Não obstante os números que ainda nos envergonham e que serão sempre demais mesmo que sejam apenas um, os casos de violência doméstica têm vindo a diminuir .
A percepção do contrário deve-se a um maior estado de alerta da população em geral para estas situações e à sua divulgação e condenação em praça pública através dos media. Ambas as situações são positivas, pois demonstram o caminho feito nos últimos anos e que é de louvar.
Desde os organismos públicos/políticos até aos cidadãos anónimos, houve todo um trabalho que redundou na mudança de práticas e, sobretudo, de mentalidades. Mas nada está completamente e perenemente feito e esta é uma luta que temos que travar dia após dia, num percurso nem sempre linear.
Há, no entanto, um grupo muitíssimo vulnerável e sobretudo silencioso, amordaçado, desconhecido.
Trata-se das mulheres e crianças imigrantes, cuja história ainda se encontra por contar e sobre as quais o silêncio se impõe a dois níveis: ao nível da comunidade e ao nível das próprias vítimas.
O último relatório sobre migração e populações deslocadas do ICMPD (International Centre for Migration Policy and Development) chamava a atenção para a violência sofrida por estes dois grupos (referia também os homens, mas considerando tais números bem menos expressivos por comparação ) quer ao longo do percurso de deslocação, quer posteriormente nos países de destino.
A esmagadora maioria destas pessoas obrigadas a romper com os laços familiares ou de comunidade chega ao país de destino sem qualquer rede de apoio externo de proximidade à qual recorrer em caso de violência doméstica.
E se ela existe! Silenciosa, insidiosa, muitas vezes quase aceite como prática “normal”, vai deixando marcas no corpo e no espírito destas mulheres e crianças.
Lembro-me duma história que me marcou profundamente :
Um casal de imigrantes com o qual quis falar e que, às perguntas com as quais tentava estabelecer diálogo, respondia invariavelmente o marido, num português mesclado de francês (a origem era francófona ) que ia dando para entender.
A dada altura, dirijo-me diretamente à mulher, uma jovem vestida à ocidental, podendo passar por qualquer nacionalidade, pois que nada a diferenciava.
Talvez quando o “bendito” Serviço de Estrangeiros e Asilo veja finalmente a luz do dia se possa, em conjunto com outros organismos, proceder a um estudo sério das condições destas mulheres aprisionadas, sem voz e das quais não rezam as estatísticas
“Ela não fala português”, esclareceu-me ele. Tentei falar-lhe em francês, inglês… em vão.
“Ela só fala a nossa língua” – concluiu o marido.
Achei estranho, dado o número de anos que viviam em Portugal, e perguntei-lhe (ao marido, naturalmente ) como é que ela fazia para ir à compras. Respondeu-me que era ele quem as fazia. Voltei à carga : “Está bem, mas se precisar de telefonar a um médico, pedir socorro…” Afinal, ele trabalhava fora e ela passava o dia inteiro em casa sozinha, pois os três filhos saíam para a escola de manhã e era o pai quem os trazia ao fim do dia. A resposta dele gelou-me não tanto pelo conteúdo, mas pela mentalidade e pela normalidade como me foi dada : “Tem um telemóvel e liga-me. Não precisa de falar a mais ninguém”. Olhei a “miúda“ ( não tinha ainda 30 anos ), que sorria, e pensei que há burkas e prisões bem mais fortes e limitadoras que aquelas que vemos.
Este é um caso, mas há centenas deles a acontecer ao nosso redor todos os dias.
Talvez quando o “bendito” Serviço de Estrangeiros e Asilo veja finalmente a luz do dia se possa, em conjunto com outros organismos, proceder a um estudo sério das condições destas mulheres aprisionadas, sem voz e das quais não rezam as estatísticas.
Quanto às crianças, o drama é igualmente preocupante e também ele não quantificado.
Existem números sobre o abandono escolar nas populações imigrantes?
Existem números sobre maltratos sobre menores nestas comunidades?
E em relação àqueles que, sendo menores, não têm sequer uma família ou um adulto que os tutele, e que por eles se responsabilize, em que condições se encontram? Que perspetivas e projetos de vida têm? Quem os apoia? A quem podem recorrer?
Venho defendendo a existência dum Provedor da Criança há anos. Se há um provedor do Consumidor, do Telespectador e de tudo, não entendo bem como se pode dizer que, em relação à Criança, pode perfeitamente ser inserido no espectro das já vastas competências do Provedor da Justiça! Como se ser criança fosse uma questão menor!
A existência dum Provedor para a Criança no quadro organizador e supervisor das CPCJ, daria, não apenas uma maior importância a estas comissões, como lhes traria um fôlego diferente.
Repare-se que não falo já de Provedor da Criança Migrante (que seria o ideal, mas o ótimo é inimigo do bom, como tal…), mas sim do Provedor da Criança, incluindo naturalmente todas elas.
Estes dois nichos populacionais estão ainda na escuridão do silêncio e bem sabemos que o silêncio faz aumentar a violência de proximidade. O silêncio mata.
Está na hora de começarmos a quebrá-lo como fizemos para a generalidade das vitimas de violência doméstica.
Os textos de opinião refletem apenas a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Sem comentários:
Enviar um comentário