O ÚLTIMO DISCURSO DO ''MANEL DA RATA''
O conhecido desde moço-pequeno como "Manel da Rata" nasceu com uma restrita ordem mental muito própria que não correspondia, nem hoje corresponde ou jamais corresponderia, à ordem mental dominante sempre renovada e normalizada dita normal ou de senso comum.
A sua ordem mental de não senso comum foi sempre tratada como sendo uma ordem mental desorganizada, incompreensível, desconexa e irracional como a de alguém desligado da realidade normalizada da gente normal.
Filho de pequenos proprietários foi criado e passou a juventude sempre ao redor dos pais e dos trabalhos de casa e do campo sem nunca ter frequentado a escola ou sequer ter trabalhado alguma vez por conta de um patrão mesmo na aprendizagem de um qualquer ofício como era prática comum nesse tempo.
Contudo convivia e brincava com moços vizinhos da sua idade, não muitas vezes, mas quando como nas debulhas, sementeiras ou apanha dos frutos secos o momento proporcionava esses encontros. Cresceu e fez-se homem quase fechado em casa e segundo os valores únicos tradicionais dos pais passados de geração em geração e fundados na posse e usufruto das pequenas parcelas de terra e suas árvores rentáveis de frutos secos; a figueira, amendoeira e alfarrobeira. E da pequena parcela de mato que, em conjunto com árvores secas, forneciam a lenha para a fornalha da cozinha e do forno caseiro do pão.
Aquelas pequenas parcelas de terra que foram para os pais o sustento e modo de vida únicos e tomadas como uma benção de salvação para suas vidas foi, igualmente e mais ciosamente, para o filho "Manel da Rata" sentidas e tomadas como coisa sagrada intocável e inviolável por quem quer que fosse.
Feito um homem rijo pela têmpera do sol do verão algarvio e do trabalho duro do arado, da ceifa, do varejo e apanha dos frutos secos e embebido de valores rígidos intransigentes, imutáveis e inegociáveis, o nosso homem viu-se só sem pais e com a responsabilidade de contar apenas consigo para tratar da sua própria existência.
A sua mente sem subtilezas intelectuais, educada e regulada para funcionar sob o princípio rígido linear de posse, dono e senhor do que é seu o qual entende que pode dispor segundo o livre arbítrio natural e, por oposição, firmemente consciente de que o que não é seu não lhe pertence e lhe é totalmente interdito: isto é, o que é seu é intocável para os outros e o que não é seu é intocável para si.
Fazia deste conceito simples de relações pessoais o seu modo de vida a tal ponto que nem sequer recebia dado o que quer que fosse por maior necessidade que tivesse do que lhe ofereciam. Nestes casos a sua rejeição à oferta era invariavelmente acompanhada da resposta; "guarde, guarde para si, pode fazer-lhe falta".
Este era o pensamento guia do seu modo de acção e proceder perante todos os casos da vida quotidiana.
No Sítio todos o entendiam bem, o respeitavam e até dialogava com todos que também da sua parte mereciam confiança. De resto, tratava da sua vida dura de escassez e rude dos trabalhos brutos manuais do campo, não se metia na vida alheia nem fazia mal a ninguém.
No início dos anos cinquenta tinha adquirido uma velha bicicleta na qual resolveu ir à "Feira de Faro" (Feira de Stª.Iria) e foi mandado parar à entrada da feira por um polícia que lhe apreendeu a bicicleta porque não tinha a "chapa" que representava o registo e a legalidade para poder usar e circular na bicicleta.
Claro, o Manel da Rata agarrou-se à bicicleta e não deixou que o polícia lhe "roubasse" a "sua" bicicleta que compara e pagara segundo um acordo mútuo feito entre homens honestos. Acabou por ser levado para a Esquadra onde o maltrataram desumanamente com pancada à bruta e depois ficou preso muitos dias sempre mal entendido e pior maltratado pelos da Esquadra.
Quando o mandaram para casa foi a pé pois não lhe restituíram a bicicleta. Chegou a casa sem a sua bicicleta mas com o corpo e cabeça cheio de hematomas e chagas devidas ao "tratamento de choque" que lhe aplicaram para amansar a sua "terrível perigosidade" e curar a sua visível e comprovada "loucura".
O Manel da Rata foi tratado segundo o olhar "psiquiátrico" dos polícias de Esquadra de então não obstante na altura Freud já ter publicado toda a sua obra sobe psicanálise.
Se, na sua simplicidade e curta capacidade mental, já não compreendera nunca as guerreias e maldades entre as pessoas a não ser porque queriam roubar o que não era seu, ficou baralhado de todo e sua cabeça verdadeiramente traumatizada a pancada, nunca mais regulou bem nem sequer nos mínimos anteriores.
Cerca de vinte anos depois voltou a pé, sujo e esfarrapado, à Feira de Faro com a sua saca de serrapilheira às costas de transportar bocados secos de restos de pão e conduto que eram o prato de seu comer. Amargo acaso, foi interpelado pelo mesmo polícia que o quis prender, agora, porque não podia andar assim naquele estado sujo e andrajoso na Feira.
Reconhecendo naquele polícia a mesma pessoa injusta e maldosa que lhe roubara a bicicleta e lhe batera sem dó na Esquadra levantou o pau alto e grosso que o ajudava a deslocar-se a pé por veredas do mato e caminhos de pedra e com quanta raiva e força tinha rachou a cabeça ao polícia.
Outra vez o Manel da Rata foi submetido a tratamento de choque ao modo de uma autoridade sem freio de Esquadra de Polícia do tempo da ditadura.
Só foi libertado da prisão alguns anos depois da Revolução de Abril de 1974. A sua saúde mental já pouco ordenada piorou muito, contudo, o seu apego instintivo aos valores de posse nunca lhe abalaram o seu primitivo e genuíno sentimento de justiça.
Foi assim que, quando chegou a casa vindo da última prisão, não obstante o pesadelo de inferno que fora o tratamento sofrido, ao ver um poste da rede eléctrica instalado no meio da terra de sua propriedade onde tinha a casa que herdara dos pais e estes dos seus, insistiu que lhe tirassem o poste daquele local.
Como não ligaram ao seu pedido constante ele próprio com um martelo e escopro velhos cortou a base de cimento do poste e deitou-o abaixo com a linha eléctrica agarrada.
Tudo leva crer que só nessa altura perceberam que o sentimento de justiça que participava da mente do Manel da Rata não era o mesmo da mente formal e normalizada que inspirara os códigos de Leis de feitura humana sob a visão do senso comum.
O Manel da Rata derrubou o poste da rede eléctrica da poderosa edp e não foi preso e, entretanto, já deixou o mundo dos vivos há duas décadas e o poste da rede eléctrica ainda lá está derrubado e retirado para onde não fosse um entrave à liberdade de movimentos na sua vida corrente e um insulto ao seu atávico mas sentido e inabalável conceito de justiça que aplicava a si e aos outros, imparcial e implacavelmente como Ares.
Ele que, ultimamente, apenas trocava algumas palavras e pequenas frases com os seus conhecidos do Sítio e jamais tenha proferido um discurso assim em plena rua, naquele dia 31 de Outubro de 1998, inesperadamente, dá em proferir em voz alta um monólogo totalmente ininteligível a quem o ouvia mas certamente não para si pois parece tratar-se de uma mensagem de repúdio sobre alguém do mundo ou sobre o próprio mundo exterior que nunca o compreendera e o maltratara.
A sua mente, personalidade e raciocínio, naquela altura, já estava tão perturbada e sem lógica que quase nem se entende o sentido das palavras mas é facilmente perceptível seu sentimento de revolta.
Logo após este discurso foi levado contra vontade para um lar de velhos onde o quiseram tratar como as outras pessoas socialmente normalizadas, vestida, lavada, asseada, asséptica e comportada como toda a gente.
Fora do seu ambiente de vida de toda a vida e perante um modo de vida artificial em total oposição ao pequeno fio de sua corrente mental mui específica, de nada lhe servia e valia estar vivo.
Assim, deixou-se morrer.
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