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A maratona é uma das principais provas do atletismo. 42.195 metros que exigem um tremendo esforço aos participantes e lhes obrigam a uma cuidadosa preparação para depois correr essa tremenda distância, em alguns casos com o mero objetivo da terminar e em outros com maiores aspirações. Neste segundo sentido, o recorde olímpico masculino é do queniano Samuel Wanjiru, com um tempo de 2:06'32, enquanto o feminino é ostentado pela etíope Tiki Gelana com 2:23'07. Mas, sem dúvida, a marca mais inaudita de todos os tempos é a do japonês Shizō Kanakuri: começou uma maratona em 1912 e terminou em 1967. |
Kanakuri, de calção branco. Via Wikimedia Commons
Kanakuri nasceu em 20 de agosto de 1891 em Tamana, uma localidade da prefeitura de Kumamoto, na ilha Kyūshū. Ela tem certa fama tanto pela longevidade de seus habitantes como por uma intensa atividade geotérmica do subsolo originado pelo vulcão Aso. Alguns mananciais termais denominados jigokus constituem sua principal atração turística; oito delas recebem o nome dos Infernos de Beppu, por se concentrar na urbe homônima.
Mas é a figura de Kanakuri que nos interessa aqui e, mais concretamente, sua faceta esportiva. Durante sua etapa como estudante na Universidade de Tsukuba, se apresentou às provas classificatórias nacionais de atletismo de 1911, celebradas com o objetivo de selecionar os integrantes da equipe que o Japão apresentaria nos próximos Jogos Olímpicos, os de Estocolmo 1912. Kanakuri ganhou a maratona organizada ad hoc sobre uma distância de aproximadamente 40 quilômetros, a original.
Digo a original porque a modificação que ampliava a distância aos 42.195 metros atuais foi introduzida nos Jogos de Londres de 1908 para que a saída pudesse ser feita do balcão real do Palácio de Windsor sem necessidade de que a rainha Alexandra, esposa de Eduardo VII, tivesse necessidade de se deslocar; assim ficou dali por diante.
O caso é que Kanakuri cobriu os 40 quilômetros em um tempo de 2:32'45, o que supunha o recorde mundial da maratona primitiva, pelo que, evidentemente, foi um dos dois únicos atletas selecionados por sua federação para ir a Estocolmo (o outro foi o velocista Hyozo Omori).
A marca pessoal do japonês parecia toda uma garantia, mas a maratona é uma prova especial na qual os fatores externos podem influir de forma decisiva, mais ainda naquela época primigênia dos esportes. A viagem até Suécia requereu 18 dias entre a travessia de barco até Vladivostok e o posterior percurso em ferrovia, no famoso Transiberiano, capazes de deixar esgotado qualquer pessoa.
Kanakuri precisou cinco jornadas de recuperação, mas ainda lhe aguardavam outras desagradáveis surpresas. A primeira foi que a corrida não era disputada em Estocolmo senão em Sollentuna, um município situado ao norte da capital. A segunda, as diferenças culturais relacionadas a gastronomia, pois naquele então a equipe não viajava com comida nem cozinheiro próprios e os atletas tinham que se adaptar às características culinárias locais, coisa nada fácil e que costumava provocar alterações gástricas mos olímpicos. Outro grande problema foi que os termômetros marcavam sufocantes e nada habituais 32 ºC.
Talvez a temperatura elevada fosse algo secundário para outras provas, mas não para a maratona. Temendo uma catástrofe, os organizadores exigiram aos corredores um certificado médico, mas não foi suficiente. Mais da metade dos 67 que participaram da largada tiveram que ser atendidos por hipertermia e golpes de calor.
O pior cenário ocorreu quando o atleta português Francisco Lázaro faleceu com 21 anos à altura do quilômetro 30 aproximadamente, não por desidratação como se acreditava à princípio senão porque em vez de usar boné, cobriu o corpo com gordura para se proteger do sol, impedindo a sudoração e alterando o equilíbrio eletrolítico do organismo. - "Ou ganho ou morro", disse Lázaro profeticamente antes da corria.
Lázaro não era mais que um carpinteiro entusiasta de corridas que tinha vencido algumas provas em seu país. De fato, naqueles jogos os organizadores meio que perseguiram o profissionalismo por considerá-lo contrário ao espírito olímpico e por isso ocorreu um dos grandes escândalos da história dos jogos com Jim Thorpe, um índio americano ganhador do decatlo e pentatlo com um tênis que ele achou no lixo, que depois foi desclassificado quando descobriram que ele jogava beisebol em uma equipe profissional.
Seja como for, Kanakuri foi um dos prejudicados pelo tempo: vítima do calor, desmaiou em plena corrida no quilômetro 26 e teve que ser atendido por uma família que estava fazendo piquenique, já que o circuito não era urbano.
Francisco Lázaro em 1912, pouco antes de sua morte. Via Wikimedia Commons
Ninguém mais foi testemunha do incidente e quando o japonês recobrou a consciência, no dia seguinte, estava tão envergonhado por ter falhado com sua pátria que se retirou da prova e regressou para casa sem avisar ninguém. A maratona de Estocolmo terminou com a vitória de um policial sul-africano chamado Kennedy Kane McArthur, o primeiro que ganhava essa prova sendo de elevada estatura, pois até então sempre todos os atletas eram baixinhos, considerados mais adequados para provas de fundo.
Os juízes consideraram, acertadamente, que Kanakuri tinha se retirado, assim como ocorreu com tantos outros. O surpreendente foi que ninguém mais teve notícias dele e as autoridades suecas o incluíram na lista de desaparecidos.
Seu nome permaneceu nela durante meio século e não voltou a soar até 1966, em que o jornalista Oskar Söderland, que trabalhava em uma reportagem sobre a maratona de 1912, descobriu algo surpreendente: aquele atleta não só estava vivo em seu país, onde vivia desde 1912 trabalhando como professor de geografia, senão que inclusive teve outras participações olímpicas posteriores à de Estocolmo.
Efetivamente, Kanakuri foi selecionado de novo para participar na maratona das Olimpíadas de Berlim de 1916, que não foram celebradas devido a Primeira Guerra Mundial, e nas de Amberes de 1920, famosas porque ali foi feito o Juramento Olímpico pela primeira vez e estreou a bandeira com os cinco anéis.
Na capital belga conseguiu se ressarcir de sua má experiência escandinava e terminou a corrida com um tempo de 2:48'45 que lhe outorgou a décima sexta posição. No entanto, Kanakuri ainda participou de outros jogos, os de Paris de 1924; essa vez também não conseguiu terminar, ainda que não agiu de maneira tão drástica.
O regresso de Kanakuri ao Japão depois dos jogos de Paris em 1924. Via Wikimedia Commons
Assim mesmo, aquele veterano maratoniano foi pioneiro em treinar na altitudes elevadas, impulsionou o esporte feminino e foi o fundador em 1920 da Hakone Ekiden, uma prova de resistência que acontece entre as cidades de Tóquio e Hakone ao longo das 48 horas que há entre 2 e 3 de janeiro, cobrindo 108 quilômetros a primeira etapa e 110 a segunda.
Assim, redescoberto para o mundo (ou, ao menos, para a Suécia), chegou seu grande momento de escrever seu nome no livro da história do esporte no qual já figurava por méritos próprios. Em 1967, isto é, mais de meio século após seu misterioso desaparecimento, o Comitê Olímpico Nacional Sueco entrou em contato com ele para convidá-lo a participar na celebração do 55º aniversário dos jogos de Estocolmo e lhe oferecer algo tão surpreendente como divertido para arrecadar fundos destinados a atletas que quisessem ir ao Jogos do México de 68: terminar a maratona que teve que deixar em 1912. Kanakuri aceitou e, apesar de que por então já tinha 76 anos de idade, 6 filhos e uma dezena de netos, calçou seus melhores tênis e completou a distância que lhe faltou naquela infausta ocasião.
Em realidade, para ser exato, o que ele fez foi dar uma volta de honra no estádio e cruzar a linha de chegada (obviamente não fazia o calor daquela ocasião). O tempo total foi de 54 anos, 8 meses, 6 dias, 5 horas, 32 minutos e 20,3 segundos. Mesmo assim, menos da metade dessa outra longa, larguíssima, maratona vital que ainda lhe fez chegar a viver quase mais duas décadas, falecendo em 13 de novembro de 1983.
Shizō Kanakuri, hoje conhecido como o "pai da maratona" no Japão, tinha 92 anos.
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