A revolução americana foi um dos processos fundadores do que se tem chamado a democracia liberal, iniciando o desenvolvimento da que viria a ser a principal potência mundial. A revolução fez-se sob a égide de uma Declaração de Independência que, em 1776, afirmava solenemente que “Consideramos estas verdades como auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.
No entanto, desde 1600 terão sido transportados para aqueles territórios cerca de dois milhões e meio de escravos. Nem todos os seres humanos eram iguais no novo país, nem tinham direitos inalienáveis.
Pelo contrário, os direitos que eram retirados a uma parte da população eram precisamente a vida, a liberdade e a busca da felicidade, pois essas pessoas eram reduzidas ao estatuto de mercadorias.
Escravatura
A escravatura organiza a submissão do corpo, do tempo e da vontade, coisificando a vítima até à degradação abjeta. Retira a vida da esfera do direito e subordina-a aos interesses da exploração e aos caprichos do explorador. Os escravos eram mortos-vivos, que foram usados e podiam ser mutilados, violados, exibidos ou vendidos, sendo toda a sua existência sujeita ao arbítrio sem limites. Por isso, no seu livro As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt descobre no próprio processo de alegação da raça a negação absoluta do humano: “A raça é, politicamente falando, não o início da humanidade mas o seu fim, (…) não o nascimento natural do homem, mas a sua morte artificial”.
A necropolítica foi, até ao final do século XIX, esta forma de poder sacrificial que afirmava a indiferença da morte ao longo da vida e reclamava a autoridade de impor o “direito soberano de matar”, uma expressão sugerida por Achille Mbembe, um sociólogo camaronês que atualmente ensina em Harvard e a que me referirei adiante.
O contraste entre a Declaração da Independência dos Estados Unidos, anunciando a “verdade autoevidente” da liberdade como o fundamento da sociedade, e o paradoxo de esta ser recusada a muitas pessoas, foi o centro das principais disputas que definiriam o novo país. Foi o que aconteceu logo na guerra contra o Rei britânico. Compreendendo a fragilidade das milícias continentais pelo facto de serem dirigidas por esclavagistas, as forças de Sua Majestade prometeram a emancipação a todos os escravos que fugissem para o seu território: um em cada cinco assim fez. Harry Washington, escravo do chefe militar que viria a ser o primeiro presidente dos EUA e que, como era costume, ficou conhecido pelo nome do dono, foi um dos fugitivos. Tinha sido capturado na Gâmbia e vendido para a plantação de Washington na Virgínia, de onde escapou, vindo a tomar os galões de cabo no exército britânico.
Depois da derrota, foi viver para o Canadá. Voltou no fim da vida para África, para a Serra Leoa, e foi um dos porta-vozes mais conhecidos do movimento anti-esclavagista da sua época.
O jovem Alexis de Tocqueville, um aristocrata francês que visitou os EUA na década de 1830 para estudar o seu sistema prisional, publicou no seu livro Da Democracia na América um retrato do país em que descobriu a violência da discriminação racial: “permite-se que o negro implore ao mesmo deus dos brancos, mas não rezar no mesmo altar”. E, como notou, mesmo nos raros casos de estados em que os escravos tinham sido libertados e tinham obtido direitos políticos, não os podiam exercer (o direito de voto dos homens negros foi estabelecido antes de as mulheres, brancas ou negras, terem a mesma faculdade): “em quase todos os estados em que a escravatura foi abolida, foram dados direitos eleitorais ao negro; mas, se ele se apresenta para votar, corre risco de vida”.
Como os outros escravos, tinha pela frente um inimigo grandioso. O racismo era a normalidade do país. Dos sete mais destacados fundadores do novo estado, só John Adams e Alexander Hamilton não eram proprietários de escravos. Dez dos primeiros doze presidentes norte-americanos eram donos de escravos, sendo as únicas exceções Adams e o seu filho.
Tal era a importância do esclavagismo que se transformou em argumento num difícil acordo político quando se tratou de definir as regras para representar os estados no Congresso. Nos termos desse acordo, o número de escravos passou a ser uma vantagem política: como a delegação eleitoral era determinada em função da população de cada estado e foi decidido que um escravo contava como três quintos de uma pessoa, os estados esclavagistas obtiveram uma sobre-representação no congresso.
A Virgínia, por exemplo, com menos votantes mas com muitos escravos, tinha mais eleitos na câmara de representantes do que Massachussets, que não tinha escravos, embora tivesse mais pessoas com direito a voto.
A guerra civil (1861-1865) terminou com a vitória das forças anti-secessão, que incluíam alguns territórios esclavagistas, e Lincoln impôs a sua escolha, decretando o início da emancipação. Pouco depois do fim da guerra, foi assassinado, mas já estava em curso a aprovação da 13ª emenda constitucional, que veio a tornar irreversível a abolição da escravatura. Começava uma nova era e terminava o primeiro período do necropoder, o da submissão dos escravos. Mas, como escreve uma das historiadora mais destacadas do país, Jill Lepore, depois de 250 anos de escravatura sobrevieram mais 100 anos de supremacismo branco, a segunda época do necropoder.
Houve decerto outros processos que determinaram a evolução ao longo destes séculos, sendo o mais importante a emergência do capitalismo industrial e depois financeiro, que determinou a geografia das suas classes sociais, nomeadamente da classe operária, que nasceu sem direitos, nem em vida (os sindicatos eram proibidos), nem na morte (as suas associações cotizavam-se para pagar os funerais). O outro pilar da modernidade foi a opressão das mulheres, e um conhecido episódio da revolução americana constitui mais um exemplo de como foi precoce a perceção da discriminação: Abigail Adams escreveu em 1776 ao seu marido, John, um dos autores da Declaração de Independência, recomendando que, na nova legislação, “não ponha um poder tão ilimitado nas mãos dos maridos”, pedindo-lhe que se “lembre de que todos os homens serão tiranos se puderem” e anunciando-lhe que, não sendo ouvidas, as mulheres poderiam “fomentar uma rebelião”. John Adams respondeu misturando o sarcasmo com a ameaça: “Quanto ao seu extraordinário Código de Leis, só me posso rir”, dado que poria em causa “os sistemas masculinos”. John queixou-se da desobediência dos jovens aprendizes, do tumulto dos estudantes, da insolência dos negros, da revolta dos índios, pelo que esta “outra tribo”, a das mulheres, não se deveria juntar a tal estado de perturbação. E acrescentou a tentativa de sedução: de todo o modos “na prática somos (os homens) os súbditos (das mulheres)”.
Deixando para outro momento uma análise desses modos de sedução e de submissão, neste ensaio centrar-me-ei na forma como a necropolítica utiliza o racismo para estimular o ódio social contra os mais frágeis.
A segunda época do necropoder
Na sua monumental história dos Estados Unidos, publicada em 2018, “These Truths” (a expressão da Declaração de Independência), Lepore escreve que “os confederados perderam a guerra, mas ganharam a paz”. O facto é que, desde o último quartel do século XIX, apesar de vencidos os exércitos sulistas, se generalizaram na república as leis discriminatórias que viriam a ser conhecidas como leis Jim Crow.
Embora as origens da designação pareçam obscuras, pode ser que o nome Jim Crow tenha sido inspirado numa então popular caricatura de um negro retratado como um folião.
Lei Jim Crow passou a ser, em todo o caso, o nome das normas segregacionistas que perduraram por mais um século depois da derrota dos confederados na guerra civil, estabelecendo um regime de discriminação generalizada no espaço público, nas escolas, nos transportes, na moradia e mesmo em funções oficiais.
O Supremo Tribunal permitiu e mesmo reforçou estas normas, ao interpretar a 14ª emenda constitucional, que estabelecera que todos os nascidos e naturalizados são cidadãos, como permitindo a segregação, sob o argumento de que ser cidadão não é ser igual e que mesmo as formas aviltantes de proibição de acesso dos negros eram, assim, compatíveis com a Constituição. Indo mais longe, o Supremo manteve durante décadas uma jurisprudência que usou esta emenda constitucional para recusar a intervenção do governo federal na economia, alegando que poderia prejudicar a liberdade de empresa, transformando deste modo aquela garantia de cidadania universal num reduto de privilégios particulares.
As consequências deste sistema legal foram imensas e criaram regimes de medo. Os negros foram ameaçados e afastados das urnas nos estados em que a segregação era norma: na Luisiana havia em 1898 130 mil negros registados para votar, em 1910 já só eram 730.
Mas a consequência mais grave foi a generalização do terror, nomeadamente com a criação do Ku Klux Klan por ex-soldados confederados nos estados do sul, logo no ano seguinte ao fim da guerra civil. Uma testemunha dessa violência foi W.E.B. du Bois, o primeiro negro a obter um doutoramento em Harvard, uma das grandes universidade de Massachussets, na costa leste, onde nascera, e que tinha aceitado em 1897 um contrato na universidade de Atlanta, a capital da Geórgia, o palco de algumas das principais batalhas da guerra civil (E Tudo o Vento Levou passa-se na Geórgia). Du Bois poderia ter imaginado, trinta anos depois, que a guerra terminara. Mas conta-nos que um dia, ao sair da universidade, notou que na montra de uma loja estava em exibição uma parte do corpo de um homem. Era de Sam Hose, um negro que tinha sido linchado e cujo corpo foi vendido aos pedaços como recordações.
Os linchamentos foram o enunciado do terror, um em cada quatro dias no virar para o século XX. Em 1903, o governador do Mississipi dizia pomposamente que, “se necessário, todos os negros do estado serão linchados”, como regista Lepore.
Uns anos mais tarde, na década de 1920, o Ku Klux Klan tinha cinco milhões de membros. Ora, ao contrário da lenda, mesmo quando a necessidade ou o engenho conduziram a políticas sociais, como as que o New Deal do presidente Roosevelt mobilizou para combater a grande recessão dos anos trinta, a discriminação manteve-se: os programas rooseveltianos eram segregados, prevendo regras raciais distintas. O presidente não conseguiu sequer impor uma legislação que punisse os linchamentos, se é que quis fazer essa batalha: quando, em 1934, Claude Neal, acusado de assassinato, foi levado de uma prisão do Alabama para a Flórida, onde foi mutilado e executado perante quatro mil pessoas, foi apresentada uma lei contra este tipo de crime, mas os senadores sulistas bloquearam-na e a Casa Branca retirou a proposta. Como o presidente explicou nesse momento a representantes do movimento dos direitos civis, os eleitos pelos estados do sul eram velhos senadores, dominavam várias comissões e, para mais, eram do partido democrata, pelo que não podiam ser convencidos nem vencidos.
Depois de 1945, o direito dos veteranos de guerra de acesso à universidade (com propinas gratuitas) e a casa (com taxa de juro nula) foi barrado à maioria dos soldados negros. O facto é que as leis Jim Crow só foram abolidas muito mais tarde, nas décadas de 1950 e 1960, com a coragem de Rosa Parks ou as ferozes batalhas cívicas levadas a cabo pelo movimento liderado por Martin Luther King. O panorama era devastador: uma família negra teria em média um décimo do património de uma família branca (a relação atual é da mesma ordem).
A segunda época do necropoder chegava deste modo ao fim mas, como aconteceu na transição da primeira para a segunda, legava as suas raízes e cultura supremacista aos que viriam.
Os herdeiros de Jim Crow manifestaram-se de muitas formas.
Na Europa, foi o caso de Adolf Hitler, um admirador das duas formas do necropoder, tomando a legislação racial dos EUA como o modelo a seguir e elogiando a forma como o império britânico tinha escravizado os seus vassalos além-mar. Antecipava mesmo que a conquista da Rússia e do leste europeu seguiria os mesmos passos:
“O que a Índia foi para a Inglaterra, os territórios do leste serão para nós”, repetindo esse exemplo de “exploração capitalista de 350 milhões de escravos na Índia”.
Francisco Louçã
Sem comentários:
Enviar um comentário