A história do vinho começou a ser escrita milênios antes da Era Cristã e suas origens estão perdidas no tempo, contudo alguns pesquisadores identificam uma bebida da Índia védica como sendo seu ancestral.
Para muitos, apenas conhecer sobre vinho é o suficiente, para alguns poucos, como você, que provavelmente é um dos meus – curioso de natureza – prefere conhecer tudo.
Da origem, história, como surgiu, quais povos o elevaram ao status de bebida essencial e como chegou ao vinho fino que hoje temos em nossas adegas, restaurantes e mercados.
Este artigo é pra você, que não se contenta com pouco e adora história e geografia. Veremos sobre o início da produção do vinho no mundo e como ele evoluiu com o tempo, até a criação desastrada do espumante e do “vinho queimado”, o Cognac. Tudo em nome da conservação do vinho. Espero que você adore ler tanto quanto eu adorei escrever.– Marcos Marcon, Editor
Segundo Gautier, a bebida védica conhecida como Soma também era fermentada e utilizada em rituais religiosos, possivelmente produzida com o sumo da planta Asclepias acida com prováveis efeitos psicotrópicos; seu licor possuía o nome de Vena que, em sânscrito, quer dizer amado.
Da palavra Vena derivam quase todos os termos que identificam o vinho produzido de uvas viníferas nas línguas européias, por exemplo: do grego oinos, do latim vinus, do italiano e do espanhol vino, do alemão win, do inglês wine, do francês vin, do russo vino e do português vinho.
Os primeiros registros da produção de vinhos foram encontrados na região do Cáucaso e datam de cerca de 5.000 a.C., utilizando a vinha de origem da Vitis caucásica, com sua produção e consumo migrando, a seguir, para a Mesopotâmia e depois para o Egito, aproximadamente a partir de 3.000 a.C..Após conquistar a Grécia, o consumo de vinho rapidamente avançou para o Ocidente, inicialmente na ilha da Sicília e sul da Itália e, a partir da expansão romana, para as terras gaulesas.
O mito e o vinho
Um mito, de acordo com Joseph Campbell em sua obra “O poder do mito”, é uma narrativa protagonizada por seres que encarnam forças da natureza e aspectos da condição humana.
O vinho não deixa de estar representado na narrativa mitológica das civilizações, nas quais constitui importante elemento da vida social e da produção econômica.
Na mitologia egípcia, o deus solar Rá é o responsável pela introdução do vinho, utilizando a bebida com a cor do sangue como forma de entreter a deusa Hathor, a qual desejava destruir a humanidade.
Como lembrança do feito de Rá, os egípcios ofereciam em liturgia o vinho em todas as festividades religiosas nas quais a efígie da deusa Hathor era homenageada.
Na mitologia grega, a vinha é uma dádiva de Dionísio, o herói helênico do vinho divinizado por ser filho de Zeus com uma mortal.
Na tradição grega, Hera, a esposa de Zeus, por ciúme do nascimento de Dionísio o enlouquece e ele dá início a uma peregrinação que o leva pelo Egito, Síria, Índia e Frígia, onde encontra a deusa Cibele, que o cura de seu mal.
Não por mero acaso, temos no trajeto de Dionísio a peregrinação das vinhas e seu cultivo e elaboração do vinho. Ao glorificar o mito de Dionísio e em honra ao deus são realizadas festas rituais, eventos nos quais a música e o vinho são os pontos centrais de uvas.
Para os romanos, a introdução do vinho é devida ao deus Saturno, ligado às sementes e às vinhas, sendo este costumeiramente representado utilizando uma foice e uma tesoura de poda, portanto representando a ceifa de grãos e o cultivo de uvas viníferas.
Para os gauleses também existe uma divindade associada ao vinho, chamado de Sucellus, representado por uma coroa de hera, portando uma tesoura de poda e um martelo.
O martelo de Sucellus é uma ferramenta especializada, o martelo dos tanoeiros, artesãos produtores do tonel de carvalho com aros, um grande recipiente de madeira para a armazenagem do vinho inventado pelos celtas.
Também a tradição bíblica apresenta o vinho como um dom divino (Gênesis 27,28). A Escritura relata que o vinho foi cultivado após o dilúvio por Noé, que era agricultor, logo após o encalhe da arca no monte Ararat, que fica no Cáucaso, entre os atuais territórios da Turquia e Armênia.
Já no início da Era Cristã a vinha é a personificação do Messias, pois conforme João (15,1), Cristo diz: “Eu sou a verdadeira videira, e meu Pai é o agricultor”.
O vinho faz parte dos mitos e da religiosidade, oferendas de vinho puro ou misturadas a mel, leite ou mesmo água eram dedicadas aos deuses, procurando-se obter dádivas.
Portanto, a religiosidade encontra no vinho uma forma de expressão, que eleva os espíritos humanos ao encontro do divino, utilizando ainda uma série de rituais para compor a relação do crente ao deus ou deuses.
A civilização do vinho
O vinho também era um importante item da alimentação para os egípcios, como registrado nas gravações encontradas em templos, nas quais se pode observar o cultivo e cuidado com as vinhas e o preparo da bebida.
Também a arte mortuária egípcia evidencia a importância do vinho, quando dentre os restos das oferendas aos mortos são encontradas ânforas de vinho.
Além disso, há registros nas paredes de tumbas e de mastabas (túmulos em formato retangular, que precedem as pirâmides).
O ritual de mumificação, preparando o embalsamento dos corpos das pessoas de maior posse econômica utilizava o vinho como componente de importância, de acordo com registro efetuado por Heródoto.
Ainda que a bebida popular do Antigo Egito fosse a cerveja, cuja produção é muito mais barata e rápida, o vinho era consumido por uma elite econômica e social, sendo costume que as ânforas apresentassem registros de seu conteúdo tal como hoje, especificando dados da bebida, como local de produção e nome do vinicultor, o que permitia um controle do consumidor sobre o produto.
Outra cultura da Antiguidade na qual o vinho possui destaque diferenciado está relacionada à Grécia e, para um grego, a noção de civilização será inseparável da videira e do seu produto mais nobre.
Na Grécia Antiga, o jantar costumeiramente acontecia ao cair da noite, sendo dividido em duas partes.
Iniciava o jantar o ato da refeição, o comer, seguido do simposion, cuja tradução literal significa “reunião de bebedores”, uma ocasião na qual os cidadãos firmavam laços de solidariedade e afeição mútua, por meio de conversas sobre os mais diversos temas, desde filosofia a mexericos do momento, apresentações musicais e declamação de poesias.
Em regra, a bebida era servida em três recipientes distintos, sendo costumeira a mistura com água, na proporção determinada pelo dono da casa na qual estava sendo realizada a reunião, portanto as discussões poderiam ser um tanto mais aquecidas conforme a mistura final privilegiava maior proporção do vinho e não da água.
Vinho em Festivais Religiosos: Roma
Durante os festivais religiosos não existia tal cuidado, em especial nas celebrações em honra a Dionísio, quando não existia limite para bebidas alcoólicas, em especial o vinho, presente do deus.
]Nos banquetes privados o consumo de vinho era obrigatório, anda que com restrições sociais aos excessos, é conhecida uma passagem de “O banquete”, de Platão, relatando a chegada de Alcebíades bêbado ao evento quando Sócrates ironiza a condição do recém chegado.
A Roma cabe os créditos pela ampliação dos horizontes do consumo e popularização do vinho na Antiguidade. A expansão militar romana fez com que as legiões levassem aos confins do Império a língua, hábitos e costumes dos conquistadores, dentre os quais a bebida fazia parte.
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A rede comercial, amparada pela segurança da Pax Romana, utilizava estradas e vias marítimas para a realização de trocas comerciais entre as regiões do império e de seus vizinhos.
O pagamento de tributos dos povos conquistados fazia fluir à cidade de Roma grandes somas em metais preciosos, bem como produtos em espécie.
Para os romanos, ao contrário dos egípcios, o vinho não era um produto voltado ao consumo de uma elite econômica ou casta social; tratava-se de bebida popular por excelência, podendo ser usufruída na residência ou em tavernas e compunha a alimentação padrão dos cidadãos e escravos, acompanhado por azeita de oliva, pão e carne de porco.
Havia vinhos com diferentes padrões de qualidade, controle de origem e, portanto, de preço. As formas de consumo da bebida eram diversas, a mais comum era tomá-lo puro, contudo, imitando os gregos, não era excepcional o uso do “corte”, ou seja, acrescentar água, diluindo o produto e mantendo seus consumidores um tanto mais sóbrios.
O costume do envelhecimento do vinho começa a dar seus primeiros passos, e Plínio no século II a.C., registrava que os romanos possuíam predileção por vinhos envelhecidos.
A bebida de melhor qualidade era armazenada em equipamento de origem celta, o tonel de carvalho, para que pudesse ser envelhecido.
Posteriormente, o vinho era retirado dos tonéis e transferido para ânforas, cujas tampas eram seladas, registrando informações sobre a qualidade do produto, sendo essa a maneira mais comum de transportar vinhos na Antiguidade.
A armazenagem e o transporte de vinho por meio de ânforas, envolvidas em palha para proteção contra choques, permitiu a expansão do comércio do vinho, implantando o hábito de seu consumo em regiões nas quais o produto ainda não era reconhecido, sendo um importante fator do estabelecimento da cultura do vinho na Gália.
Se durante muitos séculos a Itália foi o centro de referência da produção de vinhos no mundo romano, a expansão das videiras pela Gália representou a conquista de territórios muito propícios ao desenvolvimento das videiras, contribuindo para transformar os gauleses em grandes apreciadores, produtores e consumidores do produto.
A cultura celta contribuiu para o desenvolvimento do vinho por meio da utilização de tonéis de carvalho para a armazenagem da bebida e, em breve, foi descoberto que o vinho sofria uma misteriosa transformação se assim armazenado, passando a possuir sabor mais agradável e de transporte mais seguro que as ânforas.
A plantação de videiras na Gália seguiu o eixo dos vales dos rios Ródano e Saône e dos rios que vão de Narbona a Bordeaux, onde a questão da facilidade do transporte oferecida pelos rios encontrou terras que possuíam características especiais para o cultivo das videiras, formando regiões especializadas na viticultura e produzindo vinhos que nos dias de hoje obtêm amplo reconhecimento pelos consumidores.
Podemos até mesmo identificar aqui o nascimento do conceito de terroir, ou seja, o terreno definido em função de sua produção agrícola, em especial na produção de vinho (mas também podendo ser aplicado à produção de queijo).
Com o fim do Império Romano no Ocidente, a tradição de produção de vinhos, sua cultura e o cultivo das vinhas foram mantidos pelos leigos e também pelos monastérios.
Certas ordens religiosas, como os cistercianos e os beneditinos concediam a seus monges o direito, explícito nas ordenações, do consumo de vinho, além do que o comércio do produto rendia impostos, em espécie ou não, que ampliavam a renda dos monastérios e abadias.
Ao longo de todo o período, ainda que as condições de segurança para o trânsito comercial fossem precárias, o mercado de vinhos não sofreu estagnação, inclusive tendo sido ampliado na França, que acaba por constituir-se na principal região produtora do Ocidente.
O avançar dos séculos fez com que o desenvolvimento comercial e capitalista contribuísse para a ampliação da indústria vinícola e do consumo do produto.
A criação desastrada do Champagne
Não foi pequena a contribuição para a expansão dos mercados dada pelos vinhos espumantes, em especial pela predileção de Luís XIV por vinhos produzidos na região francesa de Champagne.
Mais sobre a história da criação e cultura do Champagne você encontra nesses dois artigos:
E a imitação pela corte de Paris dos hábitos do rei fez com que tal produto obtivesse como que uma cerificação de qualidade, dando origem à noção de regiões produtoras especializadas e restritas, nas quais os produtores defendem com todas as suas forças seus privilégios de origem.
Tal fato está refletido nos dias atuais nas condições de negociação da Organização Mundial de Comércio (OMC), com denominações de origem controlada, segundo a qual apenas o vinho espumante produzido na região francesa citada pode ser identificado como champagne.
O comércio internacional dominado pelos holandeses no século XVII foi determinante no desenvolvimento de novo produto da indústria vinícola.
Como o vinho deteriorava em cerca de um ano de armazenagem e o custo do frete era um empecilho para o comércio de longas distâncias, os mercadores holandeses foram criativos e procuraram reduzir a presença de água no vinho, como forma de redução do peso total a ser transportado.
O líquido resultante da destilação foi denominado de brandwijn, literalmente vinho queimado, porém ao ser provado demonstrou ser uma bebida agradável e que, quanto mais tempo ficasse armazenado nos tonéis mais saboroso se tornava.
Da palavra brandwijn deriva o termo pelo qual a bebida é hoje conhecida: brandy e consolidando-se como uma nova bebida assumiu o nome da região na qual o vinho original era produzido, a região de Cognac.
A passagem do século XIX trouxe um grande desafio à indústria vinícola. Com o constante aumento da demanda por produtos de qualidade, em um mercado cada vez mais amplo e complexo, a produção enfrentou o desafio da modernização de métodos preocupada, contudo, com a manutenção da qualidade do produto.
A primeira obra moderna da viticultura, o “Traité sur La vigne”, foi escrita em 1801 por Jean-Antoine Chaptal, ministro de Napoleão Bonaparte, seguida, em 1816, por André Julien, com sua “Topographie de tous lês vignobles connus”, divulgando conceitos que foram incorporados à vinicultura e a terminologia utilizada pelos produtores e pelos mercados passa a ser utilizada de forma a identificar a cultura do vinho, apropriada por parte dos consumidores, como elemento de identificação de grupo social distinto.
Quando parecia que a cultura do vinho estava em seu apogeu, a vinha européia e, em particular os vinhedos franceses, foram contaminados por uma praga, a Philloxera vastatrix, na verdade um pulgão que parasita a videira, ocasionando a perda do fruto antes de sua maturidade.
A praga, ao longo de três décadas a contar de 1860, contaminou todas as regiões produtoras francesas, e ampliou sua atuação pelos vinhedos europeus, pois os métodos tradicionais de controle foram pouco eficazes.
A praga expandiu-se pelas regiões produtoras européias da Itália e da Espanha, e a única região produtora significativa que não foi contaminada pela praga foi a chilena, protegida pela barreira andina e pelo deserto do Atacama.
As soluções preconizadas à época previam a pulverização dos vinhedos com soluções químicas para eliminar a praga, mas com o risco de contaminação dos terrenos e dos vinicultores, ou a erradicação dos vinhedos, substituíram-se as videiras européias por videiras americanas (resistentes ao pulgão) enxertadas com videiras européias.
A alternativa seguida foi a da extirpação e a eficiente política sanitária permitiu a recuperação da indústria na Europa.
A produção do vinho expandia-se em função de um contínuo acréscimo da demanda, voltada quer para a exportação, quer para o consumo do mercado interno e, como consequência, surgiu a necessidade do desenvolvimento de mão de obra especializada, não apenas para o manejo nos vinhedos, mas também para a comercialização e venda varejista.
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