Tropas da Comuna de Paris na Place Vendôme, 1871 (Wikimedia Commons
O sociólogo, jornalista e historiador Clóvis Moura nasceu neste dia em 1925. Resgatamos seu artigo em que detalha por que a Comuna de Paris, apesar da derrota, marcou uma virada qualitativa nas lutas sociais no mundo moderno - onde, pela primeira vez, o proletariado toma o poder e dirige a sociedade, demonstrando a possibilidade concreta da existência de uma sociedade sem exploradores e explorados.
Em 1989, todas as nações do mundo, como por um passe de mágica, festejaram apoteoticamente o bicentenário da Revolução Francesa. A mídia de todas as partes do globo fez com que chegassem aos telespectadores deslumbrante evento militar-coreográfico-musical e político. A então União Soviética, os Estados Unidos, a Inglaterra, todos os países da Comunidade Européia uniam-se para prestar homenagem àquela data que simbolizava a queda do regime feudal e o início do poder da burguesia, isto é, do capitalismo. Mas, a revolução francesa, para o povo, não é motivo de tanta festividade. Já em 1871, poucos anos depois da prometida terra da liberdade, igualdade e fraternidade, revelou-se a realidade do mundo do capital, com degradação do operário, com uma economia de mercado que exigia, para funcionar normalmente segundo os interesses dos detentores do capital, milhares de desempregados, bem como a superexploração do trabalho das mulheres e dos menores.
Essa economia de exploração logo dará os seus frutos, esmagando a economia artesã, a doméstica e outras formas inferiores de produção, entrando francamente na senda do capitalismo. De 1851 a 1869 a riqueza da França e o volume do seu comércio cresceram em mais de cinco vezes. Por outro lado, aumentou a produção do carvão de pedra e de ferro, ambos indispensáveis ao funcionamento e a construção industrial. Enquanto que em 1852 a produção foi de apenas 4,9 milhões de toneladas, em 1872 a produção atingiu 16,1 milhões de toneladas. Enquanto a produção de ferro, na Quinta década, teve uma média de 780 mil toneladas por ano, a média anual da Sexta década foi de 1,14 milhões de toneladas. O número de locomotivas na França, em 1850, era de 5 mil e em 1869 de 29 mil. A extensão das estradas de ferro se sextuplicou de 3,11 mil quilômetros em 1850, a 17,9 mil quilômetros.
Ao lado da pequena produção que ainda predominava em Paris, através de micro-empresas existiam, também, grandes empresas. De 440 mil trabalhadores industriais parisienses 50 mil eram empregados em empresas municipais e em grandes companhias. A época da Comuna, Paris já possuía dez fábricas de gás, um centro ferroviário com doze estações, fábricas de cigarro, tipografias, arsenais e outras grandes empresas municipais e privadas. Convém dizer que esse surto econômico deu-se durante o Segundo Império de Napoleão III, aliado à burguesia financeira ⎯ banqueiros e usurários ⎯ além dos grandes latifundiários e a camada superior da burguesia industrial. Assim, o domo das maiores fábricas de munições de Creuse, Schneider, era presidente da Câmara dos Deputados. Napoleão preparava-se para a sua aventura colonial no México e para a guerra contra a Alemanha.
Apesar do surto industrial, a França à época da Comuna era predominantemente agrária pois em 1872, 68% da população francesa vivia em regiões agrárias e somente 32% nas cidades. Era um campesinato pouco diferenciado, grande parte sem terra, particularmente atormentado pela dívidas. Na época do Segundo Império eles pagavam um imposto direto sobre a terra, impostos sobre os produtos à cidade. Vivia particularmente oprimido pelas dívidas e frequentemente o camponês era somente o proprietário simbólico da sua terra, porque as suas rendas eram logo distribuídas entre os seus credores.
Sociedades operárias
Enquanto no campo a situação existente era a que descrevemos, a classe operária se expandia dinamicamente. De acordo com o censo de 1861, existiam na França 2,9 milhões de trabalhadores industriais e 1,6 milhões de patrões. Enquanto em Paris cada empresa industrial tinha de 4,5 operários, a média geral para o país era ainda mais baixa: 1,7 trabalhadores. Média tão baixa de trabalhadores por empresa demonstra que na França havia um grande número de empresas artesãs.
A situação dos trabalhadores durante o Segundo Império piorou seriamente apesar do desenvolvimento econômico. Entre a quinta e a sexta década, os salários aumentaram entre 10 e 40% enquanto o preço das mercadorias e o aluguel das habitações tiveram um aumento de 70%. Por outro lado, a jornada de trabalho em Paris excedia de 11 horas e na província ia geralmente além de 12 horas e em alguns lugares como no Loire Superior chegava a 15 e 16 horas. Os protestos dos trabalhadores contra essa situação eram violentamente reprimidos; ocupavam fábricas com tropas, estabeleciam penas de prisão para os grevistas. Até 1864 (através da Lei de la Chapelier) as coalizões operárias estavam proibidas. O governo permitia a formação de sociedades operárias sob direção do padre ou do prefeito local. Muitas dessas entidades tinham mais o papel de espionagem do que de reivindicação social e econômica.
A luta de classes que se aguçava tinha de ser exercida nas situações mais desfavoráveis para os operários. Nem por isso ela deixou de existir, especialmente após a participação da Internacional na França. O número de seus membros aumenta e isso desperta o receio de Napoleão III que a dissolve depois de prender e julgar inúmeros membros da organização. As tropas do Imperador dispararam sobre os trabalhadores durante uma greve de mineiros de 1869 que abrangeu todo o vale do Loire. Várias outras greves são organizadas, como a de Creuse, 1870, provocada pela destituição de Assie, membro da Internacional que teve também caráter político. Os camponeses passam a aderir aos movimentos de protesto.
A crise se agravava para o governo. A derrota da França no México, depois de três anos, quando quis impor o Imperador Maximiliano aos mexicanos, agrava mais a situação e Napoleão vê como saída uma guerra contra a Prússia. A guerra foi um desastre. Depois de sucessivas derrotas os franceses perdem a batalha decisiva, em Sedan, em 1° de setembro, tendo os prussianos capturado 86 mil soldados, 39 generais, o próprio Imperador e 650 canhões. “La Debacle”, como a batizou Émile Zola, estava consumada. A França, além de perder a Alsácia-Lorena, teria de pagar cinco milhões de francos como indenização de guerra. A França estava arrasada. A burguesia desesperada proclama a república. Porém logo traiu as esperanças do povo. O governo de Defesa Nacional demonstrou total incapacidade para governar. À sua frente estavam inimigos da classe operária como o general Trochu, chefe do Conselho de Ministros, militar da capital e que não ocultava suas simpatias pela monarquia.
Reverência ao banco
Mas, apesar da capitulação de Napoleão III em Sedan, os prussianos marcham sobre Paris: não queriam apenas vencer a guerra, mas saquear a cidade. Nesta conjuntura os trabalhadores começam a praticar ações armadas.
Thiers, que sentia a revolução no ar, segundo René Garmy,
“quis desarmar o povo antes que fosse tarde demais. Em 18 de março as tropas governamentais lançaram-se das alturas para tentar apoderar-se da artilharia; porém espontaneamente formou-se a resistência. A multidão fechou o caminho e os 88 de linha levantou os fuzis e confraternizou com os insurgentes. Os generais Leconte e Clemente Thomas forma fuzilados. Por toda as partes foi dado o alarma e os soldados de Thiers tiveram de bater em retirada. Para isto foram erguidas barricadas. Diante da insurreição, Thiers ordenou a retirada do exército do governo e das administrações para Versalhes. À noite de 18 de março, o Comitê Central da Guarda Nacional desconcertado pela rapidez da insurreição, de improviso e quase contra a sua vontade, nomeia-se governo provincial. Assim se consumou a ruptura entre a burguesia e o proletariado”.
Com as tropas governamentais derrotadas em Versalhes a Comuna elege os seus representantes e passa a deliberar rapidamente, enquanto o governo de Versalhes negociava com o comando alemão a fim de obter autorização de elevar de 40 mil a 80 mil homens (depois 100) o efetivo das suas tropas, destinados a operar contra Paris revoltada. Durante a luta militar a Comuna passou pelas armas menos de 90 pessoas (reféns, espiões, agentes provocadores, etc). As tropas versalhesas perderam durante as batalhas de rua 83 oficiais mortos e 430 feridos; 790 soldados mortos e 5.990 feridos.
Em primeiro lugar a Comuna não soube manejar a arma governamental. Não soube fazer como devia a mobilização de suas tropas contra Versalhes nem abrir os arquivos secretos, nem apodera-se dos fundos do Banco da França, nem reprimir com a energia necessária os complôs contra-revolucionários. Thiers conseguiu de Bismarck a libertação de 100 mil prisioneiros, que se encontravam em suas mãos para marchar sobre Paris, isolando-a das províncias e das massas camponesas sem que os comunardos tivessem a iniciativa de levantar focos insurrecionais no campo, permitindo, com isto, a entrada dos exércitos de Thiers que ocuparam Paris.
Um dos maiores erros da Comuna foi “a reverência com que olhava o Banco da França”. E uma vez mais, grande parte deste erro foi devido à minoria. O bando armazenava gigantescas reservas de ouro da burguesia francesa, que estavam servindo para sustentar aos de Versalhes, ou seja, à contra-revolução. Na realidade conservou em seus postos o antigo diretor e os membros da antiga guarda. Nomeou apenas um comissário que vinha somente resguardar a segurança do capital de burguesia francesa. O banco tinha um total de três bilhões de francos em ouro, bilhetes e documentos. A quantia representada somente em ouro e brilhantes era de 1,3 milhões de francos. Sob as vistas da Comuna, o Banco da França fornecia dinheiro sem nenhum embaraço ao governo de Versalhes. Se a Comuna tivesse tomado posse do banco, a burguesia francesa teria exercido pressão sobre o governo de Versalhes para exigir que firmasse um acordo com a Comuna. Houve também muita divergência ideológica: anarquistas, blanquistas, babeufistas e outras correntes pequeno-burguesas no seio da classe operária da época, dificultaram a unidade de decisão em momentos cruciais, do que se aproveitou a contra-revolução para lograr a vitória.
Império do terror
Esmagada militarmente a Comuna, iniciou-se o terror, não apenas contra os seus líderes e participantes, mas contra a população de Paris. Alguns documentos da época dão uma pálida visão do que foi essa carnificina contra homens, mulheres e crianças. A corte marcial de Chatelet e a caserna de Lobau, para citarmos apenas esses dois centros de repressão e tortura, não poupava nenhum parisiense, mesmo sem nenhuma participação nos eventos. Pequenos matadouros funcionavam nas administrações municipais, nas escolas, nos terrenos baldios, nas estradas dos subúrbios, etc. Havia grades nas prisões de Mazas e de Roquette. Houve também degolamentos em massa no Panteão, nos Buttes-Chaumont e no P’re Lachaise. Beleville e La Villete foram literalmente despovoadas pelo massacre.
A repressão, fuzilamentos e deportações durou até o mês de agosto. M. Camille Pelleton fazendo a contagem dos mortos e conferindo a cifra oficial de 17 mil (cifra admitida pelos generais da ordem) concluiu, por baixo, que 30 mil trabalhadores parisienses foram assassinados no decurso da semana sangrenta de maio de 1871. Junta-se a essa quantia a dos prisioneiros mortos sobre barcaças, deportados para a Nova Caledônia ou outras partes (Rochefort e Louise Michel estiveram neste número) e lá dizimados pelas febres. Queiram lembrar-se que 40 mil pessoas, homens, mulheres e crianças foram presos em Paris, levados para Versalhes, encerrados em Satory, em condições atrozes e que os massacradores da ordem tiveram, eles próprios de admitir a inocência de 2/3 desses infelizes e ter-se-á talvez uma idéia aproximada do modo pelo qual a burguesia trata o povo operário.
O historiador André Ribard descreve as cenas do terror da seguinte maneira: “A repressão foi abominável. Massacrou-se nas igrejas, no Muro, no Panteão, nas ambulâncias, mataram-se à queima-roupa mulheres amamentando os seus filhos, médicos, inválidos, feridos e enfermeiros. Massacrou-se a tiros de metralhadora nas lamas das docas de Satory. Formaram-se cortejos de prisioneiros em Versalhes e as elegantes vieram cuspir neles.” Assim se restabeleceu a ordem “democrática” na França. A Comuna de Paris, apesar de derrotada, marca uma virada qualitativa no nível das lutas sociais no mundo moderno. Não apenas pela combatividade, seu heroísmo e senso de organização, ela se projeta como superior a todas as outras que a precederam.
O que a faz qualitativamente superior é o fato de que, pela primeira vez, o proletariado toma o poder e dirige a sociedade, demonstrando, na prática, a possibilidade concreta da existência de uma sociedade sem exploradores e explorados, criando um novo tipo de Estado representativo dos trabalhadores.
Esse Estado que se criou na Comuna foi o embrião daquele que surgiria depois, conforme previa Engels ao escrever que “em realidade o Estado não é mais do que uma máquina para a opressão de uma classe por outra, tanto na República democrática como sob a monarquia; e no melhor dos casos, um mal que se transmite hereditariamente ao proletariado triunfante em sua luta pela dominação de classe. Como fez a Comuna, o proletariado vitorioso não pode deixar de amputar imediatamente na medida do possível, os aspectos mais nocivos desse mal, até que uma futura geração, formada em circunstâncias sociais novas e livres possa desfazer-se de todo desse velho traste do Estado. Ultimamente as palavras ‘ditadura do proletariado’ voltaram a despertar sagrado terror ao filisteu social-democrata. Pois bem, senhores, quereis saber que face tem essa ditadura? Olhai para a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!”.
Sobre os autores
foi um sociólogo, jornalista, historiador e escritor brasileiro.
A Comuna de Paris ainda é uma fonte inesgotável para transformações radicais
Os burgueses da França sempre levaram tudo. Desde a revolução de 1789, eles foram os únicos a enriquecer em períodos de prosperidade, enquanto a classe trabalhadora regularmente carregava o peso das crises. Mas a proclamação da Terceira República abriria novos horizontes e ofereceria uma oportunidade para uma mudança de rumo. Napoleão III, tendo sido derrotado na batalha em Sedan, foi feito prisioneiro pelos prussianos em 4 de setembro de 1870. Em janeiro seguinte, após um cerco de quatro meses a Paris, Otto von Bismarck obteve uma rendição francesa e foi capaz de impor termos severos no armistício que se seguiu.
Eleições nacionais foram realizadas e Adolphe Thiers foi colocado à frente do poder executivo, com o apoio de uma grande maioria legitimista e orleanista. Na capital, porém, onde o descontentamento popular era maior do que em qualquer outro lugar, as forças republicanas e socialistas radicais viraram o jogo. A perspectiva de um governo de direita que deixaria as injustiças sociais intactas, jogando fardo da guerra sobre os menos favorecidos e procurando desarmar a cidade, desencadeou uma nova revolução em 18 de março. Thiers e seu exército não tiveram outra escolha senão fugir para Versalhes.
Luta e governo
Para garantir a legitimidade democrática, os insurgentes decidiram realizar eleições livres imediatamente. Em 26 de março, uma esmagadora maioria de parisienses (190.000 votos contra 40.000) votou em candidatos que apoiaram a revolta, e setenta dos oitenta e cinco representantes eleitos declararam seu apoio à revolução. Os quinze representantes moderados do partido de prefeitos (parti des maires), um grupo formado pelos ex-chefes de certos distritos (arrondissements), renunciaram imediatamente e não participaram do conselho da Comuna; logo depois, quatro radicais se juntaram a eles.
Os sessenta e seis membros restantes – nem sempre fáceis de distinguir devido à dupla afiliação política – representavam uma ampla gama de cargos. Entre eles estavam cerca de vinte republicanos neo-jacobinos (incluindo os renomados Charles Delescluze e Félix Pyat), uma dúzia de seguidores de Auguste Blanqui, dezessete membros da Associação Internacional dos Trabalhadores (tanto partidários mutualistas de Pierre-Joseph Proudhon quanto coletivistas ligados a Karl Marx, muitas vezes em conflito uns com os outros), e alguns independentes.
A maioria dos líderes da Comuna eram trabalhadores ou representantes reconhecidos da classe trabalhadora, e quatorze eram membros da Guarda Nacional. Na verdade, foi o comitê central desta última que investiu o poder nas mãos da Comuna – o prelúdio, como se viu, para uma longa série de desacordos e conflitos entre os dois órgãos.
Em 28 de março, um grande número de cidadãos se reuniu nas proximidades do Hôtel de Ville para as festividades de celebração da nova assembleia, que agora assumia oficialmente o nome de Comuna de Paris. Embora não sobrevivesse por mais de setenta e dois dias, foi o evento político mais importante da história do movimento operário do século XIX, reacendendo a esperança de uma população exausta por meses de sofrimento. Comitês e grupos surgiram nos bairros populares para dar apoio à Comuna, e todos os cantos da metrópole abrigaram iniciativas para expressar solidariedade e planejar a construção de um novo mundo. O Montmartre foi batizado de “cidadela da liberdade”.
Um dos sentimentos mais difundidos era o desejo de compartilhar com os outros. Militantes como Louise Michel exemplificam o espírito de abnegação; Victor Hugo escreveu sobre ela que “fez o que as grandes almas selvagens fazem. […] Ela glorificou os oprimidos e vexados.” Mas não foi o ímpeto de um líder ou de um punhado de figuras carismáticas que deram vida à Comuna; sua marca registrada era sua dimensão claramente coletiva. Mulheres e homens se reuniram voluntariamente para perseguir um projeto comum de libertação. O autogoverno não era visto como uma utopia. A auto-emancipação era considerada a tarefa essencial.
A transformação do poder político
Dois dos primeiros decretos de emergência para conter a pobreza galopante foram o congelamento do pagamento do aluguel (dizia-se que “a propriedade deveria fazer sua parte justa nos sacrifícios”) e a venda de itens com valor inferior a vinte francos em casas de penhores. Nove comissões colegiadas também deveriam substituir os ministérios da guerra, finanças, segurança geral, educação, subsistência, trabalho e comércio, relações exteriores e serviço público. Um pouco mais tarde, um delegado foi nomeado para chefiar cada um desses departamentos.
Em 19 de abril, três dias após novas eleições para preencher as trinta e uma cadeiras que vagaram quase que imediatamente, a Comuna adotou uma Declaração ao Povo Francês que continha também uma “garantia absoluta de liberdade individual, liberdade de consciência e liberdade de trabalho” assim como “a intervenção permanente dos cidadãos nos assuntos comunitários”. O conflito entre Paris e Versalhes, afirmou, “não pode ser encerrado por meio de compromissos ilusórios”; o povo tinha o direito e a “obrigação de lutar e vencer!”
Ainda mais significativo do que este texto – uma síntese um tanto ambígua para evitar tensões entre as várias tendências políticas – foram as ações concretas através das quais os Communards lutaram por uma transformação total do poder político. Um conjunto de reformas abordou não apenas as modalidades, mas a própria natureza da administração política.
A Comuna previa a revogação dos representantes eleitos e o controle de suas ações por meio de mandatos vinculantes (embora isso não fosse de forma alguma suficiente para resolver a complexa questão da representação política). As magistraturas e outros cargos públicos, também sujeitos a controle permanente e possível revogação, não deviam ser atribuídos arbitrariamente, como no passado, mas serem decididos após concurso público ou eleições.
O objetivo claro era evitar que a esfera pública se tornasse domínio de políticos profissionais. As decisões políticas não eram relegadas a pequenos grupos de funcionários, mas tinham que ser tomadas pelo povo. Os exércitos e as forças policiais não seriam mais instituições separadas do corpo da sociedade. A separação entre Estado e Igreja também era condição sine qua non.
Mas a visão da mudança política foi ainda mais profunda. A transferência do poder para as mãos do povo foi necessária para reduzir drasticamente a burocracia. A esfera social deveria ter precedência sobre a política – como já havia afirmado Henri de Saint-Simon – para que a política não fosse mais uma função especializada, mas se integrasse progressivamente à atividade da sociedade civil. O corpo social retomaria, assim, funções que haviam sido transferidas para o Estado.
To overthrow the existing system of class rule was not sufficient; there had to be an end to class rule as such. All this would have fulfilled the Commune’s vision of the republic as a union of free, truly democratic associations promoting the emancipation of all its components. It would have added up to self-government of the producers.
Derrubar o sistema existente de domínio de classe não era suficiente; tinha que haver um fim para o governo de classe como tal. Tudo isso teria cumprido a visão da Comuna da república como uma união de associações livres e verdadeiramente democráticas, promovendo a emancipação de todos os seus componentes. Ela teria levado ao autogoverno dos produtores.
Priorizando reformas sociais
A Comuna considerou que a reforma social era ainda mais crucial do que a mudança política. Essa foi a razão da existência da Comuna, o barômetro de sua lealdade a seus princípios fundantes e o elemento-chave que a diferencia das revoluções anteriores em 1789 e 1848. A Comuna aprovou mais de uma medida com claras conotações de classe.
Os prazos de amortização de dívidas foram adiados por três anos, sem acréscimo de juros. Os despejos por falta de pagamento de aluguel foram suspensos e um decreto permitia a requisição de moradias vagas para pessoas sem teto. Havia planos para encurtar a jornada de trabalho (das dez horas iniciais para as oito horas previstas para o futuro), a prática generalizada de impor multas especiosas aos trabalhadores simplesmente como medida de redução de salários foi proibida sob pena de sanções e salários mínimos foram colocados em um nível respeitável.
Foi feito tanto quanto possível para aumentar a oferta de alimentos e baixar os preços. O trabalho noturno em padarias foi proibido e vários armazéns municipais de carne foram abertos. A assistência social de vários tipos foi estendida aos segmentos mais vulneráveis da população – por exemplo, bancos de alimentos para mulheres e crianças abandonadas – e foram realizadas discussões sobre como acabar com a discriminação entre filhos legítimos e ilegítimos.
Todos os Communards acreditavam sinceramente que a educação era um fator essencial para a emancipação individual e qualquer mudança social e política séria. A presença na escola se tornaria gratuita e obrigatória para meninos e meninas, com a instrução de inspiração religiosa dando lugar ao ensino secular em linhas racionais e científicas. Comissões especialmente nomeadas e páginas da imprensa apresentavam muitos argumentos convincentes para o investimento na educação feminina. Para se tornar um verdadeiro “serviço público”, a educação tinha que oferecer oportunidades iguais para “crianças de ambos os sexos”.
Além disso, “distinções com base na raça, nacionalidade, religião ou posição social” deveriam ser proibidas. As primeiras iniciativas práticas acompanharam esses avanços teóricos e, em mais de um distrito, milhares de crianças da classe trabalhadora entraram em prédios escolares pela primeira vez e receberam material escolar gratuitamente.
A Comuna também adotou medidas de caráter socialista. Decretou que as oficinas abandonadas pelos patrões que haviam fugido da cidade fossem entregues às associações cooperativas de trabalhadores, com garantia de indenização noseu retorno. Teatros e museus – abertos gratuitamente a todos – foram coletivizados e colocados sob a gestão da Federação dos Artistas, presidida pelo pintor e militante incansável Gustave Courbet. Cerca de trezentos escultores, arquitetos, litógrafos e pintores (entre eles Édouard Manet) participaram dessa entidade – um exemplo retomado na fundação de uma “Federação de Artistas” que reúne atores e pessoas do mundo operístico.
Todas essas ações e disposições foram introduzidas no espaço de apenas 54 dias, em uma cidade ainda sofrendo com os efeitos da Guerra Franco-Prussiana. A Comuna só pôde fazer seu trabalho entre 29 de março e 21 de maio, em meio a uma heróica resistência aos ataques dos Versalheses, que também exigia um grande dispêndio de energia humana e recursos financeiros. Visto que a Comuna não tinha meios de coerção à sua disposição, muitos de seus decretos não foram aplicados uniformemente na vasta área da cidade. No entanto, eles demonstraram um impulso notável para remodelar a sociedade e apontaram o caminho para uma possível mudança.
Luta coletiva e feminista
A Comuna foi muito mais do que as ações aprovadas por sua assembleia legislativa. Ela até mesmo aspirou a redesenhar o espaço urbano. Tal ambição foi demonstrada pela decisão de demolir a Coluna Vendôme, considerada um monumento à barbárie e um símbolo repreensível de guerra, e de secularizar certos locais de culto, entregando-os para uso da comunidade.
Foi graças a um nível extraordinário de participação das massas e a um sólido espírito de assistência mútua que a Comuna persistiu por tanto tempo. Clubes revolucionários que surgiram em quase todos os distritos (arrondissement) desempenharam um papel notável. Havia pelo menos vinte e oito deles, representando um dos exemplos mais eloqüentes de mobilização espontânea.
Abertos todas as noites, eles ofereceram aos cidadãos a oportunidade de se encontrarem após o trabalho para discutir livremente a situação social e política, verificar o que seus representantes haviam alcançado e sugerir alternativas para a solução dos problemas do dia a dia. Eram associações horizontais, que favoreciam a formação e expressão da soberania popular, bem como a criação de espaços genuínos de irmandade e fraternidade, onde cada um pudesse respirar o ar embriagante do controle sobre o próprio destino.
Essa trajetória emancipatória não tinha lugar para a discriminação nacional. A cidadania da Comuna se estendia a todos os que lutavam por seu desenvolvimento, e os estrangeiros gozavam dos mesmos direitos sociais que os franceses. O princípio da igualdade era evidente no papel proeminente desempenhado pelos três mil estrangeiros ativos na Comuna. Leó Frankel, um membro húngaro da Associação Internacional dos Trabalhadores, não só foi eleito para o conselho da Comuna, mas serviu como seu “ministro” do trabalho – uma de suas posições-chave. Da mesma forma, os poloneses Jarosław Dąbrowski e Walery Wróblewski foram distintos generais à frente da Guarda Nacional.
As mulheres, embora ainda sem direito de voto ou de assento no Conselho da Comuna, desempenharam um papel essencial na crítica da ordem social. Em muitos casos, elas transgrediram as normas da sociedade burguesa e afirmaram uma nova identidade em oposição aos valores da família patriarcal, indo além da privacidade doméstica para se envolver com a esfera pública.
A União das Mulheres para a Defesa de Paris e Cuidados dos Feridos, cuja origem deve muito à atividade incansável da membra da Primeira Internacional, Elisabeth Dmitrieff, teve um papel central na identificação de batalhas sociais estratégicas. As mulheres conseguiram o fechamento de bordéis licenciados, ganharam igualdade para professoras e professores, cunharam o slogan “salário igual para trabalho igual”, exigiram direitos iguais no casamento e o reconhecimento de uniões livres e promoveram câmaras exclusivamente femininas em sindicatos.
Quando a situação militar piorou em meados de maio, com os Versalheses às portas de Paris, as mulheres pegaram em armas e formaram seu próprio batalhão. Muitas dariam o seu último suspiro nas barricadas. A propaganda burguesa as sujeitou aos ataques mais violentos, apelidando-os de les pétroleuses e acusando-as de terem incendiado a cidade durante as batalhas de rua.
Centralizar ou descentralizar?
A verdadeira democracia que os Communards procuravam estabelecer era um projeto ambicioso e difícil. A soberania popular exigia a participação do maior número possível de cidadãos. A partir do final de março, Paris testemunhou a proliferação de comissões centrais, subcomitês locais, clubes revolucionários e batalhões de soldados, que flanqueavam o já complexo duopólio do Conselho da Comuna e do comitê central da Guarda Nacional.
Este último manteve o controle militar, muitas vezes agindo como um verdadeiro contrapoder ao conselho. Embora o envolvimento direto da população fosse uma garantia vital da democracia, as múltiplas autoridades em jogo tornavam o processo de tomada de decisão particularmente difícil e isso significava que a implementação de decretos era um assunto tortuoso.
O problema da relação entre a autoridade central e os órgãos locais conduziu a algumas situações caóticas, por vezes paralisantes. O delicado equilíbrio se desfez completamente quando, diante da emergência de guerra, da indisciplina dentro da Guarda Nacional e da crescente ineficácia do governo, Jules Miot propôs a criação de um Comitê de Segurança Pública de cinco pessoas, nos moldes do modelo ditatorial de Maximilien Robespierre em 1793.
A medida foi aprovada em primeiro de maio, por maioria de quarenta e cinco a vinte e três. Foi um erro dramático, que marcou o início do fim de um novo experimento político e dividiu a Comuna em dois blocos opostos.
O primeiro deles, formado por neo-jacobinos e blanquistas, tendia para a concentração do poder e, no final, para o primado do político sobre o social. O segundo, incluindo a maioria dos membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, considerava a esfera social mais significativa do que a política. Eles pensaram que uma separação de poderes era necessária e insistiram que a república nunca deveria questionar as liberdades políticas.
Coordenado pelo infatigável Eugène Varlin, este último bloco rejeitou fortemente o deslocamento autoritário e não participou das eleições do Comitê de Segurança Pública. Em sua opinião, a centralização de poderes nas mãos de alguns indivíduos era categoricamente contraditória aos postulados fundantes da Comuna, uma vez que seus representantes eleitos não possuíam soberania – a qual pertencia ao povo – e não tinham o direito de cedê-la a um orgão em particular.
Em 21 de maio, quando a minoria novamente participou de uma sessão do Conselho da Comuna, uma nova tentativa foi feita para tecer unidade em suas fileiras. Mas já era tarde demais.
A Comuna como um sinônimo de revolução
A Comuna de Paris foi brutalmente esmagada pelos exércitos de Versalhes. Durante a semaine sanglante , a semana de derramamento de sangue entre 21 e 28 de maio, um total de 17 mil a 25 mil cidadãos foram massacrados. As últimas hostilidades ocorreram ao longo das paredes do cemitério de Père Lachaise. Um jovem Arthur Rimbaud descreveu a capital francesa como “uma cidade em luto, quase morta”. Foi o massacre mais sangrento da história da França.
Apenas seis mil conseguiram escapar para o exílio na Inglaterra, Bélgica e Suíça. O número de presos capturados foi de 43.522. Cem deles receberam sentenças de morte, após julgamentos sumários perante tribunais marciais, e outros 13.500 foram enviados para a prisão ou trabalhos forçados, ou deportados para áreas remotas como a Nova Caledônia. Alguns dos que foram para lá se solidarizaram e compartilharam o destino dos líderes argelinos da revolta anticolonial Mokrani, que estourou ao mesmo tempo que a Comuna e também foi afogada em sangue pelas tropas francesas.
O espectro da Comuna intensificou a repressão anti-socialista em toda a Europa. Passando por cima da violência sem precedentes do estado de Thiers, a imprensa conservadora e liberal acusou os Communards dos piores crimes e expressou grande alívio pela restauração da “ordem natural” e da legalidade burguesa, bem como satisfação com o triunfo da “civilização” sobre a anarquia.
Aqueles que ousaram violar a autoridade e atacar os privilégios da classe dominante foram punidos de forma exemplar. As mulheres foram novamente tratadas como seres inferiores, e as operárias, com mãos sujas e calejadas, que descaradamente ousaram governar, foram reconduzidas a posições para as quais eram consideradas mais adequadas.
E, no entanto, a insurreição em Paris deu força às lutas dos trabalhadores e os empurrou em direções mais radicais. No dia seguinte à sua derrota, Eugène Pottier escreveu o hino que estava destinado a se tornar o mais celebrado do movimento operário: “Vamos nos agrupar e amanhã / A Internacional / Será a raça humana!”
Paris havia mostrado que o objetivo deveria ser o de construir uma sociedade radicalmente diferente do capitalismo. Doravante, mesmo que “o tempo das cerejas” [le temps des cerises] (para citar o título do famoso verso do Communard Jean-Baptiste Clément) nunca voltasse para seus protagonistas, a Comuna encarnou a ideia de mudança político-social e sua aplicação prática. Tornou-se sinônimo do próprio conceito de revolução, de uma experiência ontológica da classe trabalhadora. Em A Guerra Civil na França, Karl Marx afirmou que esta “vanguarda do proletariado moderno” havia conseguido “anexar os trabalhadores do mundo à França”.A Comuna de Paris mudou a consciência dos trabalhadores e sua percepção coletiva. À distância de 150 anos, sua bandeira vermelha continua a tremular e a nos lembrar que uma alternativa é sempre possível. Vive la Commune!
Sobre os autores
Marcello Musto
é professor associado de Teoria Sociológica na Universidade de York (Toronto) e autor de vários livros, incluindo Another Marx: Early Manuscripts to the International (Bloomsbury, 2018).
jacobin.com.br /2021/03/por-que-celebramos-a-comuna-de-paris/
Por que celebramos a Comuna de Paris?
As “luas e os dias” trouxeram-nos de novo ao aniversário da maior tragédia dos tempos modernos, a Comuna de Paris de 1871, e com ele o dever recorrente de todos os socialistas de celebrá-la com entusiasmo e inteligência. A esta altura, as calúnias flagrantes com as quais a causa temporariamente malsucedida foi atacada quando o acontecimento ainda estava fresco na mente dos homens a afundaram em um grande abismo de mentiras, dissimulações hipócritas e falsas deduções – chamado também de história burguesa – ou se tornaram uma obscura mas profundamente enraizada superstição nas mentes daqueles que têm informação suficiente para ter ouvido falar da Comuna, e ignorância suficiente para aceitar a lenda burguesa dela como uma história.
Mais uma vez, é nosso dever levantar toda a história desta escuridão venenosa e trazê-la à luz do dia, para que por um lado aqueles que ainda não foram tocados pelo socialismo aprendam que houve um princípio que animou aqueles que defenderam a Paris revolucionária contra os resíduos do período lamentável do Segundo Império, e que esse princípio ainda está vivo hoje nos corações de muitos milhares de trabalhadores em toda a civilização, e ano após ano e dia após dia está crescendo em força e no controle que tem das massas deserdadas de nossa falsa sociedade; e, por outro lado, para que nós, socialistas, possamos observar sobriamente o que aconteceu nesta história, recebendo advertência e encorajamento de seus desdobramentos.
Já ouvi dizer, e também de bons socialistas, que é um erro comemorar uma derrota; mas parece-me que isso significa olhar não só para este evento, mas para toda a história de uma forma muito estreita. A Comuna de Paris é apenas um elo na luta que se estende por toda a história dos oprimidos contra os opressores; e sem todas as derrotas dos tempos passados não deveríamos agora ter a esperança da vitória final. Não estamos ainda afastados suficientemente no tempo para julgar os acontecimento e até que ponto seria possível evitar o conflito aberto na época, ou para avaliar a questão sobre o que teria acontecido com a causa revolucionária se Paris tivesse se rendido docilmente à perfídia de Thiers e seus aliados.
Por outro lado, temos a certeza de que esta grande tragédia elevou definitiva e irrevogavelmente a causa do socialismo a todos aqueles que estão dispostos a olhar para a causa com seriedade e se recusam a admitir a possibilidade da derrota. Pois digo solenemente e deliberadamente que se isso acontecesse neste momento conosco e tivéssemos que tomar parte em outra tragédia como esta, seria para o bem e não para o mal. Na verdade, é mais difícil viver por uma causa do que morrer por ela, e fere a dignidade e o respeito próprio de uma pessoa estar sempre fazendo ruidosas declarações de devoção a uma causa antes que se chegue ao campo de batalha no qual ela deve lutar com o corpo. Mas, com a chance do sacrifício corporal bem à frente, vêm também tempos de provação que elevam o homem ao devido tom trágico ou o descartam como um vaporizador vazio inútil.
Para usar uma metáfora transparente, na marcha para o campo de batalha há muitas oportunidades para os covardes caírem fora das fileiras, e muitos, cuja coragem e devoção não foram questionadas nem por outros nem por eles próprios enquanto o dia da batalha real estava muito distante, o farão. Portanto, esses tempos de prova são bons porque são tempos de prova; e podemos muito bem pensar que poucos, de fato, daqueles que caíram anos atrás, que se expuseram à morte e aos ferimentos em toda essa aventura, eram meros fanfarrões acidentais apanhados numa armadilha. Daqueles cujos nomes são bem conhecidos, isso estava longe de ser o caso, e quem pode duvidar que a multidão sem nome que morreu tão heroicamente sacrificou dia a dia outras coisas além da vida, antes que isso acontecesse?
Além disso, certamente deve ser mais do que duvidoso para todos os seres pensantes se o mero exercício das virtudes cotidianas e civis, mesmo quando direcionadas para o fim social, bastará para tirar o mundo de sua atual miséria e confusão. Considere a enorme massa de pessoas tão degradadas por suas circunstâncias que mal podem compreender qualquer esperança de redenção que possa ser colocada diante delas em tempos pacíficos e constitucionais. No entanto, essas são as mesmas pessoas para quem trabalhamos; e elas não devem participar da construção dessa luta, então? Deve ser mais uma vez de acordo com o degradante lema positivista, “tudo para você, nada por você”? Enquanto isso, nessas pessoas, a menos que nós, socialistas, estejamos todos errados, há sementes de sentimento humano e social, capazes de grande desenvolvimento; e certamente quando chegar o tempo em que sua esperança se manifestará, como foi no tempo da Comuna, e estará diante deles para que suas mãos a tomem, eles então terão parte no trabalho de fato, e por fazer isso, eles se levantarão imediatamente do lamaçal de degradação em que nossa falsa sociedade os lançou e na qual os mantém.
A própria revolução levantará aqueles por quem a revolução deve ser feita. Sua esperança recém-nascida, traduzida em ação, desenvolverá suas qualidades humanas e sociais, e a própria luta os habilitará para receber os benefícios da nova vida que a revolução tornará possível. É para aproveitar corajosamente a oportunidade oferecida para elevar a massa dos trabalhadores ao heroísmo que agora celebramos os personagens da Comuna de Paris. É verdade que eles falharam em conquistar a liberdade material imediata para o povo, mas foi em virtude de sua ação corajosa que as idéias de liberdade se aceleraram e se fortaleceram, tornando possível nossa esperança de hoje; e se hoje alguém duvida que eles lutavam pela emancipação do trabalho, seus inimigos da época não duvidavam disso. Eles não viam neles meros oponentes políticos, mas “inimigos da sociedade”, pessoas que não poderiam viver no mesmo mundo que eles, porque a base de suas ideias de vida eram diferentes – a saber, humanidade, não propriedade. Foi por isso que a queda da Comuna foi celebrada com essas hecatombes sacrificadas ao deus burguês Mamon; por tal motim de sangue e crueldade por parte dos conquistadores que, literalmente, não tem paralelo nos tempos modernos. E é por esse mesmo sinal que os honramos como a pedra fundamental do novo mundo que há de ser.
Sobre os autores
William Morris
foi um designer têxtil, poeta, romancista, tradutor e militante socialista inglês.
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A revolução urbana na Comuna de Paris
“Quando o manto imperial finalmente cair sobre os ombros de Luís Bonaparte, a estátua de bronze de Napoleão despencará do alto da coluna de Vendôme”. Com essas palavras, Karl Marx termina 18 Brumário de Luís Bonaparte, obra publicada em 1852. No entanto, é em maio de 1871 que o monumento no 1º. arrondissement, abominado pela multidão em Paris, vai realmente abaixo; a cena de fúria coletiva contra a estátua – imagem tão recentemente resgatada nos levantes antirracistas no coração do imperialismo – ali ocorria enquanto a massa, em revolta, era atingida pelos tiros da reação que cercavam a cidade, já na sanguinolenta derrota da revolução.
A guerra franco-prussiana gesta, de um lado, a primeira experiência moderna de tomada do poder pelo proletariado e, por outro, a unificação do império alemão. Tanto a França quanto a Alemanha obviamente não seguem o exemplo da industrialização a que Marx se referiu na Inglaterra – e é basicamente infértil a tarefa de abstrair que qualquer lugar o tenha seguido.
Paris: a capital das capitais
O Segundo Império de Luís Bonaparte foi uma saída autocrática para a crise econômica que assolou a Europa, particularmente a França, nos anos de 1840; era a solução autonomizadora, de elevação do poder de Estado acima das frações então diversas, de idealistas republicanos (burgueses e radicais) a monarquistas, à sombra das experiências de insurreição de 1830 e das jornadas de junho de 1848. Era parte do intuito do golpe autoritário, evidentemente, a proteção da propriedade e a prevenção de novos levantes revolucionários.
Como aponta geógrafo marxista David Harvey, a urbanização de Georges-Eugène Haussmann, prefeito do Sena entre 1853 e 1870 (ano que antecede a Comuna), produto histórico único do bonapartismo, produziu a mais moderna entre as cidades capitalistas europeias – uma cidade, segundo sua mentalidade autocrática, cuja vocação de “capital do Ocidente” só seria comparável a Roma da antiguidade.
O plano autenticamente moderno de obras e investimentos públicos redimensiona a cidade, assimila suas regiões suburbanas, aumenta ineditamente a escala dos meios de circulação, geometriza seus raios de maneira euclidiana, descentraliza o controle do Estado, multiplica o tamanho das avenidas, amplia a rede ferroviária e comunicacional ligada a Paris, derruba as vielas e ruelas das moradias populares, restabelece desenhos de segregação habitacional.
Durante anos, Paris se tornou um canteiro de obras interminável, onde milhares e milhares de migrantes camponeses proletarizados passam a trabalhar. Eles constroem as redes da infraestrutura ferroviária e telegráfica ao redor do país e também os bulevares e comércios de varejo a oeste de Paris, enquanto a cidade vai fermentando novíssimas e próprias contradições.
O impacto da transformação subjetiva, da criação mesma de um novo sujeito, o proletariado, que não era mais o sans culotte, que não era mais o ouvrière, mas uma massa subsumida sobretudo por esta urbanização de novos ditames – mundialmente inovadores e resultantes da aceleração planejada do tempo pela produção do espaço –, é de difícil dimensão. Mesmo que a urbanização, enquanto movimento específico de compressão do tempo pelo espaço, seja uma experiência genericamente comum na história do capitalismo, ela ainda hoje é teorizada aquém da sua importância.
A nova Paris planejada pelo bonapartismo, sede promissora dos imperativos tecnológicos da circulação do capital, arquitetou também sua negação. Os laços políticos proletários, forjados a partir dos bairros da cidade, foram cruciais para o levante que tomou o poder há 150 anos. O proletariado parisiense de 1871 se espalhava a noroeste, passando pelo leste até o sudoeste da cidade. Uma ferradura que isolava a região oeste, de ocupação expressivamente burguesa e fundamental na tomada geográfica da Comuna em maio pela contrarrevolução.
O poder territorial dos bairros
Nesta ferradura espacial de ocupação proletária, havia múltiplas concentrações de associações de ajuda mútua, forjadas desde a década anterior, em que o blanquismo e outras correntes radicais tinham inserção política. Os pólos comunitários territoriais distribuíam itens básicos de consumo nos bairros e foram a premissa material dos encontros públicos realizados para educação e politização da população pauperizada e radicalmente insatisfeita desde 1868.
A “outra Paris”, a leste, era convulsionada por debates diários acalorados em praças públicas, conduzidos pela variedade de radicais, blanquistas, socialistas, a léguas do rio Sena. Estes encontros forjaram uma nova cultura de rua ao som de novas baladas revolucionárias da época, enquanto fortalecia as organizações sindicais, as cooperativas barriais e iniciativas de mulheres trabalhadoras (estas últimas foram o gérmen da União de Mulheres para a Defesa de Paris e Cuidado com os Feridos, importante referência política organizativa durante a própria Comuna).
A superlotação insalubre dos bairros proletários centrais que conhecemos pelas descrições balzaquianas foram dragadas pela reconstrução radical de Haussmann e a arregimentação de uma frente renovada de interesses do capital imobiliário-financeiro. As demolições foram proporcionais às novas construções, vultuosas numericamente, de alargamento das zonas nobres da cidade a oeste e de periferização proletária da cidade a leste. O encarecimento sistemático dos preços imobiliários e o aumento na proporção de renda despendida por trabalhadores com aluguel no período são fatores significativos dessas novas contradições de classe.
Nos meses em que a Comuna durou, a suspensão do pagamento dos aluguéis, a utilização de imóveis para moradia, e, mais importante, a organização política decisória estabelecida com critérios territoriais, a partir dos Comitês de Bairro, não são apenas expressão de uma ideologia autonomista e municipalista, derivada do programa das correntes radicais mais influentes durante a revolução; não podem ser interpretadas tão somente como a razão do fracasso da revolução; são constitutivas de uma formação experimentada nos anos anteriores no chão da cidade, que gestou uma classe, a própria classe que, aliás, diga-se de passagem, foi mundializada neste século XXI: o proletariado urbano, as periferias produzidas em escala planetária, ou seja, a urbanização como proletarização.
Abolição da polícia, distribuição da alimentação, educação para as crianças, moradia para toda a população, decisões políticas cruciais para o destino daquela Paris – e, potencialmente, do destino de todo mundo moderno – sendo definida entre vizinhos, entre os alvos daquele novo processo de despossessão urbana.
A maior festa do século XI
A revolução da Comuna, tomada “em ato”, como apresenta Marx em Guerra Civil na França, foi efetivamente uma experiência de poder proletário que embaralha a grande política e o cotidiano das massas, nas múltiplas incursões revolucionárias nas ruas da cidade.
É também a forma específica da produção capitalista do espaço urbano, pioneira da modernidade, que aduba as próprias contradições que fermentaram a Comuna. A cidade inventa um novo poder, a partir da materialidade espacial, ou seja, gera novas modalidades de reprodução social e, com isso, também de reprodução das próprias relações sociais de produção. Estes foram os promissores sinais do mutualismo sobrevivente de uma classe devastada pela guerra, pela industrialização e pela reconstrução da vida urbana.
Todas as necessidades imediatas à sobrevivência se transformam em gratuidade; as jornadas de trabalho são encurtadas, o solo urbano deixa de ser renda fundiária e se torna um uso sem a determinação formal da mercadoria. Os veículos são proibidos e as ruas são tomadas apenas pelos pedestres por decisão coletiva.
Se a Comuna foi “a maior festa do século XIX”, como insiste o sociólogo marxista Henri Lefebvre, é porque a história passou a ser comandada pelo espaço cotidiano, pela ideia finalmente concreta da liberdade. A grande complicação é que a derrota da Comuna também é, ao mesmo tempo, a sua exuberância humana imaginativa: a revolução urbana.
Sobre os autores
Carolina Freitas
é militante socialista, mestre e doutoranda pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Pesquisa questões urbanas sob a crítica da economia política marxista.
Em memória da Comuna
Já se passaram quarenta anos desde a proclamação da Comuna de Paris. Seguindo a tradição, o proletariado francês honrou a data com comícios e manifestações em memória dos homens da revolução de 18 de março de 1871. No final de maio voltarão a levar coroas de flores às tumbas dos communards fuzilados durante a terrível “semana de maio” e a jurar, diante delas, que lutarão sem descanso até o triunfo completo de suas ideias, até dar por cumprida a obra por eles legada.
Por que o proletariado – não apenas o francês como o de todo o mundo – honra os combatentes da Comuna e seus precursores? Qual é a herança da Comuna?
A Comuna de Paris surgiu de forma espontânea; ninguém a preparou de modo consciente ou sistemático. A terrível guerra contra a Alemanha, os sofrimentos das privações impostas pelo cerco militar, o desemprego operário e a ruína da pequena burguesia; a indignação das massas contra as classes superiores e contra as autoridades, que haviam demonstrado uma incapacidade absoluta; a surda efervescência no seio da classe operária, descontente de sua situação e ansiosa por um novo regime social; a composição reacionária da Assembleia Nacional, que fazia temer os destinos da República, foram as causas que concorreram com outras muitas para impulsionar a população parisiense para a revolução do 18 de março, que colocou de improviso o poder nas mãos da Guarda Nacional, em mãos da classe operária e da pequena burguesia, que havia se unido a ela.
Foi um acontecimento histórico sem precedentes. Até então, o poder estava, em geral, nas mãos dos grandes proprietários de terra e dos capitalistas, quer dizer, de seus mandatários, que constituíam o chamado governo. Depois da revolução de 18 de março, quando o governo do senhor Adolphe Thiers fugiu de Paris com suas tropas, sua polícia e seus funcionários, o povo tomou o controle da situação, e o poder passou para as mãos do proletariado. Porém, na sociedade moderna, o proletariado, avassalado no campo econômico pelo Capital, não pode dominar na política se não romper as correntes que o amarram ao Capital. Daí que o movimento da Comuna deveria adquirir inevitavelmente um matiz socialista, isto é, deveria tender ao aniquilamento do domínio da burguesia, da dominação do capital e à destruição das próprias bases do regime social contemporâneo.
A princípio, tratou-se de um movimento heterogêneo e confuso. A ele somaram-se também os patriotas e nacionalistas, na esperança de que a Comuna reiniciaria a guerra contra os alemães e levasse a um desenlace venturoso. Apoiaram-no também os pequenos lojistas, em perigo de arruinamento se não se adiasse o pagamento dos títulos vencidos e dos aluguéis – adiamento este que lhes era negado pelo governo, mas que a Comuna lhes concedeu. Por último, no começo também simpatizaram em certa medida com os movimentos republicanos burgueses, temerosos de que a reacionária Assembleia Nacional (os ruralistas, os violentos latifundiários) restabelecessem a monarquia. Porém, o papel fundamental nesse movimento foi desempenhado, naturalmente, pelos operários (sobretudo os artesãos parisienses), entre os quais se havia espalhado, nos últimos anos do Segundo Império da França, uma intensa propaganda socialista –muitos deles, inclusive, eram filiados à Internacional comunista.
Somente os operários revelaram-se fiéis à Comuna até o seu fim. Os republicanos burgueses e a pequena burguesia não tardaram em apartar-se dela: uns assustaram-se com o caráter revolucionário socialista do movimento, com seu caráter proletário; outros se afastaram quando viram que a Comuna estava inevitavelmente condenada à derrota. Apenas os proletários franceses apoiaram seu governo sem temor nem vacilo; só eles lutaram e morreram por ele, quer dizer, pela emancipação da classe operária, por um futuro melhor para os trabalhadores.
Abandonada por seus aliados de outrora e sem poder contar com nenhum apoio, a Comuna precisava ser derrotada. Toda a burguesia francesa, todos os latifundiários, especuladores da bolsa e fabricantes, todos os grandes e pequenos ladrões, todos os exploradores uniram-se contra ela. Com a ajuda de Bismarck (que pôs em liberdade 100 mil soldados franceses, prisioneiros dos alemães, para esmagar a Paris revolucionária), essa coalizão burguesa logrou confrontar com o proletariado parisiense os camponeses atrasados e a pequena burguesia de províncias e cercar metade de Paris com um anel de ferro – a outra metade havia sido cercada pelo exército alemão. Em algumas cidades importantes da França (Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Dijon e outras) os operários também tentaram tomar o poder, proclamar a Comuna e acudir Paris. Tais intentos, porém, logo fracassaram, e Paris, que havia sido o primeiro local a desfraldar a bandeira da insurreição proletária, ficou abandonada à sua própria sorte, condenada a uma morte certa.
Para que uma revolução social triunfe, são necessárias pelo menos duas condições: um alto desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado preparado para tal. Contudo, em 1871, nenhuma dessas condições estava dada. O capitalismo francês encontrava-se ainda pouco desenvolvido; a França era, então, fundamentalmente um país de pequena burguesia (artesãos, camponeses, lojistas etc.). Da mesma forma, não existia um partido operário; a classe operária não tinha preparação nem havia passado por um grande treinamento e, em sua massa, sequer tinha uma noção totalmente clara de quais eram seus objetivos nem como se poderia alcançá-los. Não havia uma organização política séria do proletariado nem sindicatos e cooperativas fortes…
Mas o que faltou à Comuna foi, principalmente, tempo, isto é, possibilidade para perceber a situação das coisas e empreender a realização de seu programa. Não teve tempo para iniciar essa tarefa quando o governo, entrincheirado em Versalhes e apoiado por toda a burguesia, iniciou as operações militares contra Paris. A Comuna teve de pensar, antes de tudo, em sua própria defesa. E até seu fim, que ocorreu na semana de 21 a 28 de maio, não houve tempo para pensar com seriedade em outra coisa.
Por certo, mesmo com essas condições tão desfavoráveis e à brevidade de sua existência, a Comuna teve tempo de aplicar algumas medidas que caracterizam bastante seus verdadeiros sentido e objetivo. Substituiu o exército permanente, instrumento cego em mãos das classes dominantes, pelo armamento de todo o povo; proclamou a separação da Igreja do Estado; suprimiu a subvenção ao culto (o soldo que o Estado pagava aos padres) e deu um caráter estritamente laico à instrução pública, com o que desferiu um rude golpe aos soldados de batina.
Pouco foi o que se pôde fazer no terreno puramente social. Esse pouco, porém, mostra com suficiente clareza seu caráter de governo popular, de governo operário: o trabalho noturno fpo abolido nas padarias, o sistema das multas foi extinto – essa exploração consagrada pela lei, com que se vitimavam os operários – e, finalmente, foi promulgado o famoso decreto de entrega de todas as fábricas e oficinas abandonadas ou paralisadas por seus donos às cooperativas operárias, com o objetivo de retomar a produção. E, para sublinhar, seu caráter de governo autenticamente democrático, proletário, a Comuna dispôs que a remuneração de todos os funcionários administrativos e do governo não fosse superior ao salário normal de um operário, nem passasse em nenhum caso dos 6 mil francos anuais (menos de 200 rublos ao mês).
Todas essas medidas mostravam eloquentemente que a Comuna constituía uma ameaça de morte ao Velho Mundo, baseado no avassalamento e na exploração. Essa era a razão pela qual a sociedade burguesa não podia dormir tranquilamente enquanto o ajuntamento de Paris ostentasse a bandeira vermelha do proletariado. E, quando a força organizada do governo pôde, afinal, dominar a força mal organizada da revolução, os generais bonapartistas, esses mesmos generais derrotados pelos alemães mas com atitudes garbosas frente a seus compatriotas vencidos, esses Rennenkampf e Méller-Zakomelski franceses fizeram uma matança como nunca vista em Paris. Cerca de 30 mil parisienses foram mortos pela soldadesca enfurecida; uns 45 mil foram detidos, executados logo muitos e desterrados ou enviados a trabalhos forçados milhares deles. No total, Paris perdeu 100 mil filhos, entre os quais se encontravam os melhores operários de todos os ofícios.
A burguesia estava satisfeita. “Agora o socialismo acabou, por um longo tempo!”, dizia seu sanguinário chefe, o diminuto Adolphe Thiers, quando ele e seus generais afogaram em sangue a sublevação do proletariado de Paris. Mas de nada serviram os grunhidos desses corvos burgueses. Não passariam ainda seis anos da derrocada da Comuna, enquanto se achavam muitos de seus lutadores em presídio ou no exílio, quando na França iniciou-se um novo movimento operário. A nova geração socialista, enriquecida com a experiência de seus predecessores e em absoluto desencorajada pela derrota que sofreram, recolheu a bandeira caída das mãos dos combatentes da Comuna e levou-a adiante com firmeza e valentia aos gritos de “Viva a revolução social! Viva a Comuna!”. E três ou quatro anos mais tarde um novo partido operário e a agitação que levantará no país obrigaram as classes dominantes a pôr em liberdade os communards que o governo ainda mantinha presos.
Honram a memória dos combatentes da Comuna não só os operários franceses, senão também o proletariado de todo o mundo, pois ela não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos. Como combatente de vanguarda da revolução social, a Comuna ganhou a empatia onde quer que o proletariado sofra e lute. A epopeia de sua vida e de sua morte, o exemplo de um governo operário que conquistou e reteve em suas mãos durante mais de dois meses a capital do mundo e o espetáculo da heróica luta do proletariado e seus padecimentos depois da derrota têm levantado até hoje a moral de milhões de operários, têm alentado suas esperanças e têm conquistado sua simpatia para o socialismo. O troar dos canhões de Paris despertou de seu sono profundo às camadas mais atrasadas do proletariado e deu um impulso à propaganda socialista revolucionária em todas as partes. Por isso não morreu a causa da Comuna, por isso segue vivendo até hoje em cada um de nós.
A causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E, nesse sentido, é imortal.
Sobre os autores
Vladimir Lênin
foi um dos principais revolucionários comunistas do século XX e teórico político russo que serviu como chefe de governo da Rússia Soviética de 1917 a 1924 e da União Soviética de 1922 até sua morte.
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A comuna de Baku
A maioria dos relatos sobre a Revolução Russa conta a história de uma cidade – Petrogrado, onde o regime Romanov colapsou em Fevereiro e os Bolcheviques chegaram ao poder em Outubro. Tão decisivas quanto os trabalhadores, mulheres, e soldados foram na capital, pessoas de toda a Rússia iniciaram seus próprios movimentos revolucionários ao longo desse ano.
Mil e quinhentas milhas ao sudeste, na cidade de Baku, etnia, religião e classe dividiram a população, alterando o curso da história e influenciando as decisões tomadas por líderes revolucionários. Em Baku, uma metrópole construída sobre o petróleo, outubro chegaria tarde.
Quando chegou, o Lênin caucasiano, Stepan Shahumian, tentou conquistar o poder para o povo de forma democrática e não-violenta. A história da Comuna Baku construída por ele fornece uma importante perspectiva sobre a Revolução Russa e a guerra civil subsequente.
Cidade do Petróleo
O petróleo fez de Baku a maior cidade do Cáucaso sul, um oásis cosmopolita de trabalhadores cercado na maior parte por vilas de camponeses muçulmanos. Na virada do século XX, ela produzia mais petróleo que os Estados Unidos inteiro. A despeito das condições de vida e trabalho miseráveis, imigrantes necessitados se aglomeravam nos campos de petróleo a procura de trabalho.
Baku passou a ser não somente o centro da revolução industrial da Rússia imperial, como também um caldeirão para o movimento operário. O primeiro acordo de negociação coletiva entre trabalhadores e indústria foi assinado lá, em 1904, e a cidade serviu de refúgio para os socialdemocratas, particularmente os Bolcheviques como Joseph Stalin, quando suas organizações foram destruídas em outras cidades menos hospitaleiras.
As distinções de classe e etnia se entrecruzavam em Baku. Investidores estrangeiros e engenheiros estavam no topo da hierarquia social ao lado de industriais armênios e russos, bem como de proprietários de embarcações do Azerbaijão. Trabalhadores russos e armênios ocupavam as posições mais qualificadas, enquanto a força de trabalho não-qualificada era composta por muçulmanos. Sendo os trabalhadores mais transitórios e vulneráveis, eles acabavam fazendo os trabalhos mais sujos.
A relação de exploração do império com o Cáucaso não podia ser mais evidente do que em Baku, onde acumular as receitas oriundas do petróleo superava todas as outras preocupações. A elite proprietária — isto é, armênios e russos — manejava o governo da cidade, enquanto o bem-estar das classes baixas era relegado à caridade privada. As instituições políticas tinham muitos poucos representantes não-cristãos e o regime proclamava a lei marcial e estado de emergência frequentemente, comprometendo a confiança depositada no governo local e no estado de direito.
Tanto as pessoas comuns como as classes dominantes queriam uma reforma, mas o czar não ofereceu praticamente nenhuma via institucional para uma mudança efetiva. A situação demandava organização extralegal e os militantes revolucionários, que eram poucos numericamente, forneceram a liderança e direção possíveis.
Socialdemocratas e Socialistas Revolucionários (SRs) destacaram muitas vezes que os trabalhadores de Baku, divididos por qualificação, taxa de remuneração e etnia, se preocupavam mais com salários do que com política. Felizmente, as companhias petroleiras estavam especialmente dispostas a garantir concessões para manter sua força de trabalho, principalmente a sua mão de obra qualificada.
Ao focar em benefícios econômicos, a greve geral de dezembro de 1904 ganhou a jornada de trabalho diária de oito a nove horas, melhoras significativas nos salários e auxílio-doença — um acordo tão bom que ganhou o apelido de Constituição do petróleo não-refinado.
Depois que o czar Nicholas II publicou seu “Manifesto de Outubro” em 1905, garantindo a seu povo direitos civis limitados e eleições para a Duma, Baku formou um Soviete de Delegados Operários, um dos muitos conselhos que articularam demandas dos trabalhadores no final daquele ano revolucionário.
Mas os trabalhadores continuaram a se concentrar em seus interesses econômicos e evitar a política. Shahumian lamentava: “Em geral, os trabalhadores aqui são um grupo terrivelmente mercantilista. Eles estão pensando e falando sobre uma nova greve econômica para arrebatar outro gordo acordo e aumentar os ‘bônus’”.
Apesar dos esforços implacáveis da polícia, os revolucionários mantiveram sua presença, ainda que discreta, mesmo depois de 1905, quando o regime czarista reprimiu o movimento operário e forçou muitos radicais para fora da política ou para o exílio. O trabalho deles culminou em uma forte greve de quarenta mil trabalhadores em 1914, logo quando se formava a máquina de guerra russa.
Esses sucessos mascaravam a tensão que fervilhava bem abaixo da superfície. Os trabalhadores qualificados, de maioria russa e armênia, entraram nos sindicatos e assimilaram a mensagem socialdemocrata, enquanto os muçulmanos só se engajavam em protestos e greves de forma relutante.
Expectadores se referiam de maneira condescendente aos “tártaros”, como eram chamados, chamando-os de temnye (escuro) ou nesoznatel’nye (politicamente inconsciente). Muitos trabalhadores muçulmanos se mantinham ligados às suas vilas e aos seus líderes religiosos. Ainda que um número pequeno de intelectuais muçulmanos pregasse o socialismo e o nacionalismo, a maioria deles, no Cáucaso, não se interessava por política.
As divisões étnicas e religiosas em Baku atingiram o ápice em fevereiro de 1905, quando as tensões entre armênios e muçulmanos irromperam em tumultos e matança interétnica. Os muçulmanos, alarmados por rumores de que armênios estavam pegando em armas, atacaram antes. A polícia e os soldados permanecerem inertes.
A Federação Revolucionária Armênia (Dashnaks), um partido nacionalista formado uma década antes para defender armênios no Império Otomano, usou seus soldados para proteger a comunidade. Socialdemocratas e liberais denunciaram a inércia do governo, acusando o alto escalão do funcionalismo de promover um massacre. Acabada a violência, as hostilidades permaneceram acesas e, na véspera da 1ª Guerra Mundial, a população temia que outro surto de violência fosse iminente.
Baku entre duas revoluções
Assim como a maioria da Rússia, Baku teve um breve período de lua de mel entre fevereiro e março de 1917. O burguês Comitê Executivo de Organizações Públicas (IKOO) colaborou com o recém-eleito Soviete de trabalhadores e seu presidente, o Bolchevique Shahumian. Com o Exército russo avançando sobre a Anatólia otomana, a unidade no front doméstico soava indispensável, mas as hostilidades social e étnica anteriores continuavam a ameaçar a paz da cidade.
Do mesmo modo que em Petrogrado, em Baku havia dois centros de governo — o IKOO e o Soviete de Baku — e ambos disputavam a influência entre a população e o controle da cidade. O IKOO era composto por tecnocratas — advogados, funcionários públicos e intelectuais liberais — enquanto socialdemocratas revolucionários (Bolcheviques e Mencheviques), SRs e os Dashnaks lideravam o Soviete. Trabalhadores e soldados russos apoiavam o Soviete junto de um segmento da comunidade armênia, mas, até o verão de 1917, os muçulmanos em geral não participavam.
Os tecnocratas e liberais do IKOO viam os Bolcheviques como inimigos da lei e da ordem, os precursores da anarquia. A maioria de SRs do Soviete de Baku apoiava as posições moderadas sobre a guerra e a paz social vindas do Soviete de Petrogrado: eles defendiam a unidade de “todas as forças vitais da nação” e a paz democrática sem anexações ou reparação.
A maioria dos Bolcheviques apoiou essas posições durante a primavera, mas Shahumian tinha ideias mais radicais. Ele acreditava que a revolução democrático-burguesa de Fevereiro era “o prelúdio da revolução social na Europa, sob a influência da qual a primeira se tornaria revolução social.”
Além disso, a posição resoluta anti-guerra de Shahumian era um anátema para os soldados de Baku. Os Dashnaks, que temiam que uma retirada colocaria em risco os armênios otomanos e até levar a uma invasão turca do Cáucaso, rejeitaram a linha Bolchevique. Em resposta a isso, soldados russos que apoiavam os SRs depuseram Shahumian da presidência do Soviete em maio.
No entanto, assim como nas capitais do Norte e em vários fronts, a revolução em Baku se moveu para a esquerda ao final da primavera e no verão de 1917. As condições econômicas pioraram e a mal concebida ofensiva de junho de Alexander Kerensky indispôs os soldados.
Em Petrogrado, trabalhadores e marinheiros radicais tentaram organizar uma insurreição no começo de julho, esperando forçar o Soviete a tomar o poder. Eles não somente falharam, como colocaram por um breve momento os Sovietes de Baku e Petrogrado contra os Bolcheviques, que pareceram cúmplices da revolução frustrada.
Lênin escondeu-se na Finlândia e o recém Bolchevique Trótski foi preso. Shahumian e seu lugar-tenente, Alesha Japaridze, defenderam seus camaradas, mas os eventos na capital atingiram os Bolcheviques, que agora pareciam ser aventureiros irresponsáveis.
Esse sentimento se reverteu rapidamente em agosto, quando o general contrarrevolucionário, Lavr Kornílov, tentou dar um golpe contra o Soviete de Petrogrado. Enquanto isso, a fome rondava Baku, afetando particularmente os muçulmanos pobres. Os trabalhadores organizaram uma greve massiva e os barões do petróleo tiveram de relutantemente ceder, assinando o acordo.
Os Bolcheviques locais, na esteira da onda de descontentamento, clamaram por uma transferência pacífica do poder para os sovietes. Enquanto Lênin incitava desesperadamente seus camaradas a tomar o poder pela força, Shahumian conseguiu habilmente organizar novas eleições para o Soviete de Baku, aumentando a representação bolchevique. Mesmo sem conquistar a maioria para seu partido, o Soviete concorda em depor o IKOO e se declarar soberano.
O soviete de Baku, dominado por SRs, recusa apoio ao governo de Lênin. Outubro havia demonstrado que os Bolcheviques eram o principal, se não o hegemônico, partido em Baku, mas muitos temiam que uma tentativa de tomar o poder poderia ser a faísca para a explosão da guerra civil e étnica.
O soviete não havia conquistado pleno poder na cidade. Era ainda desafiado pela Duma da cidade e os socialistas moderados convocavam o retorno a um governo de coalizão de todas as classes.
Não havendo grupo nenhum no controle da cidade e com a desintegração do governo por todo o país, uma sensação de crise caiu sobre Baku. Os soldados começaram a bater em retirada, fugindo do front caucasiano e abrindo caminho para a invasão otomana.
Poder para o soviete
As eleições nacionais nos últimos meses de 1917 demonstravam o crescente poder da identificação étnica. Os Mencheviques georgianos venceram de maneira esmagadora nas províncias da Geórgia, enquanto o principal partido muçulmano, o Musavat, bem como os Dashnaks, dos armênios, venceram com folga em Baku e nos arredores. A revolução no sul do Cáucaso estava se transformando de um embate de classes em um conflito étnico e religioso.
Não havendo qualquer Exército russo entre elas e o império otomano, as comunidades armênias, georgianas e muçulmanas de Baku começaram a formar suas próprias milícias. Com atraso, o soviete formou sua Guarda Vermelha multinacional.
Os muçulmanos desarmaram soldados desertores e, num confronto singularmente trágico em Shamkhor, em janeiro de 1918, eles mataram milhares de russos. Esse evento demonstrou que os muçulmanos detinham a força militar mais efetiva da região, enquanto os otomanos, seus aliados em potencial, começaram a se deslocar para a fronteira de antes da guerra. Apesar do esforço de Shahumian para organizar uma revolução pacífica, eram os homens em armas que em breve decidiriam quem governaria Baku.
Dentro dos limites da cidade, as forças armênias e os muçulmanos haviam superado a Guarda Vermelha. As forças do Soviete formaram uma aliança tática com os Dashnaks contra os muçulmanos, que para muitos pareciam uma ameaça contrarrevolucionária.
Shahumian estava agora diante do conflito armado em três frentes: contra as forças anti-soviete dentro de Baku; em Tiflis, onde os Mencheviques haviam declarado a independência do Cáucaso sul da Rússia Bolchevique; e em Elizavetpol, uma cidade essencialmente muçulmana onde o confronto armado impedia a chegada de comida a Baku.
Quando, no final de março, um barco aportou com a Divisão de Ataque Muçulmana a bordo, a cidade explodiu em guerra. O soviete e as forças armênias enfrentam a população muçulmana na cidade, e a Guarda Vermelha volta sua artilharia para o bairro muçulmano. O que havia começado como um conflito muçulmanos-Soviete se transformou em um massacre anti-muçulmano indiscriminado.
Ao final da batalha, os muçulmanos fugiram da cidade e os armênios protestaram afirmando que o Soviete havia tratado os muçulmanos com muita clemência. Os bolcheviques sofreram com essas consequências, mas podiam exaltar que a cidade agora estava em suas mãos. “Nossa influência, a dos Bolcheviques, foi grande antes, mas agora nós somos os chefes da situação no sentido mais amplo do termo”, era o informe de Shahumian a Moscou.
Embora o poder do Soviete dependesse dos Dashnaks armados, os Bolcheviques de Baku formaram um novo governo composto apenas por seus membros e por SRs que os apoiavam, excluindo os SRs de direita, Mencheviques e Dashnaks. A Comuna Baku, com seu próprio Conselho de Comissários do Povo (Sovnarkom) e Comissariado de Assuntos Externos, estava agora em posição para transformar radicalmente a vida em Baku.
O experimento durou apenas noventa e sete dias, de abril a julho de 1918. Os Bolcheviques imaginavam o Soviete e seu Sovnarkom como uma combinação dos corpos Executivo e Legislativo, seguindo a visão de Marx sobre a Comuna de Paris de 1871.
A Comuna nacionalizou a indústria do petróleo, tentou reformar a educação e o Judiciário — apesar da resistência dos tecnocratas — e acreditava que poderia governar a cidade sem recorrer ao terror de Estado, ainda que jornais oposicionistas fossem fechados.
Em junho, Shahumian lançou uma ofensiva para prevenir um ataque muçulmano vindo de Elisavetpol. As lideranças da cidade discutiram um avanço sobre Tiflis, mas, quando as forças de Baku se aproximaram do rio Kura, soldados muçulmanos, georgianos e otomanos as fizeram recuar.
A cidade procurou desesperadamente aliados para prevenir a invasão otomana. Shahumian negociou com cossacos e com ingleses, mas Moscou o proibiu de autorizar que as tropas do General Dunsterville, lotadas nos arredores, entrassem na cidade.
Incapazes de aumentar o suprimento de comida e com apoio limitado dentre os trabalhadores de Baku e camponeses dos arredores, a base de apoio dos Bolcheviques se estreitou. Em 25 de julho o Soviete decidiu, por 259 votos a 236, convidar os britânicos para entrar.
Shahumian declarou: “Vocês ainda não encontraram a Inglaterra, mas já perderam o governo central da Rússia. Vocês ainda não encontraram a Inglaterra, mas vocês perderam a nós”. Seu governo renunciou, um governo não-Bolchevique foi formado e os ingleses chegaram.
No meio de setembro, com os otomanos prestes a tomarem a cidade, os líderes da Comuna de Baku decidiram sair, mas o navio que tripulavam foi desviado do porto seguro de Astrakhan para Krasnovodsk, onde SRs turcomenos prenderam os ex-comissários.
Vinte e seis revolucionários de Baku, a maioria bolchevique, foram levados para o deserto e executados. Em 1920, seus restos foram exumados e novamente sepultados como mártires soviéticos na praça central de Baku. Lá permaneceram por setenta anos, até que o governo pós-soviético do Azerbaijão destruiu o monumento em homenagem aos Comissários de Baku.
Derrota revolucionária
A história da revolução de Baku desmente muitos dos mitos que cercam os acontecimentos de 1917. Os Bolcheviques de Baku não eram conspiradores desterrados com ânsia de poder, mas militantes socialistas de longa data, com raízes profundas no movimento de trabalhadores da cidade. Eles agiram como democratas, buscando um caminho não-violento para o poder e quando perderam uma votação crucial no Soviete, deixaram pacificamente o governo. Embora tenham ganho o controle da cidade graças aos dias sangrentos de março, enquanto estiveram no poder os Bolcheviques de Baku não empregaram o terror contra seus inimigos.
Em última análise, eles não conseguiram superar as divisões étnicas e sociais da classe trabalhadora, resolver a crise dos alimentos, ou encontrar apoio para realizar uma campanha bem-sucedida contra seus inimigos.
Shahumian tentou encerrar a contrarrevolução em todo o Cáucaso enquanto também transformava Baku. Ele recusou-se a incluir os partidos socialistas mais moderados em seu governo até que eles reconhecessem o governo soviético de Moscou. Sua base era simplesmente muito estreita e a Comuna caiu quando os Bolcheviques perderam os trabalhadores cujas demandas não conseguiram satisfazer.
O destino dos vinte e seis comissários de Baku é irônico: moderados, democráticos, e largamente não-violentos, Shahumian, Japaridze e os outros foram vítimas, na guerra civil, de oponentes muito mais impiedosos.
Contrastando dramaticamente a isso, no final do verão de 1918, Bolcheviques russos e seus oponentes “Brancos” já haviam adotado a lógica da guerra, abandonando os ideais de governo democrático e utilizando o terror de Estado para derrotar seus inimigos. A esperança de que os sovietes socialistas e democráticos triunfariam morreu naquela luta terrível.
Sobre os autores
Ronald Suny
é professor de História da Universidade de Michigan, professor Emérito de Ciência Política e História da Universidade de Chicago e pesquisador Sênior da National Research University - Escola Superior de Economia de São Petersburgo, Rússia. Ele é o autor de The Baku Commune, 1917-1918: Class and Nationality in the Russian Revolution (Princeton University Press, 1972), entre muitas outras obras.
Os comunards eram mais do que belos mártires
O que devemos aprender com a experiência da Comuna de Paris? No final do século dezenove, essa era uma das principais perguntas enfrentadas pelos socialistas. Ainda que a Comuna tenha terminado em uma terrível derrota em maio de 1871, os communards executados foram celebrados como mártires que teriam caído na linha de frente da luta. E nas décadas depois de sua esmagadora derrota, socialistas e anarquistas obtiveram aprendizados do que eles levaram como uma experiência prática única.
Por volta do final do século dezenove na França, tanto os sobreviventes da Comuna (Louise Michel, Benôit, Édouard Vaillant) quanto aqueles que a apoiaram fora de Paris (como o futuro líder socialista Jules Guesde, em Montpellier durante a primavera de 1871) tiveram um papel enorme no curso que das múltiplas tendências do socialismo francês. A memória da Comuna também foi mantida viva por militantes para além da França, através das comemorações de 18 de março, todo ano celebrando as ações gloriosas dos communards. De Berlim a Moscou, de Londres a Budapeste, e logo após até mesmo em Tokyo e Shangai, a palavra “Comuna” significou a revolução de Paris e os heróicos communards que morreram em combate.
O aniversário da Comuna foi marcado com uma cerimônia especial na Alemanha, onde os Sociais Democratas (SPD) tinham se tornado o partido de trabalhadores mais forte da Europa por volta de 1880. Na verdade, essa data tem um significado singular em Berlim. A história da Comuna de Paris era intrinsecamente conectada com a Guerra Franco-Prussiana; a maioria dos communards deixaram o seu patriotismo, com o chamado de defender a França, e a própria Paris, junto com objetivos sociais mais claros. Esse conflito internacional fez as demonstrações de solidariedade alemãs – organizada pelos fundadores da Social Democracia, Wilhelm Liebknecht e August Bebel – ainda mais heróicas.
Coincidentemente, 18 de março invocou não somente o começo do levante parisiense em 1871, mas também as barricadas erguidas em Berlim em 1848. Essa data ao mesmo tempo proporcionou aos militantes uma oportunidade de celebrar a herança revolucionária dos dois países. Cada uma dessas revoltas terminou em derrota – e vitória para as forças da contrarrevolução. Mas eles também marcaram um caminho para o futuro e a base para uma nova sociedade.
Em uma era em que as classes dominantes de ambos países estavam cultivando um calvinismo agressivo, a comemoração desse aniversário, tanto francês quanto alemão, foi uma das primeiras tentativas concretas de construir uma cultura internacionalista. Essa não foi meramente uma proposta teórica: as marchas gigantes que os alemães e os sociais democratas austríacos organizaram em Berlim e Viena (e em muitas outras cidades industriais), em 1898 para marcar os 50 anos de 1848, também honraram a experiência francesa.
Tais eventos mostram o quanto os militantes eram envolvidos com essa memória compartilhada. Assim, seria errado considerar essas demonstrações como um simples apelo de levantar barricadas como em 1871. Pois a Comuna de Paris também proporcionou uma experiência de derrota, que os socialistas tinham que aprender.
Uma crítica da Comuna?
Em A Guerra civil na França, Marx tinha considerado a Comuna como uma experiência política de um novo tipo. Sua solidariedade foi ainda mais profunda, dado que os comunnards haviam sido esmagados impiedosamente (ele escreveu esse texto logo depois do fim do levante). Mas, enquanto a contribuição dos communards não estava em xeque, uma vez que a situação foi se acalmando, Marx e Engels também se mostraram preparados para criticar alguns métodos da Comuna.
Por exemplo, em 14 de janeiro, 1871, Engels escreveu para o seguidor de Bakunin italiano Carlo Terzaghi (que depois foi descoberto que era um informante da polícia) que “se tivesse tido um pouco mais de autoridade e centralização na Comuna de Paris, ela teria triunfado sobre a burguesia… e quando as pessoas me dizem isso… essas são duas coisas a serem totalmente condenadas, me parece que aqueles que falavam assim ou não sabem o que uma revolução é, ou são revolucionários apenas de nome.” Nesse sentido, indo contra contra alguns trechos em A Guerra civil na França que basicamente se inclinava mais em direção à descentralização, Engels insistiu que qualquer revolução política ausente de autoridade centralizada estava fadada ao fracasso.
Alguns anos depois, o próprio Marx ofereceu uma análise crítica da experiência. Em 22 de fevereiro de 1881, ele escreveu para o holandês Ferdinand Domela Nieuwenhuis: “Tirando o fato que esse foi meramente um levante de uma cidade em condições excepcionais, a maioria da Comuna não era em nenhum sentido, socialista, nem poderia ser. Com uma pequena quantidade de senso comum, entretanto, eles poderiam ter atingido um acordo com Versalhes, útil o bastante para toda a massa de pessoas – a única coisa que poderia ser alcançada na época. A apropriação do Banco da França sozinha teria sido suficiente para dissolver todas as pretensões da corte aterrorizada de Versalhes, etc., etc.”
Em 29 de outubro de 1884, numa carta para Bebel, Engels foi ainda mais abrupto: “enquanto a Comuna foi o túmulo do jovem socialismo especificamente francês, foi também ao mesmo tempo, para a França, o berço do novo comunismo internacional.” Ainda, em outros textos, a Comuna continuou sendo exemplo. Em um prefácio de 1891 para A Guerra civil na França, Engels concluiu que a Comuna tinha sido um exemplo da “ditadura do proletariado” – a ditatura da maioria trabalhadora sobre a minoria de exploradores. Então, a Comuna foi sem dúvida algo a ser celebrado, mas foi também um modelo ou uma experiência que os socialistas tinham que ultrapassar??
Dez anos depois do prefácio (e por conseguinte a morte de Engels em 1895), em 1901, o genro de Marx, Charles Longuet (marido da filha de Marx, Jenny) publicou uma nova edição dos textos de Marx, com uma mudança notória no título: A Guerra civil na França era agora A Comuna de Paris. Longuet claramente buscou evitar a referência da “guerra civil” e, ao invés, promover uma perspectiva gradualista dentro das fileiras socialistas.
De fato, nesse ponto uma importante tendência em diversos partidos socialistas estava levantando questionamentos sobre a estrada revolucionária para o socialismo que a maioria havia seguido anteriormente. O principal representante dessa corrente foi o alemão Eduard Bernstein, cujo texto de 1899, The Preconditions of Socialism desaprovava a popularidade da tradição “blanquista” (nomeada em homenagem a Louis Auguste Blanqui, com quem muitos dos communards tinham muito próximos). Bernstein também montou um ataque mais amplo contra a tradição revolucionária francesa de 1793 até 1871; ele clamava que era tempo de pôr um fim a esse espírito insurrecional que, ele alegava, prejudicava o desenvolvimento gradual do socialismo organizado.
O que poderia explicar tal mudança? Primeiro, é importante enfatizar que uma grande parte do movimento dos trabalhadores rejeitava a perspectiva de Bernstein, de Jules Guesde a Rosa Luxemburgo. Entretanto, sem dúvida, desde 1871 o contexto político mudou bastante. Na virada para o século XX, o movimento dos trabalhadores construiu seus próprios partidos, sindicatos e cooperativas. O sufrágio universal masculino foi aprovado em diversos países europeus. Então, seria possível conquistar o poder por outros meios, legais?
Um exemplo ilustrativo seria Jean Jaurés, que, junto com Guesde, era um dos principais fundadores do partido socialista unificado francês, em 1905. Ele foi ousado ao celebrar as conquistas da Comuna, principalmente nos âmbitos sociais e políticos. Porém, no aniversário celebrado em 18 de março de 1907, em sua coluna para o L’Humanité (com o título “Ontem e Amanhã”) ele argumentava que ” mesmo se a Comuna de Paris tivesse sido vitoriosa ela não teria sido capaz de mudar fundamentalmente a sociedade… poderia talvez, avançar o desenvolvimento da Terceira República em 10 anos, mas não teria feito o socialismo brotar do chão.”
Jaurés enfatizou que os socialistas tinham que levar em consideração outras duas realidades importantes: o sufrágio universal – permitindo ao partido socialista conquistar posições dentro da sociedade existente – e a greve geral (um dos principais meios de ação dos sindicatos da Confederação Geral do Trabalho – CGT, que permitiu que o proletariado organizasse uma ação ofensiva coordenada que, entretanto, permaneceu distante de uma insurreição desesperada). Em suma, enquanto Jaurés aclamava os “esforços heróicos” dos communnards, era necessário encontrar outros caminhos para serem percorridos.
Alguns antigos communards, como Benoit Malon, estavam entre os criadores do reformismo socialista. Dez anos depois dos eventos de Paris, em 1881 Malon invocou a Comuna de Paris afim de exaltar a política concreta que poderia ser feita no nível municipal – em francês, communal – “visto nesses termos, a questão communal é mais da metade das questões sociais.”
E atrás dele, uma corrente inteira do socialismo francês – incluindo Albert Thomas, futuro Ministro da Defesa durante a I Guerra Mundial – colocaram suas esperanças nesta perspectiva “municipalista”. Através desses homens, um “socialismo reformista” tomou forma, com a ascensão da ideia de uma República que provesse serviços públicos. Eles homenagearam os mártires insurgentes da Comuna, mas pegaram apenas algumas medidas concretas desta experiência – assim esvaziando-a de um conteúdo definitivamente mais subversivo.
Indo além da Comuna?
Qualquer que sejam as diferenças entre as correntes socialistas, todas mais ou menos concordam que precisam de mais organização, a fim de permitir a superação das falhas da Comuna.
Esse fato não deve ser banalizado. De fato, colocado no contexto apropriado, o sucesso da “forma partido” movimento socialista do fim do século XIX devia muito aos aprendizados da Comuna. Os revolucionários parisienses de 1871 foram homenageados por terem mostrado o caminho. Mas era também urgentemente necessário ir além do que a Comuna foi, e considerar uma abordagem diferente que poderia evitar novas derrotas. Se não fosse pelo trauma de 1871, não está nada claro que correntes socialistas como os Bolcheviques russos e os Guedistas franceses teriam teorizado – e posto em prática –formas tão estruturadas e hierárquicas de organização.
O Bolchevismo, em particular, provavelmente não teria tomado a forma que tomou se não fosse a experiência da Comuna. Enquanto em 1880 alguns tinham tirado a lição de que era necessário evitar qualquer ruptura violenta, outros insistiram na necessidade de conquistar o aparato estatal e usá-lo contra os inimigos da revolução. O exemplo da Comuna, portanto, moldou a identidade da esquerda do movimento socialista internacional.
Lenin mostrou sua intensa admiração pela tentativa ousada da Comuna. Mas ele queria que a futura “ditadura do proletariado” (da qual Marx e Engels falaram sobre) adotasse meios adequados para sua política revolucionária, afim de evitar novas “semanas sangrentas” e mais derrotas do proletariado. Ainda enquanto ele era um crítico dos métodos da Comuna, ele também se baseou nessa experiência para definir a “democracia do proletariado” no seu O Estado e a Revolução, escrito alguns meses antes da insurreição de outubro de 1917. Do A Guerra Civil na França de Marx ele tirou a ideia de “esmagar o Estado”, a fim de lutar contra a “burocracia”.
Tiremos aprendizados da ousadia revolucionária dos Communards; vejamos nas suas medidas práticas o esboço de ações urgente e imediatamente possíveis, e então, seguindo esse caminho, nós iremos atingir a destruição completa da burocracia.
Quando o poder soviético tinha durado um dia a mais que a Comuna de Paris, Lenin celebrou a passagem de um marco chave para a Revolução Russa. A experiência parisiense foi profundamente discutida e estudada na Rússia jovem soviética: mesmo com todos seus limites, a comuna não tinha mostrado o caminho, em diversos aspectos?
O jovem movimento comunista adotou temas da Comuna, como “democracia do proletariado”, controle dos trabalhadores, progresso educacional, e a luta contra o obscurantismo religioso. De 1917 em diante, a Comuna foi comemorada mais intensamente porque pareceu para toda uma geração de militantes, de todas tendências, como o evento que tinha anunciado os novos tempos.
É bem menos claro quais aspectos da Comuna continuam a inspirar o movimento socialista hoje, e quais são considerados fora da nossa realidade contemporânea. Nesse sentido, os debates estratégicos que Jaurés e Lenin lançaram – centrados na Comuna, no Estado e nas formas de mudanças sociais e políticas – estão ainda em andamento. Na verdade, eles complementaram as reflexões e ideias dos atores do período que imediatamente sucedeu a Comuna.
Hoje, historiadores tendem a olhar para a Comuna como uma experiência por si só, distinta do amplo curso do movimento revolucionário. Essa é uma abordagem legitimamente perfeita – nos permitindo um entendimento dos Communards como atores e suas motivações. Mas ainda assim seria errado ignorar as interpretações e disputas que se alastraram no movimento dos trabalhadores nas décadas subsequentes, tomando 1871 como um ponto de partida. Pois os debates em relação à Comuna levantaram grandes questões políticas perante qualquer projeto de transformação social – problemas que ainda estão longe de serem resolvidos.
Este artigo também foi publicado em francês no l’Humanité e no site da Fondation Gabriel Péri.
Sobre os autores
Jean-Numa Ducange
é professor na Universidade de Rouen e autor de Jules Guesde: The Birth of Socialism and Marxism in France (Palgrave, 2020) e Quand la Gauche pensait la Nation: Nationalités et socialismes à la Belle-Époque (Fayard, 2021).
Derrubar estátuas não apaga a história, faz com que a vejamos com mais clareza
O antirracismo é uma batalha pela memória. Essa é uma das características mais marcantes da onda de protestos que surgiu em todo o mundo após o assassinato de George Floyd em Minneapolis. Em todos os lugares, os movimentos antirracistas colocam o passado em questão, visando monumentos que simbolizam o legado da escravidão e do colonialismo: o general confederado Robert E. Lee, na Virgínia; Theodore Roosevelt na cidade de Nova York; Christopher Columbus em muitas cidades dos EUA; o rei belga Leopoldo II em Bruxelas; o comerciante de escravos Edward Colston em Bristol; Jean-Baptiste Colbert, ministro das Finanças de Luís XIV e autor do famoso Código Noir na França; o pai do jornalismo italiano moderno e ex-propagandista do colonialismo fascista, Indro Montanelli, e assim por diante.
Quer sejam derrubadas, destruídas, pintadas ou grafitadas, essas estátuas simbolizam uma nova dimensão da luta: a conexão entre direitos e memória. Eles destacam o contraste entre o status dos negros e os sujeitos pós-coloniais como minorias estigmatizadas e brutalizadas, e o lugar simbólico dado no espaço público a seus opressores – um espaço que também compõe o ambiente urbano de nossas vidas cotidianas.
Explosões de iconoclastia
É sabido que as revoluções possuem uma “fúria iconoclasta”. Seja espontânea, como a destruição de igrejas, cruzes e relíquias católicas durante os primeiros meses da Guerra Civil Espanhola, ou mais cuidadosamente planejada, como a demolição da Coluna Vendôme durante a Comuna de Paris. Essa explosão de iconoclastia molda qualquer derrocada da ordem estabelecida.
O diretor de cinema Sergei Eisenstein estreou com Outubro, sua obra-prima da Revolução Russa, com imagens da multidão derrubando uma estátua do czar Alexandre III e, em 1956, os insurgentes de Budapeste destruíram a estátua de Stalin. Em 2003 – como uma confirmação ivoluntarimente irônica dessa regra histórica – as tropas norte-americanas organizaram a queda de uma estátua de Saddam Hussein em Bagdá, com a cumplicidade de muitas estações de televisão ocidentais, na tentativa de disfarçar sua ocupação como um levante popular.
Ao contrário desse caso, sempre que a iconoclastia dos movimentos de protesto é autêntica, ela infalivelmente provoca reações indignadas. Os comunardos foram descritos como “vândalos” e Gustave Courbet, um dos responsáveis por derrubar a coluna, jogado na prisão. Quanto aos anarquistas espanhóis, eles foram condenados como bárbaros ferozes.
Um ultraje semelhante floresceu na Inglaterra. Boris Johnson ficou escandalizado quando o título “racista” foi inscrito em uma estátua de Churchill – um fato para o qual existe consenso acadêmico, vinculado aos debates atuais sobre a caracterização que ele dava aos africanos e sua responsabilidade pela fome de Bengala em 1943.
Emmanuel Macron se queixou com raiva de uma iconoclastia semelhante em uma mensagem à nação francesa que – de maneira reveladora – nunca mencionou as vítimas do racismo: “Esta noite, digo-vos muito claramente, meus queridos concidadãos, que a República não apagará nenhum vestígio ou quaisquer figuras de sua história. Não esquecerá nenhuma de suas realizações. Não derrubará nenhuma estátua.”
Na Itália, o lançamento de tinta vermelha sobre uma estátua de Indro Montanelli em um jardim público de Milão foi denunciado por unanimidade como ato “fascista” e “bárbaro” por todos os jornais e meios de comunicação, com exceção do Il Manifesto. Ferido na década de 1970 por militantes de esquerda, Montanelli foi canonizado como um heroico defensor da democracia e da liberdade.
Após a “ofensa covarde” infligida à sua estátua pelos atiradores de tinta, um editorialista do Corriere della Sera insistiu que esse herói deveria ser lembrado como uma figura “sagrada”. No entanto, esse ato “bárbaro” mostrou-se proveitoso ao revelar a muitos italianos quais foram as realizações “sagradas” de Montanelli: na década de 1930, quando ele era um jovem jornalista, ele comemorou o império fascista e suas hierarquias raciais; enviado à Etiópia como correspondente de guerra, ele imediatamente comprou uma menina da Eritreia com 14 anos para satisfazer suas necessidades sexuais e domésticas.
Para muitos comentaristas, esses eram os “costumes da época” e, portanto, qualquer acusação de apoiar o colonialismo, o racismo e o sexismo é injusta. No entanto, ainda na década de 1960, Montanelli condenou a miscigenação como fonte de decadência civilizacional, com argumentos tirados diretamente do Essay on the Inequality of the Human Races de Arthur Gobineau, de 1853-55.
Estes eram, de fato, os mesmos argumentos vigorosamente defendidos pelo KKK em sua oposição ao movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos durante o mesmo período. Contra todas as evidências, o pai espiritual de duas gerações do jornalismo italiano negou veementemente que o exército fascista tivesse conduzido ataques de gás durante a Guerra da Etiópia. Os “bárbaros” de Milão desejavam nos lembrar desses fatos simples.
É interessante observar que a maioria dos líderes políticos, intelectuais e jornalistas indignados com a atual onda de “vandalismo” nunca expressou uma indignação semelhante pelos repetidos episódios de violência policial, racismo, injustiça e desigualdade sistêmica contra os manifestantes.
Muitos deles até elogiaram um dilúvio diferente 30 anos atrás, quando as estátuas de Marx, Engels e Lenin foram derrubadas na Europa Central. Enquanto a perspectiva de viver entre esses tipos de monumentos é intolerável e sufocante, eles se orgulham das estátuas de generais confederados, comerciantes de escravos, reis genocidas, arquitetos da supremacia branca e propagandistas do colonialismo fascista que constituem o legado patrimonial das sociedades ocidentais. Como eles insistem, “não apagaremos nenhum vestígio ou figura de nossa história”.
Na França, derrubar os vestígios monumentais do colonialismo e da escravidão é geralmente descrito como uma forma de “comunitarismo” – uma palavra que atualmente tem um senso pejorativo, já que implicitamente significa que esses vestígios incomodam exclusivamente os descendentes de escravos e os colonizados, e não a maioria branca que fixa as normas estéticas, históricas e memoriais que emolduram o espaço público. Muitas vezes o suposto “universalismo” da França possui um gosto desagradável de “comunitarismo branco”.
Assim como seus ancestrais, a “fúria iconoclasta” que atualmente varre as cidades em escala global faz reivindicações de novas normas de tolerância e coexistência civil. Longe de apagar o passado, a iconoclastia antirracista carrega uma nova consciência histórica que afeta inevitavelmente a paisagem urbana. As estátuas contestadas celebram o passado e seus atores, um simples fato que legitima sua remoção. As cidades são corpos vivos que mudam de acordo com as necessidades, valores e desejos de seus habitantes, e essas transformações são sempre o resultado de conflitos políticos e culturais.
Derrubar monumentos que comemoram os governantes do passado confere uma dimensão histórica às lutas contra o racismo e a opressão no presente. Significa provavelmente ainda mais que isso. É outra maneira de se opor à gentrificação de nossas cidades que implica a metamorfose de seus distritos históricos em locais reificados e fetichizados.
Uma vez que uma cidade é classificada como “patrimônio mundial” pela UNESCO, ela está fadada a morrer. Os “bárbaros” que derrubam estátuas protestam implicitamente contra as atuais políticas neoliberais que expulsam simultaneamente as classes mais baixas dos centros urbanos e as transformam em vestígios congelados. Os símbolos da antiga escravidão e do colonialismo se combinam com a aparência deslumbrante do capitalismo imobiliário – e esses são os alvos dos manifestantes.
A visão dos vencidos
De acordo com um argumento mais sofisticado e perverso, a iconoclastia antirracista expressa um desejo inconsciente de negar o passado. Por mais opressivo e desagradável que o passado seja, alguns argumentam, ele não pode ser mudado. Isto é certamente verdade. Mas trabalhar com o passado – particularmente um passado feito de racismo, escravidão, colonialismo e genocídios – não significa celebrá-lo, como a maioria das estátuas derrubadas.
Na Alemanha, o passado nazista está predominantemente presente nas praças e ruas da cidade através de memoriais que celebram suas vítimas em vez de seus perseguidores. Em Berlim, o Memorial do Holocausto foi erguido como um aviso para as gerações futuras (das Mahnmal). Os crimes da SS não são lembrados através de uma estátua celebrando Heinrich Himmler, mas sim através de uma exposição interna e externa chamada “Topografia do Terror”, que fica no local de um antigo escritório da SS.
Não precisamos de estátuas de Hitler, Mussolini e Franco para lembrar de seus crimes. É exatamente pelo fato de os espanhóis não esqueceram o franquismo que o governo de Pedro Sánchez decidiu remover os restos mortais do Caudillo de seu túmulo monumental. É apenas dessacralizando o Vale dos Caídos que este monumento fascista pode ser consignado no reino da memória de uma sociedade democrática que não se esquece.
É por isso que é profundamente enganador atribuir nossa iconoclastia antirracista atual às intenções da antigo damnatio memoriae (condenação da memória). Na Roma antiga, essa prática visava eliminar as comemorações públicas de imperadores ou outras personalidades cuja presença colidisse com novos governantes. Eles tinham que ser esquecidos.
O apagamento de Leon Trotsky dos quadros oficiais soviéticos sob o stalinismo foi outra forma de damnatio memoriae e foi inspiração para o 1984 de George Orwell. No estado fictício da Oceania, ele escreveu, o passado foi completamente reescrito: “Estátuas, inscrições, marcos comemorativos, os nomes das ruas – qualquer coisa que pudesse lançar luz sobre o passado havia sido sistematicamente alterado.”
Esses exemplos são comparações enganosas, porque se referem ao apagamento do passado pelos poderosos. No entanto, a iconoclastia antirracista visa libertar o passado de seu controle, repensando-o do ponto de vista dos governados e vencidos, não pelos olhos dos vencedores.
Sabemos que nosso patrimônio arquitetônico e artístico está sobrecarregado com o legado da opressão. Como diz um famoso aforismo de Walter Benjamin: “Não há nenhum documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. Quem derruba estátuas não é um niilista cego: não deseja destruir o Coliseu ou as pirâmides.
Em vez disso, eles preferem não esquecer que, como Bertolt Brecht apontou, esses monumentos notáveis foram construídos por escravos.
Edward Colston e Leopold II não serão esquecidos: suas estátuas deveriam ser conservadas em museus e com curadoria de forma que não se explique apenas quem eles eram e suas realizações extraordinárias, mas também por que e como suas pessoas se tornaram exemplos de virtude e filantropia, objetos de veneração – em suma, a encarnação de sua civilização.
Onda global
Essa onda de iconoclastia antirracista é global e não admite exceções. Italianos (incluindo ítalo-americanos) e espanhóis têm orgulho de Colombo, mas as estátuas do homem que “descobriu” as Américas não têm o mesmo significado simbólico para os povos indígenas.
Tal iconoclastia reivindica legitimamente um reconhecimento público e inscrição de sua própria memória e perspectiva: uma “descoberta” que inaugurou quatro séculos de genocídio. Em Fort-de-France, capital da Martinica, duas estátuas de Victor Schœlcher – tradicionalmente celebradas pela República Francesa como um símbolo da abolição da escravidão em 1848 – foram derrubadas em 22 de maio. Como o jornal de direita Le Figaro nos conta: “Os novos censores acreditam que possuem a verdade e são os guardiões da virtude”.
De fato, os “novos censores” (i.e. jovens ativistas antirracistas) desejam virar a página da tradição paternalista e sutilmente racista do “universalismo” francês. Sempre retratou a abolição da escravidão como um presente para os escravos pela República iluminada – uma tradição bem resumida por Macron no discurso citado acima.
Os “novos censores” compartilham a avaliação de Frantz Fanon, que analisou esse clichê em seu livro de 1952, Pele Negra, Máscaras Brancas: “O negro contentou-se em agradecer ao branco e a prova mais brutal disso é o número impressionante de estátuas disseminadas pela França e pelas colônias, representando a França branca acariciando a cabeleira crespa do bom preto, cujos grilhões foram quebrados.”
Trabalhar com o passado não é uma tarefa abstrata ou um exercício puramente intelectual. Pelo contrário, requer um esforço coletivo e não pode ser dissociado da ação política. Este é o significado da iconoclastia desses últimos dias. Embora tenha surgido dentro de uma mobilização antirracista global, o terreno já havia sido preparado por anos de compromisso contra-memorial e pesquisa histórica promovida por uma multidão de associações e ativistas.
Como toda ação coletiva, o iconoclastia merece atenção e críticas construtivas. Estigmatizar com desprezo é apenas fornecer desculpas para uma história de opressão.
Sobre os autores
Enzo Traverso
leciona na Universidade de Cornell. Seu livro mais recente é Left-Wing Melancholia: Marxism, History, and Memory.
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