Mais de meio século depois de sua morte, uma artista mexicana permanece em evidência como um mito e uma das maiores personalidades da América Latina de todos os tempos. Precoce, inteligente e libertária, fruto de um casamento infeliz, afetada por poliomielite com apenas seis anos, vítima de um acidente de bonde que a impossibilitou de ter filhos, fascinada pelas cores fortes, características de seu país, muito alegre e sensível, a artista e militante política de esquerda que virou sinónimo de superação e que detestava o rótulo de surrealista produziria em pouco tempo obras de arte, na maioria autorretratos, que encantaram e ainda encantam meio mundo. Mais de 100 anos depois de seu nascimento, livros inéditos e relançamentos resgatam a vida e a obra genial produzida por Frida Kahlo (1907-1954).
Chegaram às livrarias, entre vários outros, os inéditos "Diego e Frida" (Editora Record), biografia escrita pelo francês Jean-Marie Gustave Le Clézio, Prémio Nobel de Literatura em 2008; "Frida Kahlo, Suas Fotos" (Cosac Naify), organizado pelo fotógrafo mexicano Pablo Ortiz Monasterio; "Frida: A biografia" (Editora Biblioteca Azul), da norte-americana Hayden Herrera, que quando foi publicada nos Estados Unidos e na Europa em 1983 provocou um grande interesse pela vida e obra da artista; "Frida Kahlo" (Editora Objetiva), estudo biográfico da argentina Christina Burros (que parte de 120 fotografias, pinturas, desenhos e cartas mais íntimas); e o infanto-juvenil "Frida Kahlo" (Callis Editora), da espanhola Carmen Leñero, que revela em linguagem poética as belas obras e o encanto pessoal da artista.
Além dos inéditos, há os relançamentos, entre eles as edições nacionais de "Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo" (Editora José Olympio), compilação de cartas para namorados, amigos e familiares feita por Martha Zamora, conhecida biógrafa de Frida, e "O Diário de Frida Kahlo", também da José Olympio; "Frida Kahlo" (Editora Ática), biografia ilustrada do norte-americano Jill Laidlaw; e o infanto-juvenil "Frida" (Cosac Naify), de Jonah Winter e Ana Juan, sobre sua infância e adolescência.
"Ela se tornou primeiro uma lenda, depois um mito e agora uma personalidade venerada", regista Le Clézio em "Diego e Frida" (Editora Record). Na biografia, Le Clézio conta a história de Frida precedida pela de seu amado Diego Rivera (1886-1957), outro nome central da arte da América Latina. Frida conhece Diego em m 1928, quando ela entrou para o Partido Comunista do México. Os dois se casam oficialmente no ano seguinte e Diego provoca grande transformação na arte de Frida, que adota propositalmente um estilo na época reconhecido como ingénuo. Mas é um “falso naif”, como define Le Clézio, no qual a artista procura afirmar a identidade nacional de seu país – por isso adotava com muita frequência temas do folclore e da arte popular do México.
Experiência de dor e solidão
"É a história de um casal fora do comum desde o primeiro encontro", explica o autor. "O passado sombrio de Diego, a experiência de dor e solidão de Frida, o envolvimento deles com a revolução, a relação de ambos com Trotski e Breton, enfim, é a história de um casal fora do comum na renovação do mundo da arte", completa. No prólogo à biografia, Le Clézio destaca que a história de Diego e Frida – "essa história de amor inseparável da fé na revolução" – ainda hoje vive porque ela vem se mesclando à luz particular do México.
"Uma história de amor que se mescla ao rumor da vida cotidiana, ao cheiro das ruas e dos mercados, à beleza das crianças nas casas empoeiradas, a essa espécie de langor nostálgico que se prolonga no crepúsculo sobre os antigos monumentos e sobre as mais velhas árvores do mundo", aponta, destacando que as imagens que nos deixaram Diego e, especialmente, Frida, continuam fortes e necessárias. "Na história do México, Diego e Frida continuam brilhando como brasas vivas, e sua incandescência são as joias puras das crianças carentes", conclui Le Clézio.
Os biógrafos e os pesquisadores da História da Arte são unânimes: talvez nenhum outro artista plástico tenha feito uma exposição de seu universo interior de forma tão arrebatadora quanto a mexicana Frida Kahlo. Usando cores fortes e carga dramática intensa, ela contou com sua pintura - sobretudo os autorretratos - as dores e os amores de sua vida, e assim se tornou uma das artistas mais populares de todo o mundo.
Valor e influência
Sua história de vida é dramática. Com sete anos contraiu poliomielite e ficou acamada por nove meses, de onde saiu com a perna direita atrofiada e manca. Aos 18, teve um terrível acidente de bonde, mas por milagre sobreviveu para fazer arte, ainda que convivendo com dores constantes enquanto viveu. Para críticos e historiadores da arte, suas pinturas estão entre as mais belas e originais jamais criadas - são um monumento ao seu espírito indomável e à sua força de vontade.
"Ela é maravilhosa. Conseguiu o que todo artista deve fazer, que é expressar a sua própria dor para expressar a dor do mundo. Frida está para lá de atual", aponta Yara Tupinambá, fazendo coro unânime entre outras artistas plásticas de Belo Horizonte ouvidas pela reportagem. Além de Yara, três outras artistas e autoridades no assunto - Mônica Sartori, Thais Helt e Maria Helena Andrés - concordam quanto à genialidade de Frida, quanto a sua importância histórica e sua atualidade como nome da arte moderna e contemporânea.
“Frida produziu uma obra muito complexa e carregada, como toda grande obra de arte, que por sua vez é a tradução de uma intensa experiência de vida”, destaca Thais Helt. “A arte que ela produziu tem efeito trágico e, ao longo do tempo, tem ficado mais conhecida e valorizada. A arte de Frida Kahlo está muito presente em nossa época e atualíssima”.
Mônica Sartori prefere definir a artista pela imagem do coração, uma das metáforas preferidas da própria Frida.
“Ela era um coração aberto para a vida, uma mulher de imensa força e muito digna que conseguiu, através da obra de arte, transpor todas as dificuldades e iluminar o amor e a poesia. Frida é uma grande artista e uma grande mulher que será eternamente contemporânea”.
"Depois dela vieram outros nomes do Brasil e da América Latina que avançaram principalmente na discussão do suporte da arte, como os brasileiros Lygia Clark e Hélio Oiticica. Mas Frida produziu uma pintura muito forte, figurativa, que mantém seu valor como ícone do presente", destaca Maria Helena Andrés.
Popularidade e atualidade
Uma prova da popularidade e atualidade de Frida são as exposições permanentes em museus do mundo inteiro, além das centenas de livros, reverências na cultura pop por estrelas de primeira grandeza, de Andy Warhol e Litchenstein a Madonna e Pedro Almodóvar - e até um filme "cult" que foi campeão de bilheterias: "Frida", de 2002, dirigido pela norte-americana Julie Taymor, com Salma Hayek vivendo Frida e Alfred Molina como Diego Rivera. Curioso é que a brasileira Gloria Pires foi o primeiro nome contratado pela produção.
Na época morando nos Estados Unidos, Gloria Pires foi trocada por Salma Hayek no último momento.
"Nos Estados Unidos, tudo funciona como a música de Caetano, onde o branco é branco, o preto é preto e a mulata não é a tal'", revela Gloria na recém-lançada biografia "40 Anos de Gloria" (Geração Editorial).
"Eles levam a sério a questão racial e, como não consideram o Brasil um país latino, acharam que seria indelicado, porque Frida é um mito mexicano. Interpretá-la aqui no Brasil era uma coisa, nos Estados Unidos, onde a cultura latina é bem corporativa, seria outra. Então, o projeto foi abortado", lamenta a atriz, no capítulo intitulado "Um Veneno Nada Suave".
A popularidade de Frida começou a crescer quando, em 1929, se casou com Diego Rivera - que se dedicou a grandes pinturas em murais e tem aumentado desde a sua morte em 13 de julho de 1954. Foi em 1928, quando Frida entra no Partido Comunista mexicano onde ela conheceu Rivera.
Sob a influência da obra do marido, adotou o emprego de zonas de cor amplas e simples num estilo propositadamente reconhecido como ingênuo. Procurou, na arte, afirmar a identidade nacional mexicana, por isso adotava com frequência temas do folclore e da arte popular.
A vida cotidiana de Frida está em destaque em "Frida Kahlo, Suas Fotos" (Cosac Naify), que traz a público o acervo de fotografias e objetos que por sua vontade ficaram trancados no banheiro da Casa Azul, onde ela morou muitos anos com Rivera. Depois de 50 anos, o arquivo foi liberado pelos herdeiros e cerca de 400 fotos desconhecidas do público foram incluídas na publicação.
Pintura de imagens fortes
Como todo álbum pessoal de fotografias pode revelar muito sobre uma pessoa, no caso de Frida descobrem-se desde o olhar terno da juventude até o tipo de pose e os interesses da fase adulta. São imagens fortes, pinturas carregadas daquela espécie de "punctum" que o Roland Barthes de "A Câmara Clara" identificava somente nas melhores fotos. Com Frida, as imagens fazem ainda mais: mostram influências, enquadramentos, personagens e toda uma vida fundamental para a construção de uma obra.
A publicação da Cosac Naify chega às livrarias simultaneamente no Brasil e no México, terra-natal da artista, além de França, Espanha, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e o resto da América Latina. No livro, há várias fotos que Frida usou de modelo para pintar seus autorretratos, além de suas fotografias do álbum de família feitas pelo pai, Guillermo Kahlo, que era fotógrafo profissional e havia trocado sua terra natal, a Alemanha, pelo México, em 1891, e imagens de grandes nomes da fotografia que registaram retratos da artista, entre eles Man Ray, Brassaï, Martin Munkacsi, Edward Weston, Imogen Cunninghan, Gisèle Freund, Tina Modotti, Álvarez Bravo, Nickolas Muray, Hugo Brehme e Pierre Verger.
Já em "Diego e Frida" (Record), a prosa lúcida e envolvente de Le Clézio percorre essa estranha história de amor que se constitui e é expressa pela pintura. Frida morreu jovem, aos 46 anos, em 1954. Seu viúvo, Diego Rivera, porém, deixou instruções para que o acervo do casal não fosse aberto antes de 15 anos após sua morte.
Durante 50 anos, os documentos do casal estiveram trancafiados num banheiro da Casa Azul, onde Frida morou e trabalhou na capital mexicana hoje um prédio que serve de sede para o Museu Frida Kahlo. No acervo da Casa Azul havia mais de seis mil imagens fotográficas, incluindo as que foram feitas por Diego Rivera, por parentes, por amigos e até algumas tiradas pela própria Frida.
Numa das passagens mais poéticas do texto, Le Clézio descreve em poucas palavras o fim da parceria artística e amorosa do casal quando Frida morre de repente, deixando pela casa e por todos os lugares a lembrança de sua beleza inquieta nos espelhos vazios. Mas Le Clézio não endossa a tese de outros biógrafos e pesquisadores, que com base na autópsia de Frida acreditam que ela possa ter sido envenenada por uma das amantes de seu marido, que tinham raiva dela por ela ser a esposa.
Mas Le Clézio destaca que Diego Rivera descreveu em sua autobiografia que o dia da morte de Frida foi o mais trágico de sua vida.
"Os últimos momentos de Diego junto de Frida são ao mesmo tempo terríveis e estranhos", completa o biógrafo, para comoção do leitor que acompanhou a história página a página. "A multidão acompanha o caixão ao longo da avenida. No momento da cremação, as chamas cercaram o rosto de Frida, desenhando grandes girassóis como se ela quisesse pintar o último retrato".
por José António Orlando.
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