www.publico.pt
Compreendo e concordo quando se diz que a melhor forma de combater a extrema-direita é dar condições de vida às pessoas. Mas já esta frase em si traz qualquer coisa que incomoda. Dar, quem dá? Uns dão, e outros são as pessoas?
Democracia plena seria uma em que todos fossemos as pessoas, e que essas frases que separam uns dos outros nunca viessem sequer à nossa cabeça. As coisas funcionam quando somos: nós. Temos um excelente exemplo disso que aconteceu agora mesmo. O famoso achatar da curva só era possível se nós fossemos um grupo, fomos. Mas estávamos todos com medo do que pudesse vir a acontecer a cada um, às nossas famílias, amigos. Por isso pergunto-me se esse “nós” conta. Num mundo ideal todos devíamos ter condições, conhecimentos, para poder governar, para participar da feitura das leis. Trabalharmos para a nossa comunidade como nas corridas de estafeta, em que um passa o testemunho ao outro. Não vai acontecer.
E haverá sempre gente de extrema-direita, haverá sempre o ódio, haverá sempre quem tenha um poster do Hitler em casa. Haverá sempre nostálgicos da ditadura. Haverá sempre nostálgicos da escravatura. O que não se pode é dar espaço a esse gente. O que não se pode é dar-lhes tempo para se organizarem, dar-lhes a oportunidade de se apresentarem com se não fossem estes que mencionei atrás. A nossa sociedade terá sempre imperfeições. Alguns de nós teremos sempre medo de alguma coisa que possa aí vir, e que venha acabar com o nosso bem estar, que venha ocupar o nosso lugar. A extrema-direita serve-se do medo para o transformar em ódio. Quando não temos um inimigo entre nós, haverá sempre quem grite que ele vem aí. Em Portugal essas pessoas ganharam força num momento em que o país estava a melhorar, em que a esperança estava a voltar. Porque são movimentos internacionais, porque o Trump abriu portas para muitas coisas impossíveis de acreditar possíveis nesta época. Porque o partido do Trump nunca quis tirar-lhe o espaço.
Não se pode dar espaço a esta gente, e em Portugal estamos a escancarar-lhes a porta.
Alguns exemplos:
Em 2011 fiz uma pesquisa grande sobre a PSP. Assisti aos primeiros testes de recrutamento para a escola da polícia, assisti a aulas, falei com estudantes da escola de polícia, falei com comandantes de várias esquadras, visitei clubes de polícias, quartos onde dormiam. Fui a manifestações da PSP em frente ao Parlamento. No meu entender esta polícia não é a mesma que conheci em 2011, passaram-se nove anos. Nove anos dá tempo para infiltrar gente com um propósito específico dentro dessa força. Quero acreditar que são ainda uma minoria, mas podem vir a ser mais, podem ter cada vez mais atitudes contra negros, contra ciganos, contra migrantes. Acontecendo isso, haverá uma reação crescente, natural e justa, contra a polícia. A extrema-direita, já com lugar institucional, vai “defender a ordem”, vai mentir, vai ganhar mais seguidores.
Não vejo tudo o que dá na televisão, só posso dar exemplos do que vi.
Conversa entre Marçal Grilo, e Nobre Guedes. Antigos ministros, um pelo PS e outro pelo CDS, em comentários à semana dos mascarados em frente à sede do SOS Racismo, e das ameaças às deputadas, e associações anti-racistas.
Marçal Grilo:
1. A extrema-direita e a extrema-esquerda precisam deste tipo de tema. Precisam disto como do pão para a boca. E depois há uns tontos que ainda não perceberam que isto é um tema dos dois, da extrema-esquerda, e da extrema-direita.
2. A extrema-direita é sempre mais agressiva do que a extrema esquerda. Penso que há aqui uma certa articulação, sobretudo com alguns movimentos alemães neo-nazis porque os alemães sabem muito disto. Têm um grande background desta coisa, sabem muito bem como é que isto se faz porque sabem muito bem como é que isto se fez.
Nobre Guedes:
1. O que está por trás disto é a dificuldade que a esquerda está a ter em lidar com o Chega.
2. O Rui Rio não tem que se meter nisto, mas já o CDS, a Iniciativa Liberal, o Chega, e quem sabe o Aliança, todos eles deviam fazer um esforço de federação para se apresentarem às autárquicas.
3. O espaço da direita tem que ser reorganizado. Estes 3 ou 4% não servem para rigorosamente nada.
Segundo Marçal Grilo há, em Portugal, grupos ligados aos neo-nazis alemães, mas nós não temos nada que ver com isso porque isso é uma coisa lá entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. É isso? E já agora a pergunta que a jornalista não fez: quem é essa extrema-esquerda? São as deputadas ameaçadas?
E Guedes diz que o que está por trás disto é a dificuldade que a esquerda está a ter em lidar com o Chega. Disto? Das ameaças?
Mas logo o seu raciocínio se torna mais explícito: O CDS está a desaparecer, e se não se juntar ao Chega, desaparece. O que o CDS e o PSD, ou pelo menos Rio estão a fazer, é pior do que os republicanos que não retiraram o apoio ao Trump, estão a dar um apoio ao Chega que o Chega nem pediu. E quanto mais apoio lhes derem, mais legitimados ficam, e menos precisarão desse apoio.
Mais um exemplo:
Poucos dias antes destes acontecimentos, ouvimos Ricciardi referindo-se a Mariana Mortágua, membro de um órgão de soberania, “essa figura o melhor que faria era reduzir-se ao silêncio”, “essa senhora devia ter vergonha, e devia era desaparecer de vez”. Consequências: zero.
Não estou a dizer que Ricciardi esteve por trás das ameaças subsequentes, mas ele para além de banqueiro é um homem do futebol, e sabe-se que há claques de futebol ligadas a grupos de extrema-direita. E por isso, quem me garante que Mortágua não está na lista das ameaçadas por causa do que ele disse? Porque é que não está Catarina Martins, por exemplo? As deputadas Beatriz Gomes Dias, e Joacine Katar Moreira são claramente ameaçadas por esses racistas pela sua cor de pele.
Quando o Presidente da República apela à calma e à sensatez, eu concordo. Sensatez é o que se pede, mas não é com tanto silêncio e passadeiras vermelhas que se é sensato.
Sem comentários:
Enviar um comentário