“Sinto que Deus me concedeu esta missão.”
A frase de André Ventura, que já repetiu amiúde nos últimos meses, espelha a estratégia seguida pelo líder do Chega e candidato presidencial de marcar terreno entre católicos e outros cristãos.
No seu partido, como a VISÃO já deu conta numa investigação, misturam-se vários tipos de crentes, dos católicos ultra-conservadores aos evangélicos. O tema da fé foi, pois, naturalmente, um dos temas em abordados nas suas entrevistas e nos debates, sobretudo naquele onde defrontou Marcelo Rebelo de Sousa, que se apresentou para a corrida presidencial como “social-democrata, republicano e católico”.
Esta é uma das muitas contradições que mais me intriga acerca do Chega e do seu líder. Como é possível que alguém que se diz cristão se reveja em André Ventura e no que ele defende?
Não é preciso ser um bom católico praticante (e eu não sou nem uma coisa nem outra) para perceber que há aqui conflitos de valores insanáveis. Qualquer pessoa que conheça minimamente a Bíblia, uma obra fascinante independentemente dos credos, percebe que o “pregador” político Ventura, por tudo o que defende e faz, tem a palavra de Cristo mal estudada. E se andou no seminário, fez de tudo menos absorver a essência cristã.
De uma coisa não tenho dúvidas: para alegado “enviado de Deus”, que segundo próprio lhe atribuiu a espinhosa missão de “mudar Portugal”, André Ventura não serve. É uma ovelha tresmalhada. Ou um lobo na pele de cordeiro.
Está em confronto permanente com o que foram os ensinamentos de Cristo e o que a Igreja Católica e o Papa Francisco hoje defendem.
Vamos por partes.
1. O que diz e defende André Ventura?
O líder do Chega afirma, sem pudor, que “não quer ser Presidente de todos os portugueses” e que não presidirá “aos que vivem à custa do sistema, de subsídios, que vivem à custa de o corromper, ou que vivem à custa de esquemas para os que trabalham os estejam sempre a sustentar”.
Separa os portugueses por categorias, dividindo-os entre “pessoas de bem” e os “outros”.
“A única ditadura que quero é aquela onde os portugueses de bem são reconhecidos”, afirmou.
Ostraciza ciganos, em relação aos quais diz existir um “problema nacional”, e chegou a defender “medidas de confinamento especiais” para esta comunidade. Ostraciza também pessoas como José Castelo Branco, e diz que “não terão lugar em Portugal” e que “não se safariam com o estilo pindérico”. Tem uma cruzada contra o Rendimento Social de Inserção, que diz que é “para gente que não quer trabalhar”, embora este se destine a cidadãos em situação de pobreza extrema e garanta que os filhos destes frequentem o ensino obrigatório. Defende a castração química e a prisão perpétua para homicídios e pedófilos e pretende restringir direitos a criminosos e condenados.
No debate com Ana Gomes de ontem, admitiu que não faria mal cortar a mão a alguns ladrões.
É contra o aborto.
É nacionalista, já enviou uma deputada negra “para a sua terra”, e não vê com bons olhos o acolhimento de imigrantes e refugiados.
Quer restringir os direitos no acesso à saúde dos estrangeiros residentes legais e imigrantes ilegais, e defende uma maior intervenção de deportação de imigrantes, legais e ilegais. Em termos fiscais, defende uma taxa fixa de IRS, que não descrimina escalões tendo em conta os níveis de rendimento das famílias. Tem um programa liberal, e pretende privatizar a saúde e o ensino.
2. E o que diz, afinal, a Bíblia?
Em uma palavra: o oposto. A mensagem de Jesus ensinada aos cristãos e pano de fundo permanente da doutrina social da Igreja Católica é a ideia de “amar o próximo como a si mesmo”, logo a seguir a amar Deus. E a praticar a compaixão com os mais fracos, sejam eles quem forem. Uma das passagens mais importantes da Bíblia, contada por Lucas, é a Parábola do Bom Samaritano que Jesus utiliza para explicar o “amor fraterno”. Cristo conta a história de um pobre judeu que foi assaltado e ficou moribundo, e que é ajudado por um estrangeiro, um samaritano, da nação que os judeus mais desprezavam. Ensinou a amar todos, sem exceção nem atender a nacionalidade, fé ou outra distinção.
Sobre migrantes e estrangeiros, a Bíblia está pejada de referências, utilizando a história do povo judeu, que viveu como estrangeiro no Egito, como exemplo. No Antigo Testamento pode ler-se:
“Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egito” (Êxodo 22, 20).
E também: “Se um estrangeiro vier residir contigo na tua terra, não o oprimirás. O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na terra do Egito” (Levítico 19, 33-34).
O “amor fraterno” deve pois ser a base de qualquer católico: “Quem ama o seu irmão permanece na luz e não corre perigo de tropeçar. Mas quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas” (1 João 2, 10-11).
O livro não pode ser mais claro: “Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 João 4, 20).
Por outro lado, um valor máximo do cristão deve ser o perdão. Citando só algumas passagens que ficaria bem a Ventura recordar: “Suportem-se uns aos outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o Senhor lhes perdoou” (Colossenses 3:13); “Sejam bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando-se mutuamente, assim como Deus os perdoou em Cristo” (Efésios 4:32); “Não julguem e vocês não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. Perdoem e serão perdoados” (Lucas 6:37).
E a conversão “ao bem”, aquele que Ventura se diz porta-voz e defensor máximo, é possível para um cristão “até ao último minuto”, como bem lhe recordou Marcelo Rebelo de Sousa.
3. Nos dias de hoje, o que diz o Papa Francisco, o líder máximo de todos os cristãos na Terra?
A Fratelli Tutti, a terceira encíclica papal, divulgada em outubro passado e dedicada à “fraternidade e amizade social”, é um um extenso e bem escrito documento sobre a doutrina social da Igreja e, ao mesmo tempo, um tratado anti-populismo. Vale a pena ser lida por crentes, não crentes, desiludidos e agnósticos, porque muito do que está ali é, sobretudo, análise social e política.
Neste documento de orientação aos cristãos, como são as Encíclicas, Francisco critica frontalmente o retrocesso histórico que se assiste no mundo com o reacendimento dos populismos e novos nacionalismos, a escalada de ódio, racismo, intolerância e solidariedade.
“A história dá sinais de regressão.
Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais”, escreveu o Papa Francisco. “A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores. Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar.
Desta forma, a política deixou de ser um debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e o bem comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais eficaz está na destruição do outro. Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição”, continua o Papa. Rings a bell?
Mas há mais. “No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma utopia doutros tempos.
Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos encontramos todos no mesmo barco.”
Sobre o racismo e o medo de migrantes, Francisco tem muitas intervenções públicas, mas na Fratelli Tutti, resume-as bem: “Compreendo que alguns tenham dúvidas e sintam medo à vista das pessoas migrantes; compreendo-o como um aspeto do instinto natural de autodefesa. Mas uma pessoa e um povo só são fecundos, se souberem criativamente integrar no seu seio a abertura aos outros. Convido a ultrapassar estas reações primárias, porque o problema surge quando [estas dúvidas e este medo] condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos – racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro.”
Especificamente para os políticos que dizem aleivosias chocantes em público, nas redes ou em entrevistas, o Papa também envia alguns recados muito concretos: “Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune”.
E Francisco não se coíbe de criticar mesmo os que se dizem cristãos de alma e coração, como Ventura, e o fazem. “Deve-se reconhecer que os fanatismos, que induzem a destruir os outros, são protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os cristãos, que podem fazer parte de redes de violência verbal através da internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital.
Agindo assim, qual contribuição se dá para a fraternidade que o Pai comum nos propõe?”, questiona. Então senhor pregador Ventura, pode responder?
Extrema-direita e cristianismo são contradições nos termos. Inconciliáveis.
Tudo o que Ventura e o Chega defendem é a antítese da doutrina social da Igreja. É claro que não é nada de novo que cristãos não pratiquem a “palavra de Deus”, bem sabemos.
Vimo-lo acontecer ao longo dos séculos, e também nos dias de hoje, permanentemente à nossa volta. Mas pelo menos deviam recusar os que tão frontalmente se servem dela por puro oportunismo, a defraudam, desvirtuam e denigrem, em prol dos seus interesses.
visao.sapo.pt
Bom texto para se levar a sério o que o perucas fascista propagandeia, que até nos quer enganar com o penteado.
ResponderEliminarRepare-se nos gestos com os braços, em simples afirmações, como se estivesse a palavrear numa assembleia evangélica os benefícios do calcitrim que ninguém sabe como e por quem é feito, o resto é bagunçada de comentador da bola prá rapaziada do café achar piada, ou seja apanha várias classes sociais. Aquela do 'está aqui tudo escrito' é parecida com o maço de cartas, apresentado pelos antigos vendedores da banha da cobra, elogiando o calcitrim da época.
Mas, o principal é o programa do Chega pra lá e quem está na sombra a apostar forte financiando na propaganda deste aldabrão, aliás copiada da Le Pen, Salvini, Orban, Trump ou Bolsonaro.
precisamente!
ResponderEliminar