por Guillaume Suing [*]
Entre 1915 e 1917, o biólogo autodidata Felix D'Herelle [1] descobriu uma nova forma de combate a epidemias, a "fagoterapia", a trabalhar para o Instituto Pasteur. Foi uma verdadeira revolução médica, uma promessa considerável para a investigação: D'Herelle utiliza contra estirpes de bactérias infecciosas variedades particulares de vírus chamados bacteriófagos, variedades seleccionadas a partir de uma rica biodiversidade natural ainda mal descoberta. Na natureza, mesmo que o fenómeno seja discreto à nossa escala, metade das bactérias do planeta é morta por estes bacteriófagos nas águas estagnadas ou residuais.
De modo geral, os vírus são sem dúvida as formas de vida mais primitivas e as mais minúsculas (uma vez que escapam ao alcance dos microscópios ópticos clássicos), muito mais pequenas do que as bactérias, elas próprias muito menores do que as chamadas células "eucariótas" (que possuem um núcleo) das quais somos compostos.
Os vírus são tão pequenos e primitivos (apenas alguns genes envoltos numa pequena casca de proteína inerte, ela própria coberta com moléculas que aderem às células-alvo) que muitos biólogos ainda as afastam do "dicionário" dos seres vivos, acreditando poder decidir à priori, por critérios arbitrários, a lista precisa. Os séculos XX e XXI já o confirmaram abundantemente: a biodiversidade dos vírus é imensa. De tal modo imensa que grande parte deles permanecem desconhecidos para nós porque, em vez de infectarem as nossas células, infectam... bactérias! Foi isolando múltiplas estirpes de tais bacteriófagos que Felix D'Herelle se tornou conhecido, desde o seu primeiro êxito contra a bactéria responsável pela disenteria.
Evidentemente, se é preciso isolar, para cada estirpe de bactéria infecciosa, uma estirpe específica de bacteriófago dirigido contra ela, o trabalho dos biólogos prometia ser colossal e altamente dispendioso (em dinheiro mas também em energia e trabalho colectivo gasto)... e quando, em 1928, Alexander Flemming descobre uma substância, a penicilina, capaz de destruir um espectro muito vasto de bactérias com um custo mais baixo e a possibilidade de um processo industrial relativamente simples, a escolha dos investidores ocidentais não se fez esperar. Era preciso evidentemente avançar com tudo o que podiam neste novo mercado sumarento dos antibióticos e remeter rapidamente para o museu os métodos arcaicos do Doutor D'Herelle.
Não se trata aqui de desqualificar os imensos avanços ligados aos antibióticos, evidentemente, mas de fazer um balanço numa altura em que os investigadores médicos estão encostados à parede, uma vez que a maior parte das bactérias infecciosas adquiriu, sobretudo pela utilização mais do que maciça de antibióticos na criação intensiva, resistências múltiplas e duradouras à maior parte dos antibióticos actualmente conhecidos.
Desde há alguns anos, numerosos investigadores ocidentais e numerosos doentes ocidentais insensíveis aos antibióticos e correndo um grande perigo, viajam a Tíflis, Geórgia, para beneficiarem da fagoterapia... Tíflis?
Nos anos trinta, posto em quarentena no Ocidente, onde se instalava o reino dos antibióticos, D'Herelle foi acolhido na Geórgia com o seu aluno e colega soviético George Eliava, onde a sua fama foi indiscutível até ao final do século XX. Ele foi celebrado com os mais famosos (Oparin, Vernadski, Williams, Pavlov, Korolev, etc) como herói da ciência soviética e, tal como muitos destes sábios de renome que receberam medalhas da URSS, não era comunista o que merece ser assinalado nestes tempos de confusão ideológica em que a ciência ocidental se apresenta como a mais "pragmática"... mas que frequentemente funciona com anátemas, lutas de interesses e guerras políticas entre laboratórios para obter financiamentos.
"Na URSS, creio que a aplicação de maneira geral neste país do método dos tratamentos das doenças infecciosas pelo bacteriófago vai estar na origem de uma verdadeira revolução terapêutica", havia declarado D'Herelle com esperança. E se o homem hoje está caído no esquecimento entre nós, o centro Eliava de Tíflis passava a concentrar as esperanças de todos os infectologistas do planeta... Durante décadas, pacientemente, o poder soviético continuou a inventariar, patentear e reunir neste centro (e em outros no território soviético) todas as infecções bacterianas conhecidas ou novas que se manifestavam desde a Ucrânia até Vladivostoque, correlacionadas com uma estirpe de bacteriófago específicos isolados e concebidos como tratamento antibacteriano.
No fundo desta história há uma "necessidade" dialéctica envolvendo o "acaso" da descoberta do primeiro bacteriófago, assim como a da penicilina a cair sobre um vaso de Petri em que Fleming cultivava bactérias foi a centelha do imenso mercado dos antibióticos (e dos lobbies e monopólios farmacêuticos assassinos), até os nossos dias. Mas esta necessidade, curiosamente, lança luz sobre uma abordagem fundamentalmente diferente da investigação científica (do ponto de vista do que se investia maciçamente com dinheiros públicos) entre o Oriente e o Ocidente.
De um lado, no Ocidente, o que conta é sobretudo o curto prazo, o rentável, o tecnicamente reprodutível e o processo de produção mais simples e mais padronizado possível. É este o caso da indústria farmacêutica, voltada essencialmente para a produção de moléculas como os antibióticos, preferindo para caricaturar a química (de facto, a bioquímica) à biologia, o estável ao instável, a fixidês à evolução, o reducionismo ao holismo, o unidireccional à interacção e ao sistémico.
Do outro lado, a Leste, investiu-se mais na biologia, biodiversidade, no vivo e nas propriedades já estabelecidas ao longo de milhões de anos de evolução, ao invés do efeito específico que tem sido absolutamente (e em vão) controlado e fixado. Em suma, uma abordagem dialéctica e dinâmica é tipicamente encontrada no Leste, mesmo entre os sábios não comunistas, enquanto no Ocidente, pelo contrário, encontra-se nas correntes dominantes um espírito reducionista, binário, em suma, mecanicista (a do "tudo genético" foi o mais sintomática até há pouco tempo).
Pode-se encontrar na agronomia um duplo exemplo desta contradição epistemológica. No ocidente, em meados do século XX, voltou-se tudo para a química dos adubos e dos pesticidas (para a agricultura, utilizáveis quaisquer que fossem o solo e o clima, no momento que se desenvolveu suficientemente a monocultura intensiva) quando, no Leste [antes de Kruchov], em 1948 lançava-se o mais vasto plano de agroflorestação e de policultura da história, na base de um conhecimento agrobiológico do solo e das suas propriedades vitais, tudo sem pesticidas (conhecidos por destruírem cegamente toda vida que anima o solo). Os "auxiliares de cultura" (os insectos capazes de lutar contra parasitas que afectam as culturas, como prescreve por exemplo a permacultura) eram ali claramente preferidos às moléculas inertes que destroem não selectivamente toda forma de vida do solo). Do mesmo modo, o imenso banco soviético de sementes vegetais endémicas do mundo inteiro, criado pelo geneticista Vavilov e seus colaboradores antes da guerra, favorecia uma agrobiologia humilde e baseada no que existe, nas potencialidades do próprio mundo vivo, resultado de uma paciente e engenhosa evolução.
Por outro lado, a pecuária no Ocidente desenvolveu-se sobre a indústria química (hormonas e antibióticos) com as consequências que hoje se conhecem (a maior parte das resistências aos antibióticos resulta nomeadamente da sua utilização maciça na pecuária intensiva por toda a parte do mundo). Visivelmente no Leste, pelo menos na medicina, apoiou-se sobre a imensa mas restritiva biodiversidade dos bacteriófagos, ao invés dos antibióticos, embora estes últimos naturalmente também tenham sido produzidos e prescritos.
A agroecologia soviética pré-Khruchoviana ou (actualmente) a cubana assenta numa grande variedade de sementes endémicas (que o catálogo standard da Bayer Monsanto actualmente proscreve em toda a parte do mundo), possivelmente "reeducadas" para uma ou outra condição ambiental local, bem como auxiliares de culturas mais eficientes por serem o produto de uma evolução milenar e não de uns poucos testes realizados à pressa, estabilizados em vão para o "todo terreno" (como o glifosato utilizado em todo o mundo, qualquer que seja o solo e o clima). A agroquímica ocidental, como se sabe hoje (e se lamenta), é a sua antítese teórica e prática.
Trazida progressivamente à razão, hoje encostada à parede, a ciência mais financiada (a ocidental) faz a sua autocrítica. Mesmo do ponto de vista da saúde, os antibióticos foram usados de tal modo pelo agrobusiness e pelas prescrições fáceis em medicina, que ao procurar alternativas críveis se redescobre, de modo bem mais dialéctico, não só os avanços da fagoterapia soviética (ocultando a sua origem) como também as benfeitorias do " microbiota " (tão atacada pelos antibióticos, pelo business da substituição do leite materno e outros produtos triunfantes da indústria química), incluindo a manutenção do sistema imunitário e, portanto, da saúde humana.
Esta é de facto uma atitude mais humilde face às imensas possibilidades ecológicas (no sentido científico do termo) que a ciência tenta agora ultrapassar os limites que se havia fixado por excesso de idealismo durante o século XX. Assim, apoia-se agora sobre a descoberta do microbiota (o conjunto dos microrganismos que vivem "com" cada um de nós e nos protegem de muitas bactérias indesejáveis, se os antibióticos não as tiverem sistematicamente destruído) para lutar contra as bactérias patogénicas e o "higienismo" muito mecanicista dos anos 60 está agora a dar lugar a uma atitude mais sistémica em relação ao mundo dos microrganismos e do nosso sistema imunitário, que é agora visto como um complexo mini-ecosistema a respeitar e até a reforçar, ao invés de "substituir".
E O COVID-19?
E o COVID-19 nisso tudo? Numerosas pandemias são não bacterianas mas sim virais e é o que este coronavírus hoje nos recorda cruelmente. Evidentemente, se muitos vírus são inofensivos (e mesmo úteis), como certas bactérias do nosso microbiota, alguns no passado causaram os piores danos às populações humanas. E desta vez, nada de antibióticos! Os antivirais são muito mais complexos e dependem sempre, de uma forma mais dialéctica, das potencialidades do próprio sistema imunitário humano, já adaptado em muitos aspectos à luta antivíral pela sua própria evolução e memória. É evidente que, neste domínio, não deixarão de surgir descobertas revolucionárias, a começar pelas complexas interacções que poderão eventualmente existir entre vírus "bons" e "maus" no meio natural que o homem domina actualmente, apoiando-se talvez nuns contra os outros. Estas descobertas não devem tardar a chegar, pois, estando tudo ligado num mundo material em constante evolução, com ou sem nós, o actual aquecimento climático está, como um efeito colateral mal conhecido, a descongelar um enorme permafrost árctico no qual adormeciam milhares de vírus antigos que a memória imunitária humana desde há muito esqueceu. As pandemias do tipo COVID-19 não deixarão portanto de se repetir e, perante uma investigação centrada unicamente na "química", frequentemente hostil à "biologia" (que é mais complexa e difícil de apreender ou de comercializar), a realidade infelizmente não perdoará qualquer erro.
Onde os laboratórios de investigação ocidentais tentam produzir um medicamento único e patenteável para cada doença, de um modo idealista e reducionista, já percebemos, em plena pandemia, que a investigação pioneira chinesa ou cubana aposta, de uma forma inteiramente heterodoxa, no "drug repositionning", ou seja, na possibilidade de utilizar uma molécula contra patologias não relacionadas com o alvo original. O interferon alfa 2B recentemente reciclado pelos cubanos contra o COVID 19, o medicamento antipalúdico do tipo cloroquina testado para os conoravírus desde há vários anos na China, são exemplos bastante claros, ilustrando uma abordagem sistémica, não reducionista e, portanto, "dialéctica" da investigação médica. E é sem dúvida assim que devemos agora pensar a nossa "guerra" contra os agentes infecciosos: eles evoluem e adaptam-se? Utilizemos nós também a evolução das nossas armas e contra-fogos biológicos ao invés de acreditar cada vez no "remédio milagroso".
É igualmente a necessidade que hoje desenvolve o "drug repositionning", uma vez que, apesar dos investimentos cada vez mais maciços, as novas moléculas descobertas na investigação médica estão a tornar-se cada vez mais raras: Com a globalização capitalista, toda epidemia está agora destinada a tornar-se uma pandemia, e todo agente infeccioso, maciça e rapidamente exposto à menor molécula antibacteriana ou antiviral, tem todas as oportunidades de evoluir, sofrer mutações e de sobreviver para se recompor durante um período de latência crucial (uma vez que a descoberta de uma vacina leva um certo tempo).
De modo geral, agora é bastante claro que, enquanto os países capitalistas desmantelaram pacientemente os seus sistemas de saúde por não serem rentáveis a curto prazo, os países que emergiram do campo socialista, embora órfãos da União Soviética, ilustram-se por uma política totalmente inversa: Em Cuba a saúde faz parte das prioridades absolutas, com um número incalculável de médicos que fazem o país famoso (não é mais belo, mais humano, exportar conhecimentos saber ou saber fazer ao invés de produtos de consumo?) No triturador social europeu, é mesmo Cuba, a China e a Venezuela, e não Bruxelas, a que se apela por ajuda!
A China, por seu lado, venceu o vírus através de um considerável esforço estatal que nenhum país entre os mais ricos do mundo é capaz de aplicar. Mesmo em tempos de "paz" sanitária, o socialismo sempre se preocupou em garantir a protecção sanitária das populações a qualquer preço: Todo edifício público, mesmo as escolas, era concebido para se tornar um hospital em caso de emergência e os serviços médicos eram implantados nos menores recantos do território, com um sistema de cuidados de saúde totalmente gratuito.
A situação escandalosa em que o capitalismo liberal coloca toda a humanidade só com esta pandemia não está apenas em conflito com a superioridade do socialismo em matéria de protecção da saúde: É a própria investigação que é apontada a dedo, a montante.
É provável que a China seja o primeiro país a desenvolver uma vacina contra a COVID-19, mas antes disso, os primeiros países a proporem tratamentos antivirais por reposicionamento de emergência foram Cuba (Interferon alfa 2B) e a China (cloroquina em particular), enquanto os intermináveis debates em França paralisam as decisões sobre o que poderia deter a catástrofe, devido a conflitos de interesses e querelas de ego...
Não seria a ciência guiada pela "competição" estimulante entre egos de avental branco, mas por investimentos maciços do Estado e pelo trabalho colectivo dos funcionários? Que descoberta!
Daí até um dia se admitir que mais "materialismo" e mais "dialéctica" acelera os avanços científicos ao invés de os retardar com "dogmatismo pró-soviético arcaico ", o prazo sem dúvida ainda será bem longo...
Hoje, mais do que nunca, os nossos inimigos não são nem os vírus nem as bactérias, mas sim aqueles que pelo chamariz do lucro destroem as nossas melhores armas colectivas contra eles!
27/Março/2020
[1] Ver Wikipedia , Enciclopdia Britnica
Ver também:
- Eliava Institute[*] Professor agregado de Ciências da Vida e da Terra. Autor de Evolution: La preuve par Marx (2016), L'Ecologie réelle, une expérience soviétique et cubaine (2018), editora DELGA.O original encontra-se em germinallejournal.jimdofree.com/...Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
Ver original em 'RESISTIR.INFO' na seguinte ligação:
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