Desde que os fenómenos populistas começaram a ter mais protagonismo político, nomeadamente com as vitórias eleitorais de Donald Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro, no Brasil, que se têm desmultiplicado as análises em busca das explicações para tal fenómeno. Se é certo que o populismo é uma velha estratégia eleitoral, desde a antiga Roma até à Europa do entre guerras, a capacidade que alguns políticos estão a ter para, repetindo técnicas antigas, conquistarem o poder no séc. XXI é, de facto, merecedor de reflexão.
É que, nunca como agora, as pessoas estão instruídas (academicamente) e com acesso à informação. Nunca, também, esteve o mundo tão rico ou com tantas pessoas com tanta saúde. Ainda assim, as retóricas inflamadas e demagógicas, baseadas em falsidades, mantêm o seu poder de penetração na mente de muitas pessoas, que querem promessas de soluções simples e locais para problemas complexos e globais. Mesmo antes de Trump e Bolsonaro, a Europa já lidava com os Le Pen, com Salvini (e ainda antes com Berlusconi), com Orbán, com Erdogan, com o UKIP ou com a AfD.
Enfim, a cobertura eleitoral que está a ser dada a estes populistas tem que ter uma explicação. E é na busca dessa explicação que alguns estão a cometer o mesmo delito que tentam explicar: apresentar como verdadeiras, causas erradas.
Para muitos, a origem do populismo está numa espécie de abandono a que algumas pessoas teriam sido votadas, ora pelos Estados, ora pelo funcionamento da globalização. Pessoas menos instruídas, que se estariam a tornar cada vez mais substituíveis por máquinas, ou por trabalhadores doutras paragens, que estariam a sentir-se em piores condições que os seus pais e que, por isso, estavam a “ser do contra”: votar naqueles que prometessem destruir o sistema actual e construir um admirável mundo novo, onde essas pessoas recuperassem o controlo e a esperança.
Curiosamente, este mesmo argumento pode ser usado pela direita e pela esquerda: a esquerda, culpando a globalização neoliberal; a direita, acusando o Estado de proteger uns e desproteger outros e minar a liberdade individual.
Em todo o caso, os votantes nos populistas seriam os filhos enjeitados da sociedade, uns coitadinhos que se compreende que votem pela desconstrução, quais crianças birrentas.
Ora, acontece, que tal é uma desqualificação insuportável dos eleitores e das suas vontades. Dizer que os eleitores votam sem pensar direito em quem estão a votar, independentemente das suas preferências e interesses, apenas porque estão chateados com a vida, é desacreditar a democracia e infantilizar os indivíduos.
Sejamos sérios: quem vota nos populistas gosta deles, do que eles dizem, pensam e fazem. Pelo menos, gosta mais desses populistas do que de todos os outros políticos em quem podia votar. Não por acaso, as mulheres, ou os negros, votaram muito mais Biden do que Trump, enquanto que os homens brancos votaram mais em Trump do que em Biden. E muito mais pobres e discriminados votaram em Biden do que em Trump.
O voto é sempre sério, e quem dá o seu voto deve ser responsabilizado por ele.
Os incitamentos insanos que Trump fez só têm impacto porque muitos pensam como ele, muitos votaram nele.
Por cá, as alarvidades medievais e anti-humanistas que Ventura propala, só têm impacto porque há muitos que pensam como ele.
Os eleitores dos populistas não são inimputáveis (caso fossem, não poderiam votar). São adultos que, perante um enorme leque de escolhas (veja-se o número de partido políticos que existem em Portugal, e em tantos outros países, e as múltiplas e diferentes ideologias propostas), optam por votar nos demagogos boçais. Porque se identificam.
Em artigo neste jornal, António Barreto fez a caracterização dos eleitores coitadinhos: coitadinhos que o Estado é mau, cobra impostos, só protege os funcionários públicos e impede o nosso tecido empresarial de prosperar e os políticos, esses, são todos uns corruptos que só pensam em si e nos seus amigos. Que alternativa tem o povo senão votar no populismo, para que o mundo, finalmente, se concerte.
Na mesma bitola, João Miguel Tavares, diz-nos que o povo é bom e sereno, só está a votar nos populistas para fazer barulho e acordar esta cambada de políticos ordinários que só mal lhe faz. É tudo boa gente, a votar mal para criar o bem…
Não me identifico com esta postura fatalista e desculpabilizante.
As pessoas que votam nos populistas estão mais próximas do pensamento por eles verbalizado, do que de todas as outras alternativas. E sim, em Portugal, muitas dessas são machistas, racistas, homofóbicas, fundamentalistas religiosas, punitivas, violentas, ressabiadas, desrespeitadoras da ciência, más cidadãs (fogem aos impostos e abusam dos recursos públicos) e, caso tivessem poder político, melhor comportamento moral não teriam do que os que lá estão (como a realidade do Chega já comprova).
A democracia é um sistema para adultos. Para as crianças, impõe-se o paternalismo.
Em democracia, somos responsáveis pelo poder que damos aos políticos em quem votamos e co-responsáveis pelas suas acções (boas ou más).
Na verdade, o populismo só existe porque há muitas pessoas que se identificam com os valores e discursos defendidos pelos seus protagonistas. Hoje, como ontem, o populismo existe, e continuará a existir.
Não nego que as condições da sociedade e da economia influem na forma como as pessoas votam. Mas o principal problema é mesmo ao nível das percepções e da mobilização.
Quem está contra o argumentário populista tem a difícil tarefa de ser mobilizador mostrando que a realidade é complexa, e que não há soluções milagrosas. Que a globalização é, em certo sentido, irreversível (embora transformável), mas que a democracia e o humanismo são as estruturas indispensáveis a uma vida civilizada, e que as devemos consolidar, nunca abandonar.
De resto, a democracia é, também, um sistema de tentativa e erro. E os americanos (na sua maioria) já perceberam que pôr um populista no poder, no fim do dia, dá trampa.
Sejamos inteligentes, e evitemos essa estrumeira por cá.
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