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domingo, 23 de agosto de 2020

Alentejo Cigano: a Feira de Castro



Neste Alentejo em que escolhi viver sinto que tamanha sorte de coabitar nos seus vastos horizontes choca com um Alentejo fechado, pela ausência da multidão de gentes e culturas diferentes e onde a intolerância ao “outro” tão pouco carece que aqui voltássemos a ter a diversidade das mourarias históricas: manifesta-se no Alentejo Cigano. Séculos de distância encerram os mesmos seres humanos que aqui sempre viveram nas “famílias da terra” e nos “ciganos”.
O Baixo Alentejo celebra o seu grande encontro na Feira de Castro. E não há feira sem ciganos, pois para esta ser a grande feira do Sul, ela é a feira do Alentejo cigano. Nestes dias as ruas de Castro Verde abrem-se na multidão de gentes de todos os tipos e feitios, e entre todos eles o cigano sente-se em casa. Nestes dias o Alentejo é esse horizonte aberto que a natureza dita e o homem teima em contrariar.
A casa porém anda às avessas. Mais ainda numa altura em que na crise o medo reina, nos controla e quebra os movimentos, proporcionando deixar cair a inteligência e a razão, para redirecionar a raiva contra o cigano lá de casa. Por isso a profunda discriminação dos ciganos no Alentejo tornou-se no exemplo recorrente quando se fala de racismo em Portugal. Vejam-se os sapos à vista em lojas, cafés ou serviços públicos, como outrora se contavam as estrelas de David nas vestes do holocausto. O paralelo é exagero, mas provocatório o suficiente para questionar e contrariar esse virar de costas que pauta a relação com o cigano. Um barril de pólvora traçável ao longo da história, que não escusa igualmente os ciganos, quando na condição de indigência e autoexclusão reiteram a perversão da igualdade social. A questão resume-se, como qualquer forma de racismo se reduz, na perceção do “outro” e das suas diferenças por parte dos grupos dominantes, pelo que o problema nasce na forma como nos relacionarmos, fazendo dos binómios “integração/exclusão social” e “deveres e direitos” os palavrões chave.
Acontece que o modo como nos relacionamos, impôs às minorias o que o sociólogo José Gabriel P. Bastos chamou de “aculturação antagonista”. Isto é “o desprezo pelo outro, que impede a sua assimilação, mas concretiza-se em estratégias que promovem a marginalização social, cultural e moral dos grupos desprezados, bem como o aumento da diferenciação social e a emergência de conflitos interétnicos que podem ir em crescendo e se tornar insanáveis, se os dominantes não mudarem de estratégia”. E a estratégia de integração não admite outra coisa que não seja civilizar e normalizar o cigano a comportamentos, hábitos e expectativas padronizadas na cartilha de deveres e direitos, nascida de uma história cultural e política, à qual os ciganos foram afastados, e sem nunca ter havido lugar a que esta se cruzasse com a sua própria e diversa cartilha de deveres e direitos.
Por outro lado, ao racismo vem acoplado o adiado conflito entre ricos e pobres, adiada precisamente pela tensão da miséria que divide estes últimos e privilegia os primeiros que a promovem. Os alentejanos da Vidigueira não ficam nem mais ricos nem menos pobres por perseguirem os ciganos. Os Bejenses não ficam mais seguros por erguerem um muro à volta do gueto cigano, nem tão pouco os pais e os professores que os querem em turmas só para ciganos. Mas todos eles certamente sentem-se mais alentejanos, e no perigoso eugenismo, mais limpos e mais certos da sua superioridade identitária. Um racismo primário, que determina que “eles” não podem ser cá da terra como “nós”, sendo vítimas de si próprios por não quererem ser como “nós”. A isso sobrevive o cigano afastando-se, e nessa crescente conflituosidade deixam ambos de ver as identidades comuns e o passado que partilham, tal como é a Feira de Castro.
É pois desde logo básico que há que perder o medo para falar de igual para igual, reconhecendo à partida como este é um problema historicamente produzido pelo Poder, e sobretudo desfazer essa identidade cultural homogénea como matriz nas nossas vidas. E poderão as práticas assistenciais resolver alguma coisa? Podem os remendos do Rendimento Social de Inserção, ou meras exigências das salas de aula, levar a alguma mudança? No fim de contas, a pergunta é não tanto se está a ser feito o mínimo necessário para a “integração” dos ciganos, mas qual o alcance em ser “integrados”… Responder com a autoexclusão, alimenta a culpabilização da vítima e a discriminação para todos aqueles ciganos que desejam realmente essa integração nos nossos parâmetros. Mas questionar a “integração”, deve significar pôr em causa a relação de submissão ao grupo dominante. Nesse sentido a relação que desejamos estabelecer entre “nós “ e “eles”, passa pela vontade de construir não apenas uma plataforma de convivência, mas um novo paradigma de entendimento que rompa com o modelo de funcionamento da sociedade, centralizado na concepção de uma “cidadania” ditada, emanada e vigiada pelo Estado.
Cabe perguntar, quando tudo à nossa volta se desmorona em crises sociais e pessoais, como não podemos valorizar o sentido da coesão assente na família alargada, elemento fundamental da comunidade cigana; em valorizar o sentido da afinidade que sustenta todo a identidade cigana e que dispensa líderes exteriores. Que afinidades temos nós com governantes e bancários? Que conclusões podem ser retiradas dessa capacidade de coesão e da virtude do relacionamento não delegado e das decisões tomadas a nível grupal? E o que dizer acerca do resgate do nosso tempo e da educação dos nossos filhos aos valores mercantilistas da carreira e ascensão económica e social, face aos valores do grupo e da família?
Não há porém que romantizar essa aproximação, uma vez que não faz sentido que parta de um só lado. E não são poucas as mudanças a apontar de dentro da cultura cigana, pois os seus fundamentos não são menos imunes de desigualdades e poderes coercitivos próprios, nomeadamente na relação de género. Mas nessa aproximação que não haja em cada encontro o constante desejo do similar, e de assimilar, mas da diversidade e da associação recíproca que nos permita celebrar todas as Feiras de Castro que estão para vir.
Filipe Nunes
Crónica de opinião publicada hoje, 19 de Outubro no Diário do Alentejo. Texto com base em Alentejo Cigano (AQUI).
Fotos: Primeira retirada de Castra Castrorum e restantes fotografias de Rui Pedro Tremoçeiro(constantes da Revista Alambique nº4)
revistaalambique.wordpress.com

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