Enquanto o planeta acompanha a revolta de Donald Trump com a derrota projetada na corrida presidencial contra o oponente democrata Joe Biden, a primeira-dama Melania pratica o que mais fez durante os últimos quatro anos na Casa Branca: silêncio.
Se o legado de Donald Trump para a Casa Branca e a democracia dos EUA é objeto de polarização e controvérsia, o de Melania no papel que já foi ocupado por Michelle Obama e Jacqueline Kennedy Onassis ainda é uma incógnita.
"Melania foi uma primeira-dama extremamente fechada", diz à BBC News Brasil Kate Andersen Brower, autora do best-seller sobre primeiras-damas contemporâneas First Women (Primeiras Mulheres, em tradução livre), que discute o papel de 10 primeiras-damas da história recente americana.
"Ela é uma pessoa cifrada, mesmo agora no final do mandato. E parece que é assim que ela quer ser."
Para a escritora Betty Boyd Caroli, autora de First Ladies - The ever-changing role (ou Primeiras damas - a função em constante mudança), Melania esteve "amplamente ausente do trabalho de primeira-dama".
"Nas categorias típicas que os historiadores usam para classificar as primeiras-damas, como valor para o país, integridade, liderança, inteligência, realizações, coragem, imagem pública, valor para o presidente, eu prevejo que ela se classifique no último lugar da lista", diz Caroli à BBC News Brasil.
Para muitos, no entanto, apesar de extremamente reservada, Melania teria sido um importante contraponto à beligerância do marido nos últimos quatro anos em Washington.
Mesmo quando esteve em silêncio.
Contradições
É difícil descrever a temporada de Melania Trump na Casa Branca sem notar as contradições que ela expôs ao ocupar o cargo.
Nascida na Eslovênia em abril de 1970, Melania trabalhava como modelo quando se mudou para Nova York, em 1996. Em 2001, ganhou residência permanente nos EUA. Em 2005, casou-se com Donald Trump e, no ano seguinte, se tornou uma cidadã norte-americana.
Sua ascensão trouxe uma série de ineditismos ao posto.
Melania foi a primeira a ter nascido fora dos EUA desde Louisa Adams (esposa do presidente Quincy Adams, que governou há quase 200 anos). Também foi a única no cargo a não ter o inglês como língua materna, a primeira a ter posado nua em uma revista (ela apareceu em uma cama junto a outra modelo na extinta revista francesa Max, em 1996) e a primeira terceira esposa de um presidente em exercício.
Se o passado poderia sugerir uma personalidade questionadora de valores tradicionais ou mesmo progressista, os últimos 4 anos mostraram Melania ao lado de um dos presidentes mais conservadores da história recente americana.
Dona de dois passaportes — Melania também é a primeira primeira-dama naturalizada norte-americana —, ela fez parte de um governo hipernacionalista, cujo slogan era "América Primeiro" e que impôs uma série de políticas protecionistas, voltadas para dentro, em uma ruptura com a tradição de defesa do livre mercado vista em Washington.
Campanha antibullying na internet
A única empreitada política de Melania no cargo foi a campanha BeBest, criada em 2018 para atuar contra o uso de opioides entre crianças e o bullying em redes sociais.
No site da Casa Branca, a empreitada diz buscar "interações na internet que sejam edificantes, positivas e respeitosas.
"Posso dizer que sou a pessoa que mais sofre bullying no mundo", disse Melania em uma rara entrevista à rede ABC em 2018.
Mas o desconforto não parece se estender aos atos do marido.
Trump já disse que a ativista adolescente Greta Thunberg, diagnosticada com síndrome de Asperger, uma forma de autismo, deveria "trabalhar seu problema de controle de raiva".
Durante toda a campanha presidencial, ele usou suas redes sociais para chamar Joe Biden de "Joe sonolento" — Biden fará 78 anos em novembro.
Há quatro anos, ele foi ainda mais duro com a oponente Hillary Clinton na primeira corrida presidencial, a quem chamava constantemente de "trapaceira".
"A campanha (BeBest) nunca realmente saiu do papel, com equipes competentes e projetos visíveis", avalia a pesquisadora Betty Boyd Caroli.
Jaqueta
Mas a maior contradição da biografia de Melania Trump aconteceu em junho de 2018, quando usou uma jaqueta verde oliva da marca espanhola Zara, que custa US$ 39, com os dizeres "Eu realmente não me importo, e você?".
A roupa fora escolhida para uma visita a abrigos no Texas onde eram mantidas crianças imigrantes que foram separadas de seus pais enquanto tentavam cruzar a fronteira dos Estados Unidos.
A atitude ganhou repercussão negativa global e levantou a questão se a escolha da peça havia sido proposital. A Anistia Internacional nos EUA se disse à época "chocada com a gritante falta de empatia" da primeira-dama.
"O casaco que ela usou na fronteira foi o seu momento mais polêmico e ainda é muito confuso. Por que ela pisaria em sua mensagem de empatia com uma declaração mesquinha como essa?", pergunta Kate Andersen Brower em entrevista à BBC News Brasil.
"Não consigo pensar em nenhum episódio positivo que fique para a história", complementa a escritora Betty Boyd Caroli.
"Ela teve episódios memoráveis negativos", continuou, citando a controversa jaqueta.
As explicações da primeira-dama foram conflitantes.
"Eu preferiria que (a mídia) se concentrasse no que eu faço e nas minhas iniciativas, em vez do que eu visto", disse Melania à rede ABC.
"Óbvio que não coloquei minha jaqueta para crianças. Usei o casaco para entrar e sair do avião. E foi para as pessoas e para a mídia de esquerda que estavam me criticando", continuou.
A menção crítica à imprensa contradizia a resposta de sua porta-voz, Stephanie Grisham, que dias antes descreveu a peça como "uma simples jaqueta" sem "mensagens ocultas".
A relação de Melania com a imprensa nunca foi fluida.
Em entrevista à rede Fox News, em 2018, a primeira-dama foi questionada sobre qual seria a coisa mais difícil a se lidar no cargo.
"Os oportunistas", ela respondeu. "Os que usam meu nome ou o da família para se promoverem, de comediantes a jornalistas a atores e autores."
Para a escritora Brower, as raras declarações de Melania sugerem uma mulher "infeliz com a posição e que sentia que, como seu marido, era maltratada pela imprensa".
"Ela se sentia desconfortável na Casa Branca e isso transparecia todos os dias", avalia Brower.
Em sua primeira aparição sozinha para apoiar a campanha eleitoral do marido, em 27 de outubro, na Pensilvânia, Melania voltou a criticar a imprensa.
"A mídia cria uma imagem do meu marido que não reconheço", disse ela.
E defendeu que as pessoas se informem por redes sociais. "Pela primeira vez na história, os cidadãos deste país podem ouvir direta e instantaneamente seu presidente todos os dias", disse, fazendo uma ressalva sobre o tom do presidente.
"Nem sempre concordo com a maneira como ele diz as coisas", disse, embalada por risos na plateia.
Plágio
O desgaste com a imprensa já era forte antes mesmo da primeira eleição de Trump.
Centro das atenções no primeiro dia da Convenção Nacional do Partido Republicano, em 2016, ela repetiu, em discurso, frases idênticas às usadas pela antecessora Michelle Obama na convenção democrata de 2008 — o que gerou acusações de plágio, o que ela nega.
Em um trecho, ela dizia: "Meus pais me marcaram com o valor de trabalhar duro pelo que você quer na vida; que sua palavra é sua garantia e que você deve cumprir o que diz e manter sua palavra; que você trate as pessoas com respeito."
O discurso de Michelle em 2008 tinha os seguintes trechos: "Eu e Barack fomos criados com muitos valores iguais: que você trabalhe duro pelo que quer na vida, que sua palavra é sua garantia e que você faz o que diz que irá fazer; que você trate as pessoas com dignidade e respeito."
O discurso de Melania Trump continuava: "[Meus pais] me ensinaram a mostrar valores e moral na minha vida cotidiana. Essa é a lição que continuo a passar a nosso filho. E precisamos passar essas lições a muitas gerações por vir, porque queremos que nossas crianças nessa nação saibam que o único limite às suas conquistas é a força de seus sonhos e sua disposição de trabalhar por eles."
Em 2008, Michelle havia dito: "Barack Obama e eu começamos a construir nossas vidas guiados por esses valores, e para passá-los às próximas gerações. Porque queremos que nossas crianças, e todas as crianças dessa nação, saibam que o único limite para a altura de suas conquistas é o alcance de seus sonhos e sua disposição de trabalhar por eles."
Empatia
Quatro anos depois, no entanto, na mesma convenção republicana, Melania teve seu "melhor momento", na avaliação da escritora Kate Andersen Brower.
"Foi quando ela ofereceu simpatia e compaixão pelas pessoas que haviam perdido entes queridos para o coronavírus", avalia.
"Ela mostrou o seu melhor quando suavizou a imagem do marido ao tentar se conectar com as crianças."
Naquele 25 de agosto, no jardim da Casa Branca, a fala de Melania foi descrita como a voz de empatia do trumpismo.
"Quero reconhecer o fato de que, desde março, nossas vidas mudaram drasticamente. Um inimigo invisível, a covid-19, varreu nosso belo país e trouxe impactos a todos nós. Minhas mais profundas condolências vão para todos que perderam entes queridos e minhas orações vão para os que estão doentes ou sofrendo. Sei que muitas pessoas estão ansiosas e algumas se sentem desamparadas. Eu quero que você saiba que não está sozinho.", disse.
Ela também abordou os direitos das mulheres.
"No relvado norte da Casa Branca, inauguramos uma mostra dedicada ao sufrágio feminino. A mostra convidou crianças de todo o país a enviar obras de arte em homenagem ao significado desse momento importante da história das mulheres. Quando estava julgando as inscrições, refleti sobre o impacto das vozes das mulheres na história de nossa nação e como ficaria orgulhosa de votar novamente em Donald em novembro. Devemos garantir que as mulheres sejam ouvidas e que o sonho americano continue a prosperar", afirmou a primeira-dama.
Um dos comentários que mais repercutiram foi a discreta menção a desigualdade racial no país.
"Como todos vocês, refleti sobre a agitação racial em nosso país. É uma dura realidade não nos orgulharmos de partes da nossa história. Eu encorajo as pessoas a se concentrarem em nosso futuro enquanto aprendem com nosso passado. Devemos lembrar que hoje somos todos uma comunidade composta de muitas raças, religiões e etnias", afirmou.
Expressões e gestual ao lado de Trump
Enquanto fala muito pouco publicamente, Melania é uma figura amada e odiada na internet principalmente pela maneira arisca como muitas vezes se comporta quando está ao lado do marido.
Os primeiros memes surgiram em 20 de janeiro de 2017, dia da posse presidencial, quando ela automaticamente encerra um sorriso amarelo logo destinado a Trump depois que o marido se vira para outro lado.
Em maio de 2017, em visita oficial a Israel, aconteceu a primeira de umas série de manobras para evitar dar as mãos a Donald Trump. Enquanto ambos caminhavam em direção a um tapete vermelho e Trump tentava alcançá-la, Melania é vista dando uma espécie de tapa leve para afastar a mão do presidente.
A cena se repetiu diversas vezes — uma das mais conhecidas foi em abril de 2018, na Casa Branca, quanto Trump tenta insistentemente, primeiro com o indicador, depois com o dedo mindinho, conquistar a atenção da esposa, que permanece imóvel.
Trump decide estender todos os dedos de uma vez e envolve a mão direita de Melania, que não esboça qualquer reação.
A campanha eleitoral trouxe momentos semelhantes, mas o que ficará para a posteridade foi registrado no fim do debate presidencial de 23 de outubro.
Enquanto o agora presidente-eleito Joe Biden ganhava um abraço efusivo da esposa, a professora Jill Biden, Trump e Melania dão as mãos por alguns segundos — cena que termina quando Melania se separa das mãos do marido para caminhar para fora do estúdio.
Legado
Em uma entrevista em 1999, muitos anos antes da vida trazê-la para dentro da Casa Branca, Melania falou sobre o posto de primeira-dama ao jornal The New York Times.
"Eu seria muito tradicional. Como Betty Ford ou Jackie Kennedy", disse.
Mais de 20 anos depois, as comparações entre Melania e a esposa de John F. Kennedy, 35º presidente dos EUA, limitam-se ao vestuário.
"Ela tentou (e conseguiu) várias vezes imitá-la, pelo menos em termos de moda", aponta uma reportagem da revista Marie Claire, publicada nos EUA.
"Mas o que Melania, Donald Trump e sua administração não conseguem reconhecer é que Jackie era muito mais do que seu estilo icônico. Suas roupas eram uma extensão de seu caráter. As raízes artísticas de Jackie Kennedy — ela estudou história, literatura, arte e francês no Vassar College e passou um tempo estudando no exterior em Paris — deram um significado à sua moda", diz o texto.
À BBC News Brasil, a especialista Betty Carole destacou pontos fracos de Melania no cargo em comparação com outras primeiras-damas.
"Ela praticamente não fez campanha em nenhuma das candidaturas de seu marido ao cargo", diz. "E demorou a assumir até mesmo as tarefas mínimas de esposa presidencial, como supervisionar a Ala Leste da Casa Branca e organizar visitas turísticas."
"Não consigo pensar em nenhum episódio memorável. As pessoas que veem a primeira-dama como uma definidora de estilo, em roupas e penteados, podem ter algumas sugestões sobre esse assunto", continuou a escritora, para quem o papel de Melania na Casa Branca não foi subestimado:
"Acho que foi insignificante."
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