadas, dada a inadequação do euro para a economia industrial italiana. 

Os sintomas políticos mórbidos sucederam-se sem fim, do extremo-centro à direita extrema, de Prodi a Salvini, passando por Berlusconi ou Renzi. A esquerda real foi enterrada por modas e com ela qualquer hipótese de soberanismo popular. Esta tradição jamais virá da extrema-direita, como aliás a última jogada de Salvini confirma.

A comandar tudo, mais ou menos na sombra, está uma elite europeísta, com enormes responsabilidades na criação do euro, encarnada hoje por Draghi. 

O seu percurso neste período foi do Tesouro italiano ao BCE, passando pela Goldman Sachs: “o modelo social europeu terminou”, ou seja, os modelos sociais nacionais terminaram, disse um dia. Agora vai para líder do governo italiano, depois de ter ajudado a destruir a esperança na Grécia. Regressa para controlar os fundos europeus, macroeconomicamente insuficientes, e para os colocar ao serviço do aprofundamento da neoliberalização da economia política italiana, desta forma talvez mais eficaz politicamente. 

Draghi salvou o euro e isto é tudo o que importa para quem, como Tavares, faz parte da Nossa Europa e assina textos sempre cheios de vacuidades com antigos membros do governo da troika, mais recentemente sobre a irrelevante presidência portuguesa. Ainda me lembro quando, na véspera das eleições legislativas de 2015, já depois do golpe financeiro, se dizia aos gregos: “aguentem, que os reforços estão a caminho”. 

“Cacemos com Draghi”, conclui Tavares, em modo euro-presentista, num jornal que parece editado na Comissão Europeia, enquanto sonha caçar com Mariana Mazzucato. Pode caçar com o antigo CEO da Vodafone, que vai ser Ministro da Inovação. 

A caça ao trabalho organizado não parará, certamente: a constituição anti-fascista, que tanto desagrada ao capital financeiro, será ainda mais erodida, na ausência de resistência popular. Pode ser que a esquerda se reconstrua na oposição. 

Entretanto, as propostas da economista desenvolvimentista italiana são basicamente irrelevantes para países sem instrumentos de política e à escala da UE ainda o são mais. Rui Tavares pode não querer escrever sobre vacinas, mas o fiasco está aí e as pessoas começam a dar conta da natureza da “Europa” deles. 

Apesar de tudo, não percamos a esperança, ou seja, aquilo que Gramsci chamava de construção da vontade colectiva nacional-popular, pensando luminosamente numa cela. Ainda vamos a tempo, já que é cada vez mais claro que há vida para lá da UE.

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