Neste dia, 26 Abril em 1937, aviões alemães e italianos miraram em civis numa vila do país Basco — era a brutal estreia do bombardeio de terror
Foram 24 aviões, pilotados por homens das aeronáuticas da Alemanha e da Itália. Lentamente, alternando formações, voando a menos de 200 metros de altitude, eles gastariam três horas e 15 minutos sobre Guernica, entre 16h30 e 19h45 de 26 de abril de 1937. Quando eles se foram, mais de 70% da área urbana estava arrasada. As fábricas de armas que existiam na região havia décadas ficaram intocadas. Nenhum canal de acesso estratégico, nenhum edifício governamental, industrial ou militar foi destruído. Na doutrina militar em vigor até então, uma ação inútil.
O ataque massivo visava única e exclusivamente a população civil e os locais onde ela vivia - em grande parte, mulheres e crianças, já que os homens estavam fora, disputando a Guerra Civil Espanhola. Era um ensaio: na grande guerra que viria, realizar ataques massivos contra inocentes se tornaria prática corriqueira. Aconteceu em Londres, em Dresden, e, seu ponto culminante, em Hiroshima e Nagasaki. "O bombardeio de terror contra Guernica teve o objetivo de levar as lideranças bascas ao pânico e forçá-las a aderir ao general Franco", afirma o historiador britânico Paul Preston, professor da London School of Economics e autor de The Destruction of Guernica.
Dia de feira
O ataque foi realizado em um dia estratégico: todas as segundas-feiras, os agricultores da região se reuniam (e até hoje se reúnem) na praça principal para vender seus produtos. A vila recebia visitantes dos vilarejos vizinhos, interessados na feira. Nessas ocasiões, circulavam pelas ruas de Guernica 10 mil pessoas. Há controvérsias se o mercado foi realizado naquela data em específico, porque o governo local vinha restringindo as grandes concentrações de pessoas. Mas o fato é que quem escolheu a data conhecia a região e queria alcançar o maior número possível de civis.
E quem escolheu a data? Por muitos anos, essa não foi uma resposta óbvia, ao menos para os próprios espanhóis. O massacre foi seguido por anos de negativas de seus perpetradores. Em tempos de guerra, as informações eram escassas e, quando o conflito acabou, os vencedores omitiram quaisquer informações. "Eles queimaram a cidade inteira e depois culparam os comunistas. Minha irmã dizia: Não, os vermelhos não tem aviões", e as pessoas respondiam: Sua comunista, vamos cortar seu cabelo". Não podíamos nem dizer quem era o verdadeiro culpado pelo ataque", conta a sobrevivente Josefina Odriozola em uma entrevista à BBC.
A dificuldade de lidar com aqueles tempos confusos é tão grande que ainda hoje não se sabe exatamente quantas pessoas morreram no episódio: as estimativas variam de 150 a 1.650. A conta mais aceita fica na casa de 300 vítimas fatais. "O número exato de vítimas nunca vai ser conhecido, porque as forças de Franco tomaram a cidade logo depois, não tiveram a menor preocupação de registrar os nomes das vítimas. Só começaram a reerguer a cidade depois de 1939", afirma Paul Preston.
Mas não há a menor dúvida a respeito dos autores do massacre: o general Francisco Franco deu a ordem e escolheu o local. Seus aliados, a Alemanha e a Itália, cuidaram do resto. Franco liderava a Frente Nacionalista numa guerra contra os republicanos, aliados dos socialistas e anarquistas, grupo no poder desde 1936. A guerra civil havia começado quando Franco e seus seguidores entraram em motim contra esse governo, que viam como subversivo. O general venceria em 1939 e se manteria como ditador até morrer, em 1975.
Anel de fogo
Guernica não estava na linha de frente do conflito, mas era um ponto estratégico. Primeiro, por sua localização ao norte da Espanha, nos arredores de Bilbao. Segundo, por ser uma área de tradição na fabricação de armas - as indústrias, não atingidas pelo bombardeio, seriam usadas pelos nacionalistas.
Mas, principalmente: a cidade era a alma do País Basco. Abriga a Gernikako Arbola, a árvore de Gernika (é assim que os locais escrevem o nome da cidade), um carvalho que simboliza os desejos de autonomia do povo basco - e a oposição à independência dos bascos, catalães e galegos era um ponto nevrálgico da ideologia nacionalista. Guernica seria rendida ao general Franco dias depois, em 29 de abril.
Uma das muitas evidências de que o ataque foi planejado como um ato político é o fato de nenhum sobrevoo de reconhecimento ter sido realizado: os aviões simplesmente surgiram no meio da tarde. Nenhum era espanhol: a ação foi conduzida por dois aviões Heinkel He 111, um Dornier Do 17 e outros 18 Junkers Ju 52, pertencentes à Legião Condor, da Alemanha nazista, e três modelos Savoia-Marchetti SM.79 da Aviazione Legionaria, da Itália fascista.
O comandante da Operação Rügen (nome oficial do ataque) foi Wolfram von Richthofen, primo do Barão Vermelho, Manfred von Richthofen. Wolfram organizou a movimentação em cinco atos, começando por bombas que provocassem incêndios e continuando com explosivos capazes de abalar edifícios inteiros. Com os edifícios abalados e os hidrantes destruídos, o incêndio não pôde ser contido.
"A população aterrorizada que tentou deixar a cidade se viu acuada por caças que atiravam com metralhadoras em todas as saídas", afirma a historiadora Helen Graham, professora da Royal Holloway, centro de pesquisas da Universidade de Londres, e autora de The Spanish Republic at War. "Os alemães depois voltariam a usar essa tática e se referiam a ela como o anel de fogo", expressão criada pelo próprio Richthofen em referência a O Anel do Nibelungo, de Richard Wagner."
Bombardeio de terror
Para Von Richthofen, Guernica tinha ainda uma outra vantagem: estava intocada pelo conflito, o que permitiria averiguar os efeitos concretos do ataque. O objetivo era transformar a cidade espanhola num experimento inicial para novos bombardeios contra civis. A blitzkrieg, que ficaria famosa na Segunda Guerra, precisaria desse tipo de ação contra civis.
"Em Guernica foi realizado o primeiro teste de uma estratégia clara: romper com os antigos limites morais e as regras de cavalheirismo do século 19 e promover a guerra total, sem regras e que extermina vidas não só dos militares que pegam em armas mas também de seus familiares que ficaram em casa", afirma o historiador Paul Preston.
A estratégia seria usada pelos países do Eixo primeiro, por exemplo na cidade britânica de Coventry, atacada por ar dezenas de vezes, por alemães que partiam do litoral norte da França. Em 14 de novembro de 1940, 515 bombardeiros do Eixo quase tiraram a cidade do mapa. De sua catedral, só sobrou uma parede.
Mas nem de longe o terrorismo aéreo seria exclusividade dos nazifascistas. Os "mocinhos", os aliados, abraçaram a estratégia com grande entusiasmo. A cidade alemã de Dresden foi arrasada por americanos e britânicos em fevereiro de 1945: de novo, bombas explosivas e incendiárias foram combinadas para destruir edifícios, inutilizar hidrantes e atingir vidas inocentes.
No Japão, em 1945, o bombardeio de terror chegou a um novo nível de crueldade, jamais repetido ou ultrapassado: com Hiroshima e Nagasaki em cinzas e os sobreviventes sujeitos a todo tipo de doença provocada pela radiação nuclear, o governo de Tóquio se viu forçado à rendição. Também foi a única vez que um bombardeio de terror atingiu seu objetivo. Por toda a Segunda Guerra, por mais bombas que caíssem, nenhum lado decidiu se render - nem o Japão até então.
Memória dolorosa
Guernica se recuperou do ataque. A cidade, que na época tinha 5 mil habitantes, hoje tem 16 mil. Continua sendo referência para os bascos, e a Gernikako Arbola continua em pé. A cidade mantém um Museu da Paz, que se dedica a debater os efeitos pavorosos dos conflitos militares. Mas não abriga, curiosamente, a obra de arte que a consagrou no imaginário popular e transformou o bombardeio numa agressão impossível de esquecer.
A Guernica de Pablo Picasso nasceu em 1937, na França. Entre 1939 e 1981, foi abrigada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, a partir de onde viajou o mundo inteiro, incluindo o Brasil, na década de 1950. Só voltou para a Espanha depois do estabelecimento da democracia - Picasso havia exigido que a obra só tocasse sua terra natal quando o país deixasse de ser uma ditadura. Desde 1991 permanece no Museu Rainha Sofia, em Madri. Os moradores de Guernica tentam há décadas, sem sucesso, ficar com a guarda do trabalho que eternizou seu sofrimento.
Se não conta com a obra-prima de Picasso, Guernica sobrevive sobre escombros e cadáveres insepultos. "O governo espanhol nunca procurou pelos corpos soterrados pelos escombros da cidade", afirma a professora Helen Graham. "Guernica se reergueu sobre os corpos nunca resgatados."
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