Irene Flunser Pimentel
O mundo está perigoso e os perigos são assinaláveis também em Portugal. É certo que esta afirmação poderia ser aplicada a muitos outros períodos históricos.
O mundo está também confuso, devido ao fim das ideologias globais que “tudo” explicavam e ao facto de termos de analisar pessoalmente cada acontecimento, tirar conclusões e actuar conforme nos ditam os nossos valores, especialmente éticos.
Também nada de novo. Hannah Arendt chamou a atenção para o facto de no período nazi terem sido muito poucos aqueles que pensaram por si próprios, aplicaram o imperativo categórico kantiano e souberam distinguir o bem do mal, agindo em conformidade. Por outras palavras, foram poucos os que tiveram o seu próprio Comité Central interior, como disse José Afonso.
As ideologias globais, muitas vezes auto-explicativas e totalitárias, foram substituídas por uma estratégia populista (lá irei) que reduz a análise da realidade social complexa a um pensamento simplista, binário, maniqueísta, demagógico e que promove a estupidez e a ignorância, demonizando as elites, os intelectuais e disciplinas como a História e a Filosofia.
Ironicamente, o populismo partilha com o elitismo a divisão maniqueísta da sociedade. No entanto, ao contrário deste, que promove a elite dando-lhe um estatuto de superioridade cultural, intelectual e moral e vê o “povo” como vulgar e perigoso, o populismo faz deste o elemento virtuoso e homogéneo. Populismo e elitismo opõem-se ao pluralismo da democracia representativa e das suas instituições.
Cas Mudde caracterizou o populismo como uma ideologia fraca, considerando estar a sociedade dividida em dois campos homogéneos antagónicos: o “povo puro”, colocado no centro da acção política (essa categorias abstracta inventada na revolução francesa, tão desvirtuada desde então), versus a “elite corrupta”. O populismo não é especificamente de extrema-direita, mas tende a localizar-se nesse espaço político.
Parece democrático, ao defender a regra da maioria, mas é visceralmente contra a democracia (liberal), ao rejeitar todos os freios e contrapesos do Estado de direito democrático, o qual garante instituições independentes de protecção dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a protecção das minorias. O populismo é referendário, e não por acaso assiste-se a um apelo ao referendo de uma questão tão complexa como a eutanásia, não tendo em conta que o nosso sistema democrático é representativo.
Os historiadores dividem-se entre os que utilizam a História (sobretudo contemporânea) como referência para analisar situações presentes, por um lado, e os que, assinalando que ela não se repete e que cada acontecimento é singular, seria inútil pensar-se retirar do conhecimento histórico qualquer lição possibilitando modelar a nossa análise e a nossa acção actual.
Ambos têm em parte razão, quanto a mim. A História e o seu conhecimento não deixam de nos indicar caminhos que não queremos percorrer, mas não permite profetizar nem conhecer o futuro.
O historiador Renzo De Felice, por exemplo, considera que só se pode falar de fascismo ao referir-se ao regime de Mussolini e avisa que o populismo actual só se torna compreensível se for analisado pelo que é hoje singular, distinto e novo.
Concordo. Mas se, no registo de historiadora, não utilizo facilmente os adjectivos fascista ou nazi, enquanto cidadã nada tenho contra a utilização de palavras como neo-fascista ou neo-nazi que remetem para o conhecimento e facilitam a argumentação.
Também penso ser fundamental a definição do inimigo principal a combater em cada momento e, por isso, antecipando-me a quaisquer críticas de não focar alguns aspectos, aviso os “whataboutistas” (aqueles que dizem que, quando falamos de fascismo, se deve também falar de comunismo) que só vou falar do actual populismo nacionalista de extrema-direita.
Com ideias antigas de supremacismo nacionalista, xenofobia, racismo, comunitarismo particularista, identitarismo, o populismo actual tem facetas novas, uma das quais – embora também não seja completamente novo – é a forma como utilizam a democracia para chegarem ao poder, não a destruindo de imediato, mesmo se o objectivo último é essa destruição.
Todos manipulam a verdade, diabolizam os inimigos nacionais, políticos e morais, bem como os “políticos” e a própria política, utilizam a religião, censuram, manipulam o aparelho de justiça e a comunicação social, assim como infiltram as instituições, nomeadamente as polícias e o aparelho judicial
No ano passado, ao ser entrevistada para um jornal francês, que questionou por que era Portugal (e a Espanha) uma excepção, sem populismo ou extrema-direita forte ou mesmo parlamentar, tentei explicar algumas razões contextuais.
Assinalei a forma como a ditadura foi derrubada em 1974 e a sua memória funcionou como vacina durante 40 anos, mas também muitos outros aspectos, entre os quais, a aceitação generalizada da democracia parlamentar e do Estado Social, a força de sindicatos e de partidos que serviram de travão ao populismo.
No entanto, afirmei que a situação iria mudar, bastando surgir políticos populistas demagogos justicialistas que copiassem o que se passava noutras latitudes, nomeadamente nos EUA, no Brasil, nas Filipinas, na Hungria ou Polónia, ou situações como o “Brexit”. E já mudou, não só com a chegada de três novos deputados únicos, representando, uns mais que outros, interesses egoístas, identitários e particularistas, sobretudo de extrema-direita, contra os políticos, as elites, os intelectuais, promovendo o espírito referendário, manipulando a desejável luta contra a corrupção, mas utilizando selectivamente vias ilegais para o fazer
Haverá várias razões para essa mudança e as explicações, a par do debate sobre elas, devem continuar a ser dadas, mas ao mesmo tempo há que actuar de imediato, começando desde logo por definir o inimigo principal.
E, embora tenha muitas dúvidas, não duvido que este é o populismo nacionalista, que utiliza a bandeira da luta contra a corrupção, bem como a percepção das desigualdades e da injustiça, para fabricar um mundo de inimigos, através do racismo e da xenofobia. O inimigo é o populismo, que promove a divisão da sociedade entre nós e eles, através de explicações binárias, maniqueístas e corporativas, que potencia a polarização da sociedade entre interesses particulares.
Mas como combatê-lo? Não é certamente dando palco às suas mentiras, propaganda, notícias falsas, mas também não é ignorá-lo, e muito menos votar no que o populismo propõe, dando-lhe objectivamente força.
Para apenas falar deste espaço de opinião que hoje utilizo, têm sido dadas algumas respostas.
Dou apenas como exemplos o artigo de Elísio Estanque caracterizando o populismo (6/2) e a última crónica de José Pacheco Pereira (8/2), saudando a atitude (que também saúdo) de Nancy Pelosi e assinalando a deterioração da democracia nos EUA. Outra resposta é também o abaixo-assinado, noticiado neste mesmo jornal (e que eu gostaria de subscrever), de apelo à opinião pública mundial e à comunidade internacional para apoiar o combate contra os ataques de Bolsonaro à democracia.
Mais que tudo, é hoje fundamental conhecer a História e usar a Filosofia como instrumento de pensamento para analisar a realidade actual, debatê-la, clarificá-la, caracterizá-la, defini-la e agir colectivamente e individualmente em conformidade.
www.publico.pt
O mundo está também confuso, devido ao fim das ideologias globais que “tudo” explicavam e ao facto de termos de analisar pessoalmente cada acontecimento, tirar conclusões e actuar conforme nos ditam os nossos valores, especialmente éticos.
Também nada de novo. Hannah Arendt chamou a atenção para o facto de no período nazi terem sido muito poucos aqueles que pensaram por si próprios, aplicaram o imperativo categórico kantiano e souberam distinguir o bem do mal, agindo em conformidade. Por outras palavras, foram poucos os que tiveram o seu próprio Comité Central interior, como disse José Afonso.
As ideologias globais, muitas vezes auto-explicativas e totalitárias, foram substituídas por uma estratégia populista (lá irei) que reduz a análise da realidade social complexa a um pensamento simplista, binário, maniqueísta, demagógico e que promove a estupidez e a ignorância, demonizando as elites, os intelectuais e disciplinas como a História e a Filosofia.
Ironicamente, o populismo partilha com o elitismo a divisão maniqueísta da sociedade. No entanto, ao contrário deste, que promove a elite dando-lhe um estatuto de superioridade cultural, intelectual e moral e vê o “povo” como vulgar e perigoso, o populismo faz deste o elemento virtuoso e homogéneo. Populismo e elitismo opõem-se ao pluralismo da democracia representativa e das suas instituições.
Cas Mudde caracterizou o populismo como uma ideologia fraca, considerando estar a sociedade dividida em dois campos homogéneos antagónicos: o “povo puro”, colocado no centro da acção política (essa categorias abstracta inventada na revolução francesa, tão desvirtuada desde então), versus a “elite corrupta”. O populismo não é especificamente de extrema-direita, mas tende a localizar-se nesse espaço político.
Parece democrático, ao defender a regra da maioria, mas é visceralmente contra a democracia (liberal), ao rejeitar todos os freios e contrapesos do Estado de direito democrático, o qual garante instituições independentes de protecção dos direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e a protecção das minorias. O populismo é referendário, e não por acaso assiste-se a um apelo ao referendo de uma questão tão complexa como a eutanásia, não tendo em conta que o nosso sistema democrático é representativo.
Os historiadores dividem-se entre os que utilizam a História (sobretudo contemporânea) como referência para analisar situações presentes, por um lado, e os que, assinalando que ela não se repete e que cada acontecimento é singular, seria inútil pensar-se retirar do conhecimento histórico qualquer lição possibilitando modelar a nossa análise e a nossa acção actual.
Ambos têm em parte razão, quanto a mim. A História e o seu conhecimento não deixam de nos indicar caminhos que não queremos percorrer, mas não permite profetizar nem conhecer o futuro.
O historiador Renzo De Felice, por exemplo, considera que só se pode falar de fascismo ao referir-se ao regime de Mussolini e avisa que o populismo actual só se torna compreensível se for analisado pelo que é hoje singular, distinto e novo.
Concordo. Mas se, no registo de historiadora, não utilizo facilmente os adjectivos fascista ou nazi, enquanto cidadã nada tenho contra a utilização de palavras como neo-fascista ou neo-nazi que remetem para o conhecimento e facilitam a argumentação.
Também penso ser fundamental a definição do inimigo principal a combater em cada momento e, por isso, antecipando-me a quaisquer críticas de não focar alguns aspectos, aviso os “whataboutistas” (aqueles que dizem que, quando falamos de fascismo, se deve também falar de comunismo) que só vou falar do actual populismo nacionalista de extrema-direita.
Com ideias antigas de supremacismo nacionalista, xenofobia, racismo, comunitarismo particularista, identitarismo, o populismo actual tem facetas novas, uma das quais – embora também não seja completamente novo – é a forma como utilizam a democracia para chegarem ao poder, não a destruindo de imediato, mesmo se o objectivo último é essa destruição.
Todos manipulam a verdade, diabolizam os inimigos nacionais, políticos e morais, bem como os “políticos” e a própria política, utilizam a religião, censuram, manipulam o aparelho de justiça e a comunicação social, assim como infiltram as instituições, nomeadamente as polícias e o aparelho judicial
No ano passado, ao ser entrevistada para um jornal francês, que questionou por que era Portugal (e a Espanha) uma excepção, sem populismo ou extrema-direita forte ou mesmo parlamentar, tentei explicar algumas razões contextuais.
Assinalei a forma como a ditadura foi derrubada em 1974 e a sua memória funcionou como vacina durante 40 anos, mas também muitos outros aspectos, entre os quais, a aceitação generalizada da democracia parlamentar e do Estado Social, a força de sindicatos e de partidos que serviram de travão ao populismo.
No entanto, afirmei que a situação iria mudar, bastando surgir políticos populistas demagogos justicialistas que copiassem o que se passava noutras latitudes, nomeadamente nos EUA, no Brasil, nas Filipinas, na Hungria ou Polónia, ou situações como o “Brexit”. E já mudou, não só com a chegada de três novos deputados únicos, representando, uns mais que outros, interesses egoístas, identitários e particularistas, sobretudo de extrema-direita, contra os políticos, as elites, os intelectuais, promovendo o espírito referendário, manipulando a desejável luta contra a corrupção, mas utilizando selectivamente vias ilegais para o fazer
Haverá várias razões para essa mudança e as explicações, a par do debate sobre elas, devem continuar a ser dadas, mas ao mesmo tempo há que actuar de imediato, começando desde logo por definir o inimigo principal.
E, embora tenha muitas dúvidas, não duvido que este é o populismo nacionalista, que utiliza a bandeira da luta contra a corrupção, bem como a percepção das desigualdades e da injustiça, para fabricar um mundo de inimigos, através do racismo e da xenofobia. O inimigo é o populismo, que promove a divisão da sociedade entre nós e eles, através de explicações binárias, maniqueístas e corporativas, que potencia a polarização da sociedade entre interesses particulares.
Mas como combatê-lo? Não é certamente dando palco às suas mentiras, propaganda, notícias falsas, mas também não é ignorá-lo, e muito menos votar no que o populismo propõe, dando-lhe objectivamente força.
Para apenas falar deste espaço de opinião que hoje utilizo, têm sido dadas algumas respostas.
Dou apenas como exemplos o artigo de Elísio Estanque caracterizando o populismo (6/2) e a última crónica de José Pacheco Pereira (8/2), saudando a atitude (que também saúdo) de Nancy Pelosi e assinalando a deterioração da democracia nos EUA. Outra resposta é também o abaixo-assinado, noticiado neste mesmo jornal (e que eu gostaria de subscrever), de apelo à opinião pública mundial e à comunidade internacional para apoiar o combate contra os ataques de Bolsonaro à democracia.
Mais que tudo, é hoje fundamental conhecer a História e usar a Filosofia como instrumento de pensamento para analisar a realidade actual, debatê-la, clarificá-la, caracterizá-la, defini-la e agir colectivamente e individualmente em conformidade.
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