As incoerências ideológicas do Chega são um espelho de um processo de decisão puramente baseado na opinião pública.
Ventura e o Chega vieram provar que Portugal tem, ao contrário do que muitos afirmavam, uma forte procura por movimentos antipolíticos e demagógicos que simplesmente não era correspondida. O partido não só entra no parlamento durante um dos períodos económicos mais favoráveis das últimas décadas, como vê as suas intenções de voto crescerem drasticamente desde a sua eleição. Apesar das semelhanças, este movimento de extrema direita justicialista teve um resultado que o PNR (extrema direita) jamais sonharia obter durante a intervenção da Troika, período em que o desemprego jovem se aproximou dos 40%.
Para além do forte financiamento e visibilidade mediática, a receita para o sucesso do Chega baseia-se num forte conhecimento de estudos de opinião da população portuguesa. O próprio André Ventura assume explorar a dicotomia entre realidade e perceção quando questionado (Diário de Notícias) se Portugal é um pais pacífico: “Estou a dizer que uma coisa é a análise dos relatórios, e nos relatórios, é evidente, Portugal é dos mais pacíficos, ainda agora no debate do programa do governo o primeiro-ministro disse isso. Outra coisa é a perceção real e os números reais que as pessoas têm do ponto de vista da perceção e da existência”.
Ao ver Marcelo Rebelo de Sousa passar de comentador televisivo para o político mais popular do país, Ventura decidiu copiar o seu modus operandi. Complementa o populismo mediático do Presidente da República com o seu cataventismo político, sem apresentar qualquer pudor ideológico. Suas contradições e incoerências são única e exclusivamente um espelho da opinião de uma grande parte dos portugueses, que Ventura analisa em estudos de perceção. O seu discurso baseia-se essencialmente na luta contra a corrupção, anti partidarismo/sistema, segurança pública e ataque a minorias.
A impopular corrupção
No contexto europeu, os portugueses apresentam um padrão bastante peculiar nas suas visões face à corrupção. De acordo com o último Eurobarometro (Junho 2020), Portugal é o país da União Europeia (UE) que apresenta maior intolerância face corrupção; considera que é um problema espalhado em toda a sociedade; e é simultaneamente o estado-membro em que menos indivíduos conhecem pessoas envolvidas em situações desta natureza. Este puzzle é desfeito no mesmo inquérito, em que os portugueses identificam os partidos políticos e a banca como as duas instituições em que a corrupção ocorre com maior frequência. As incoerências ideológicas do Chega são um espelho de um processo de decisão puramente baseado na opinião pública: junta-se ao Partido Comunista Português e ao Bloco de Esquerda para limitar o poder dos bancos de cobrar comissões; ao mesmo tempo que se alia à Iniciativa Liberal para chumbar a “taxa Netflix” e a introdução de um imposto de 10% sobre os rendimentos de reformados estrangeiros a viver em Portugal.
Oportunisticamente inserido no “sistema”
O Chega define-se frequentemente como antissistema, no entanto, o partido explora ao máximo o sistema democrático a seu benefício, em particular o parlamento e os meios de comunicação social. Apesar das afinidades com Pinto Coelho e Mário Machado, o presidente do Chega declara-se publicamente a favor do 25 de Abril. No seu discurso de comemoração na Assembleia da República, o deputado optou por falar de um Abril traído pela corrupção e defender a implementação de uma quarta República.
Um recente estudo de opinião mostra que a sociedade portuguesa é a que tem o menor interesse por política dentro da UE. Simultaneamente, mais de dois terços dos inquiridos estão satisfeitos com o funcionamento da democracia, substancialmente acima da média europeia. Mesmo com um programa político que não respeita vários valores democráticos inscritos na Constituição da República, André Ventura sabe perfeitamente, ao contrário da velha extrema direita, que referências abertamente antidemocráticas são a linha vermelha para a maioria dos eleitores. A falta de interesse por política dos portugueses e pouca confiança no parlamento faz com que o deputado possa faltar regularmente a debates e votações de projetos de lei sem perder popularidade.
Apesar das afinidades com Bolsonaro e Trump, a relação do político português com o quarto poder é bem mais amigável. Ventura ganhou notoriedade mediática através do comentário televisivo e entende perfeitamente a importância deste para se legitimar no mainstream político: Portugal é o segundo país da UE que mais confia em meios de comunicação social e considera a televisão e rádio as fontes de informação mais credíveis. Quando confrontado pelo não cumprimento da promessa eleitoral de ser deputado em regime de exclusividade, o líder do Chega afirmou que considerava o comentário televisivo (incluindo o futebolístico) parte do exercício das suas funções políticas.
Para mobilizar a militância de extrema direita, o partido adota uma estratégia de comunicação alternativa, em paralelo, de milícias digitais inspiradas no bolsonarismo e em Steve Bannon, antigo estrategista de Trump.
Polícia - a coluna vertebral
A tática política do Chega relativa a minorias étnicas explora as especificidades da sociedade portuguesa e é indissociável do seu discurso de segurança pública. A cartilha usada pela extrema-direita do centro/norte da Europa (ex: Islamização da Europa; roubar empregos; etc) é pouco apelativa ao eleitorado português. O Chega identifica dois sentimentos para explorar o alto nível de preconceito racial existente na população portuguesa: a herança colonial do país e a sensação de insegurança generalizada.
Estima-se que Portugal tenha recebido aproximadamente 500 mil retornados, um grupo que na sua maioria se sente lesado pelo processo de descolonização. Ventura pretende seduzi-los ao explorar este sentimento. O deputado da extrema direita não sente necessidade de camuflar o seu racismo, ao sugerir deportar uma deputada (por duas vezes), quando defende que Portugal não tem qualquer dívida histórica com as antigas colónias. A defesa da herança colonial e a negação de racismo na sociedade são formas de mobilizar a militancia de extrema-direita e tentar criar uma perceção de apoio popular generalizado.
Portugal é considerado um dos países mais pacíficos do mundo. Contudo, os portugueses têm tanto medo de andar sozinhos à noite como os norte-americanos, que vivem num país com uma taxa de homicídio 5 vezes superior. Usando a perceção de insegurança pública, combinado com um sentimento de alta confiança nas forças de segurança (gráfico 4), o partido polariza a sociedade: contrapõe os “cidadãos de bem” que apenas querem viver em segurança e apoiam a polícia contra as minorias que não cumprem a lei.
O interesse de André Ventura pelas forças de segurança vai para além da polarização da sociedade e ataque a minorias étnicas. O partido tem fortes ligações a um novo sindicato da PSP (Polícia de Segurança Pública) e ambiciona quebrar a hegemonia da esquerda no plano sindical. O partido tenta criar uma agenda laboral de extrema-direita focada no “direito à segurança” no posto de trabalho. Não é por acaso que o Chega propõe no parlamento votos a condenar agressões a professores. Além disso, Ventura já defendeu publicamente que a gestão das escolas deve passar do Ministério da Educação para os professores, uma das classes profissionais mais sindicalizadas do país e com uma relação conturbada com o Ministério que a tutela.
Combater a extrema-direita no seu proprio terreno
De acordo com recentes sondagens, o Chega provavelmente ultrapassaria o patamar dos 10 deputados e a atual crise económica deverá reforçar o partido. Por mais apelativo que seja, denunciar as faltas parlamentares de Ventura, as suas contradições ideológicas, ou as ligações com o Movimento Zero não irão mudar a opinião de um eleitorado com um baixo interesse em política e pouca confiança no parlamento. Para neutralizar o Chega, é necessário entender na perfeição quais as perceções públicas que o partido explora diariamente. A esquerda tem de criar um discurso de classe para as forças de segurança. Relativamente ao discurso xenófobo do partido, é fundamental demonstrar que este é um Cavalo de Troia para acabar com a habitação social existente. Esta política de destruição favoreceria interesses imobiliários de elites nacionais e estrangeiras, o que inevitavelmente agravaria a atual crise habitacional. Demonizar a polícia por todo o racismo estrutural do Estado português é uma simplificação que apenas ajuda a extrema-direita inteligente.
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