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segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

JOSÉ GOULÃO - A armadilha do desenvolvimento sustentado

 

A localidade de Bento Rodrigues foi arrasada pela lama tóxica da Samarco Mineração SA, em 5 de Novembro de 2015. A Samarco é uma subsidiária da anglo-australiana BHP Hilton e da brasileira Vale, respectivamente a primeira e a quinta maiores mineradoras mundiais.
A localidade de Bento Rodrigues foi arrasada pela lama tóxica da Samarco Mineração SA, em 5 de Novembro de 2015. 
A Samarco é uma subsidiária da anglo-australiana BHP Hilton e da brasileira Vale, respectivamente a primeira e a quinta maiores mineradoras mundiais.Créditos


A cultura do lucro máximo e sem restrições continua 

a aprimorar-se. 

O discurso do desenvolvimento sustentado é um 

dos seus principais suportes propagandísticos.



E de repente tudo se tornou sustentável. 

Dos mais solenes discursos dos poderes à publicidade mais assanhada instando aos mais desenfreado consumismo, a «sustentabilidade» tornou-se um mandamento inapelável; ignorando nós se muitos dos doutrinadores saberão do que estão a falar. 

Em prol da sustentabilidade faz-se uma mixórdia de conceitos onde cabem a ecologia, o combate às mudanças climáticas, a pegada de carbono e respectiva neutralização, o efeito de estufa, o degelo, as energias renováveis, o desenvolvimento sustentável; num ápice, as coisas que consumimos no dia-a-dia tornaram-se recicláveis, compostáveis, biodegradáveis, obrigatoriamente biológicas. Circula muito e constante ruído para nos obrigar a assimilar coisas de que a generalidade das pessoas não fazem ideia. Ora nada disto é inocente, conjuntural e fortuito.

Embalados por tão poderosa como compulsória campanha, caminhamos assim, promete-se, para o melhor dos mundos. 

E, milagre dos milagres, nada mudou para que isso acontecesse, a não ser «a consciência» do sistema. O capitalismo, o monstro cujas entranhas geraram a crise ambiental em que grande parte do planeta está mergulhado, promete agora limpar a sujeira que provocou – gerando para isso novos negócios. E já sabe como vai fazê-lo: através do desenvolvimento sustentado. Isto é, o capitalismo, na sua versão mais agressiva, o neoliberalismo, tornou-se «verde», ecologicamente correcto.

Alcançou-se assim a quadratura do círculo. 

E, a par da crise ambiental, estamos agora mergulhados também na mais insustentável das mentiras.

A mentir desde 1987

Foi em 1987 que, através do chamado «Relatório Brundtland», a Comissão Mundial do Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU cunhou o conceito de desenvolvimento sustentado ou sustentável. 

O que corresponderia a «satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras em suprir as suas próprias necessidades». Para isso funcionar haveria, pois, que «satisfazer as necessidades do presente», meta da qual nos vamos afastando cada vez mais; e haveria também, nos termos do documento, que «criar e aplicar novas normas para o comportamento pessoal e recíproco ao nível do indivíduo em todos os países, a fim de alcançar o desenvolvimento sustentável». O método a seguir: o ardil da propaganda.

A partir de então, a sustentabilidade transformou-se num chavão, numa muleta semântica para garantir o respeito ambiental sempre que seja necessário vender uma intenção, promessa ou decisão do sistema dominante. Na década de noventa do século passado, segundo técnicos que trabalharam na instituição, o Banco Mundial inseria pelo menos uma vez por página dos seus documentos e relatórios as palavras «sustentável» e «sustentabilidade». 

Não é necessário recordar o papel do Banco Mundial como pilar do autoritarismo neoliberal e da asfixia globalista. Mas, para que conste, a sua conduta ecologicamente correcta dir-se-á irrepreensível.

Digamos que o conteúdo do citado «Relatório Brundtland» foi o primeiro ataque em forma do capitalismo nos terrenos da ecologia e das preocupações ambientais e pacifistas que emergiram com pujança na década de oitenta, precisamente como oposição ao aumento do poder predador do sistema imperial dominante. Na Alemanha Federal, o Partido Verde conseguiu afirmar-se e quebrar o monopólio bipartidário; é importante não confundi-lo, porém, com o actual Partido Verde alemão e respectivas sequelas transnacionais, convertidos ao colaboracionismo dentro do sistema neoliberal, de que é exemplo maior o grupo Verde no Parlamento Europeu.

A conversão, aliás, foi bastante rápida. Durante a década de noventa, com o conceito de «sustentabilidade» afirmando-se de vento em popa, os Verdes alemães chegaram ao governo e então foi possível observar como assumiram, sem pestanejar, o militarismo atlantista na guerra contra a Jugoslávia e o bombardeamento criminoso sobre Belgrado, em 1999. Joscka Fischer, o carismático chefe dos Verdes, era então o ministro alemão dos Negócios Estrangeiros, portanto mergulhado até aos cabelos nesta guerra de facto nada sustentável.

Dez a 15 anos antes, porém, o cenário era ainda bem diferente. Os Verdes alemães engrossaram o grandioso movimento de massas em que as preocupações ambientais se manifestavam juntamente com a oposição ao militarismo e à instalação no continente europeu de uma nova geração de armas nucleares norte-americanas. Foram os tempos das gigantescas Marchas da Paz em toda a Europa, em que as preocupações com a sobrevivência do planeta abrangiam, de facto, todas as insustentáveis formas de destruição, desde a degradação ambiental, a rapina de recursos naturais à guerra. Então, o neoliberalismo em vez de combater frontalmente esse movimento dividiu-o e assimilou parte, chamando a si a ecologia. 

E assim nasceu o desenvolvimento sustentável.

Um silêncio insustentável

Hoje, quando tudo se tornou sustentável, a campanha pretensamente em defesa do planeta tornou-se bastante mais selectiva.

E da mesma maneira que os partidos oficiais ecologistas foram convertidos à sustentabilidade regimental, deste conceito desapareceram actividades como a guerra, a rapina de recursos naturais, a produção de lixeiras consumistas e a intoxicante agricultura transnacional predadora, entre muitas outras.

Essas práticas sumiram-se da campanha de propaganda em torno da sustentabilidade por serem insustentáveis para o planeta e a esmagadora maioria dos seus habitantes?

Nada disso. Apenas porque o sistema neoliberal e respectivas câmaras de eco fabricaram os seus próprios e inatacáveis modelos de sustentabilidade e de agressão ambiental, excluindo deles todas as acções que devem ignorar-se sempre que se fale da destruição do planeta e, por isso, não cabem nos soundbites políticos e publicitários. 

Ou seja, os predadores do planeta, que são os mesmos que se apropriaram da sua pretensa salvação, reconhecem a crise ambiental mas tentam esconder que é um resultado inevitável do modo capitalista de produção e consumo. Ora, como todos sabemos, o capitalismo nasceu e cresceu com base na extorsão dos recursos da Terra.

Histórias da Carochinha

O resto da estratégia de construção do mito da sustentabilidade é procurado através de lavagens cerebrais, entretendo os cidadãos com infindáveis histórias da Carochinha elaboradas a partir das inconsequentes cimeiras climáticas da ONU, de agendas e recomendações produzidas, com ou sem chancela das Nações Unidas, pelos poderes globalistas responsáveis pela tragédia ambiental.

Se o leitor visitar websites de alguns dos principais predadores do planeta, com actividades que vão desde a exploração de combustíveis fósseis, as indústrias mineiras até à produção de armamentos, todos eles prometem ser «neutros em carbono» até 2050, enquanto garantem apoiar acções sustentáveis através de mil e uma medidas. Entretanto, continuam a fazer o mesmo de sempre, a emitir gases com efeito de estufa, a encher o mundo de cidadãos sem direitos nem acesso a bens e recursos essenciais, a arrasar meio planeta através de conflitos de índole colonial.

A BP, por exemplo, foi responsável pelo gigantesco desastre ambiental decorrente da explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, abstendo-se, entretanto, de completar o trabalho de limpeza das áreas atingidas. Hoje «conduz carbono neutro», isto é, garante a todos os consumidores que se abasteçam nos seus postos de combustíveis que estão a ter comportamento «sustentável» porque os efeitos poluentes da gasolina ou gasóleo que utilizarem são «compensados» pelo patrocínio de acções como a compra de créditos de carbono «gerados a partir de projectos globais», ou a plantação de árvores algures na Zâmbia, México ou Índia – poupando-se assim «dois milhões de toneladas de carbono por ano». Entretanto, o sistema dominante e os seus subprodutos arrasam milhões de hectares de florestas em todo o mundo, da Amazónia à Europa Ocidental, passando pela Califórnia.

Ao mesmo tempo, a BP e as suas concorrentes aceleram a exploração e pesquisa de combustíveis fósseis em todo o mundo – e certamente não será para que as jazidas fiquem de pousio. Serão exploradas até ao último mililitro, incluindo os provenientes de fractura hidráulica (fracking), actividade ainda mais insustentável para as terras e as águas atingidas.

Por isso, e apesar de todos os avanços em energias renováveis, os combustíveis fósseis são ainda responsáveis por 80% do fluxo energético mundial.

Esta situação obriga a reflectir sobre o significado dos veículos eléctricos na propaganda da sustentabilidade. Embora não poluam com emissões de carbono, essas viaturas consomem energia resultante de combustíveis fósseis, sem contar com a exploração não sustentada de recursos naturais, principalmente o lítio, que são componentes essenciais das baterias. Portando, a montante das emissões «zero carbono» da chamada «mobilidade eléctrica» existe o lançamento de gases com efeito de estufa na atmosfera praticamente ao ritmo de sempre; além de actividades mineiras não sustentáveis.

Quando se fala na propaganda sobre as pretensas actividades sustentáveis dos produtores de combustíveis podem igualmente abordar-se os comportamentos das transnacionais dos refrigerantes e do sector agroalimentar. Dizendo-se muito empenhadas na sustentabilidade – a Nestlé promete borras de café transformadas em grãos de arroz – estão envolvidas, por exemplo, na exploração desenfreada e a preços irrisórios dos recursos aquíferos quando as carências de água atingem pelo menos mil milhões de pessoas no mundo. E a privatização da água apenas agravará esse problema, aprofundado ainda pelo aquecimento global.

Quando ao agroalimentar, é conhecida a actividade de grandes grupos como a Monsanto que, desde o envenenamento das terras com pesticidas à manipulação genética, multiplicam actividades nocivas para os seres humanos e o ambiente. É difícil acreditar que a sustentabilidade passe por aqui.

Insustentável

Embora se fale até à exaustão em desenvolvimento sustentável, a generalidade das pessoas desconhece do que se trata – e também não são muitos os esforços para informá-las. Desenvolvimento sustentado seria a capacidade de travar ou compensar as actividades que provocam danos irreversíveis ao planeta através da ruptura de ecossistemas, de modo a que houvesse soma zero entre prejuízos e vantagens. Um equilíbrio ideal, sempre precário e delicado na sua dinâmica, perfeitamente incompatível com o modo como o mundo funciona sob o poder neoliberal de tendência global.

A imposição desse poder através dos padrões industrializados e consumistas decorrentes da ideologia de livre mercado como modelo civilizacional único torna impossível que o desenvolvimento sustentado seja alcançado por este caminho. Em Março de 2012, na chamada «Conferência do Rio + 20», o diplomata chinês Sha Zukang, na altura secretário-geral adjunto das Nações Unidas responsável pelo Departamento dos Assuntos Económicos e Sociais, foi muito claro sobre as consequências dessa forma de globalismo: 

«É uma questão de sobrevivência da humanidade: se todos os países emergentes como Brasil, China ou Índia, por exemplo, decidirem copiar o estilo de vida dos países desenvolvidos serão necessários cinco planetas Terra para atender ao aumento da procura».

Está à vista de todos que a política de desenvolvimento sustentado apregoada pelos grandes poderes ocidentais e as instâncias do globalismo neoliberal como o FMI, o Banco Mundial e o Fórum Económico Mundial, assenta numa mentalidade colonial.

Não é segredo que as grandes potências, no actual modelo económico, não conseguem sobreviver com os próprios recursos. 

Essa é uma das origens essenciais dos comportamentos dominantes para impor o modelo neoliberal global: a guerra, a corrida às matérias-primas e a eliminação de fronteiras e soberanias nacionais através da dissolução do conceito de Estado.

E nenhum destes caminhos é sustentável do ponto de vista humano e ambiental.

A guerra é insustentável por definição. 

Por isso não surge nas contas de deve e haver que acompanham a doutrina ecológica do capitalismo «verde». As guerras sem fim que hoje constituem a dominante comportamental do neoliberalismo de tendência global arrasam povos, países, territórios e também qualquer doutrina de sustentabilidade. Os efeitos das guerras não são compensáveis por «créditos de carbono», plantações de árvores ou substituição de automóveis a diesel por eléctricos. Estas medidas, tidas como grandes passos no caminho do desenvolvimento sustentável, não passarão de panaceias irrisórias – mas bastante lucrativas - enquanto se mantiver o culto da guerra planetária: assumida ou alimentada por uma tensão permanente geradora de uma infindável – e insustentável – corrida aos armamentos.

Não poderá existir qualquer teoria ecológica séria e profícua que não equacione com rigor as componentes belicista e militarista, doutrinariamente dominantes. No entanto, a NATO diz-se comprometida com exercícios militares onde a «sustentabilidade» é uma preocupação; e os gigantes da produção e comércio de armamentos cada vez mais sofisticados prometem «carbono neutro» até 2050 nas suas actividades. A mentira delirante não tem limites.

Tão insustentável como a guerra é a corrida desenfreada aos recursos naturais do planeta, que se desenvolve em muitas pistas – algumas delas muito bem guardadas através da implantação de conflitos armados.

Uma delas é a actividade mineira transnacional, que não conhece direitos humanos e ambientais. Um território abandonado por uma transnacional depois da exploração de uma ou várias minas é uma chaga aberta na crosta do planeta. Os efeitos nocivos de 30 ou 40 anos de intervenção intensiva, entre desperdícios, venenos, desertificação e alterações geológicas, demoram centenas, milhares de anos a desaparecer. São feridas que ficam e que teriam de ser inseridas nas contas de sustentabilidade de uma teoria ecológica séria.

Ora isso não acontece. As transnacionais mineiras também prometem «carbono neutro» à luz dos Acordos de Paris, chegam a instalar moinhos eólicos e painéis solares nas áreas de intervenção para simular que as suas actividades de extorsão são apoiadas por energias limpas e renováveis, mas nada disso disfarça, na prática, a insustentabilidade dos seus comportamentos. Os fantasiosos resultados da propaganda, contudo, tornam-se mais reais que os factos perante a opinião pública, e assim se vai disseminando, como virtuosa, uma ideia de ecologia absolutamente insustentável.

Estamos perante uma patranha com dimensões planetárias. Enquanto isso, as calotes polares vão-se derretendo, os mares sobem, a água continua a esgotar-se, as zonas desérticas avançam, as tempestades meteorológicas adquirem características e periodicidades cada vez mais agravadas; entretanto, no sector colonialista do mundo os cidadãos estão entretidos com bem-intencionados exercícios ambientalistas, embalados pela conversa fiada do discurso sobre o desenvolvimento sustentado, enquanto o planeta continua a caminhar para o abismo.

A pandemia de COVID-19 está a proporcionar um processo de concentração de riqueza nunca visto em apenas meia dúzia de mãos; as instâncias neoliberais preparam o «grande reinício» do sistema capitalista, apresentando a questão ambiental como um dos pilares; a guerra e a delapidação dos recursos do planeta continuam imparáveis; a educação para o consumismo, que transforma a Terra numa lixeira, é uma das mais poderosas vertentes coloniais.

A cultura do lucro máximo e sem restrições continua a aprimorar-se. O discurso do desenvolvimento sustentado é um dos seus principais suportes propagandísticos.

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