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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O feitiço da pedra - Filipa Malva in facebook

 




Filipa Malva in facebook


 
Nos meus 18 anos, como prenda de maioridade e também de entrada na universidade, os meus pais ofereceram-me o que pudessem dar.
A primeira e única coisa que me veio à cabeça foi uma ida ao atelier do escultor para escolher uma peça que me acompanhasse o resto da vida. E lá fomos. A Évora.
Por essa altura já lá tinha passado longas horas de prazer, sentada, com as pernas a balouçar, no banco corrido de madeira da mesa da cozinha ouvindo-o falar das suas aventuras e das suas desgraças. O minha mãe tinha-lhe salvo a vida numa noite escura do Hospital de Santa Maria, em que uma qualquer comida quase o tinha levado. Ele, em forma de agradecimento ofereceu-lhe um desenho e disse-lhe que um dia as suas longas pernas lhe serviriam de modelo. Ruborizou-se a minha mãe e o desenho foi pendurado em lugar de destaque, todo nu, na sala de jantar.
Foi assim que começaram as viagens a Évora. Meu pai, por ciúmes ou por encanto, decidiu-se a escrever sobre a sua vida, e, claro, as suas mulheres. Nunca se fez o livro, mas as conversas ficaram. E também, para mim, as minhas primeiras memórias de vinho alentejano e sua temperatura de sol a descer-me pela goela abaixo.
Fiz-me artista sem saber naquela mesa de cozinha, entre o pó e o vinho vermelho servido em copo pequeno. Mãos gretadas e curtas, óculos a balouçar no peito, e uma mistura de sarcasmo e desejo a torcer-lhe a boca num esgar, Cutileiro insistia sempre em provocar no irmão, muitas vezes presente e solene, o desconforto.
A sua formalidade de embaixador parecia-me sempre deslocada e o seu olhar cauteloso distraía do correr da conversa que saltava facilmente entre o escultor e meus pais. A gala de quem há muito sabe ser a ovelha negra da família contra o medo de quem acha que a aparência é tudo.
Tudo no lugar era atelier. Os sofás magoados, as paredes gastas, as janelas enormes, a (sua) mulher que nos abria a porta (e era sempre uma diferente), o pátio coberto de pó branco e o barulho das máquinas que alternava com os pássaros. O mármore estava por todo o lado, respirava-se. Os desenhos escorregavam das mesas e das cadeiras, repetidamente nus. Desajeitados, abandonados, oferecidos.
Não conheço nenhum outro lugar da minha adolescência que tão bem combinasse desejo com mágoa, sol com frio, urgência com preguiça.
Alegra-me que agora seja de todos. Na esperança que outros, artistas, se façam pedra.

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