Gosto de escrever histórias de piratas, ladrões, bêbedos e revolucionários. Como as canções de Fabrizio de André. A minha primeira reportagem foi um fiasco. Queria fazer um trabalho sobre o jardineiro senegalês que matou o presidente da Junta de Freguesia da Pena com uma maceta. Falei com ele uma vez ao telefone e tentei que mo deixassem entrevistar na prisão. Não deixaram. Para todos os efeitos, a primeira reportagem que escrevi na vida, ainda estudante, foi sobre uma operação policial espanhola contra vários jovens independentistas galegos acusados de terrorismo. Quando estagiei na Agência Lusa, a primeira notícia foi sobre um ataque do Movimento para a Emancipação do Delta do Níger.
Fazer jornalismo devia ser como aquela anedota de que ao contrário dos cães nunca se ouviu falar de gatos-polícia. A falta que fazem professores como o Oscar Mascarenhas que nos obrigava a tratá-lo por tu e que perguntava a cada um de nós por que tínhamos escolhido aquele curso. No fim, respondia: "Nada disso. O primeiro objectivo de um jornalista deve ser querer mudar o mundo e questionar o poder". O facto é que quem trabalha em jornais, televisões e rádios tem muito poder. Somos explorados mas temos o poder de apontar. Dependendo da dimensão do órgão de comunicação social, claro. O capital manda, o jornalista aponta e a polícia dispara. A não ser que apontes para o lado errado da barricada de quem te paga o salário. Aí, fodes-te e vais para a prateleira.
Mas a maior forma de censura não é exercida sobre aquilo que se escreve. Censura-se, sobretudo, através daquilo que não se escreve. As histórias de piratas, ladrões, bêbedos e revolucionários não cabem nas páginas dos nossos jornais. E quando cabem é através da caricaturização para nos mostrar que não é daquele lado que devemos estar. É o grevista que não quer trabalhar, o imigrante que rouba, a mulher que estava bêbeda e estava a pedi-las, o comunista que quer subverter a nossa forma de existência.
O jornalismo afastou-se tanto da realidade e dedicou-se tanto a defender quem nos lixa a vida que as pessoas acreditam mais nas redes sociais do que nas notícias. Desde que a maioria dos jornalistas passou a ser um mero editor de comunicados de imprensa das agências de comunicação que o sector se afunda. O problema é que não se combate a mentira e as fake news com este jornalismo. Combate-se levando às pessoas a realidade que elas vivem e sentem.
Eu cresci a admirar jornalistas de outras latitudes que faziam o que eu gostava de fazer. John Reed que estudou na melhor das universidades norte-americanas, apanhou um transatlântico e quando atracou na Europa já estava preso, suspeito de uma assassinato que não cometeu, depois detido por ter entrado nu com uma mulher numa fonte em Itália e preso mais tarde com operários no seu país. “O maior passatempo do Jack é ser preso”, diziam os amigos. Conviveu com Pancho Villa e escreveu a mais incrível história sobre a revolução de Outubro.
Na Checoslováquia, Julius Fucík fez da sua morte a última reportagem. Como esquecer os exercícios no pátio da prisão em que um grupo de prisioneiras fingia ceifar e depois martelar para que todos os presidiários políticos pudessem saber que nem dentro do cárcere deixariam de celebrar o 1º de Maio. Foi condenado à execução através da forca.
Já o Ryszard Kapuściński deu-nos a conhecer as mulheres e os homens que resistiram em Angola à invasão sul-africana. Podia ter apanhado o último avião para sair de Luanda. Mas não. Era mais forte a obsessão de chegar à frente sul onde as tropas angolanas eram lideradas por um português que se juntou ao MPLA. Os comandantes Carlota e Farrusco são algumas das personagens inesquecíveis do seu livro Mais um dia de vida.
E a história do jornalista português José João Louro que deu voz à mais bonita das revoluções na Europa Ocidental desde a Comuna de Paris? Dentro da prisão de Peniche quando ainda se discutia que destino dar aos presos políticos, ofereceu-se para ficar na cela de um comunista acusado de crimes de sangue por ter pertencido à Acção Revolucionária Armada, creio que o Carlos Coutinho. Diz-se que quando o Carlos Coutinho saiu da prisão ainda antes dos outros presos, um dirigente do PCP no local obrigou-o a bater no portão e a voltar ao cárcere. Só sairia quando todos saíssem.
Os irmãos Miguel e Urbano Tavares Rodrigues foram os verdadeiros piratas. O primeiro assaltou o paquete Santa Maria, baptizado Santa Liberdade pelos operacionais do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação, e aos 80 anos ainda subia às montanhas da Colômbia para entrevistar guerrilheiros das FARC. Foi o director d’O Diário, o jornal que tanta falta nos faz. O segundo abriu caminho ao murro contra um agente da PIDE em plena rua e escondeu foragidos no porta-bagagens do seu Fiat. Também foi forçado a escolher o caminho do exílio.
Mas se hoje os tempos são outros e o jornalismo está mais amestrado do que nunca, ainda subsistem heróis debaixo das pedras cinzentas das ruas podres por onde caminhamos. Há jornalistas como Dick Emanuelsson que dispara agora desde as Honduras mas que trocou a Suécia pela Colômbia há muitos anos. Trocou a pátria de Stieg Larsson, que tinha a obsessão de perseguir nazis e descobrir o assassino de Olof Palme, por um dos mais violentos países do mundo. Há também repórteres como o basco Unai Aranzadi que acaba de chegar precisamente de um acampamento guerrilheiro colombiano depois de ter visitado outro nas Filipinas.
Como na vida em geral, precisamos de mais gatos do que cães-polícia. Precisamos de quem escarafunche a dura capa de merda seca que cresce todos os dias para que não vejamos o que outros já quiseram mostrar. Porque o primeiro objectivo de um jornalista deve ser mudar o mundo e questionar o poder.
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