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A comunicadora de Ciência Joana Lobo Antunes, em entrevista à VISÃO
Quase no final da conversa, Joana Lobo Antunes haveria de confessar que o seu primeiro instinto foi recusar dar esta entrevista. No entanto, tinha acabado de dizer a várias cientistas do sexo feminino que, mesmo se estivessem assoberbadas, deviam aceitar falar com jornalistas. Afinal, ainda são precisas mais investigadoras na esfera pública, até para motivar as jovens aspirantes. Além de dar aulas de Comunicação de Ciência na Universidade Nova de Lisboa, Joana Lobo Antunes é também coordenadora da área de Comunicação, Imagem e Marketing do Instituto Superior Técnico.
O programa radiofónico 90 Segundos de Ciência (Antena 1), do qual é cocriadora, conquistou o Prémio Gulbenkian de Conhecimento de 2019. Filha do escritor António Lobo Antunes, revela que a influência do avô paterno, João Alfredo Lobo Antunes, foi determinante na sua paixão pela Ciência, que a levou a doutorar-se em Química.
Aos 47 anos, a ainda fundadora da Rede de Comunicação de Ciência e Tecnologia de Portugal explica como se pode combater a desinformação, admite as dificuldades de dialogar com quem nega evidências científicas e aponta os principais erros de comunicação cometidos durante a pandemia. Sempre sem o jargão científico, do qual ajuda os cientistas a libertar-se.
A pandemia aproximou os cidadãos da Ciência?
Adorava poder dizer que sim, mas a verdade é que não tenho a certeza de que isso tenha acontecido. Com a pandemia, as pessoas passaram a assistir ao processo científico em direto e isso, em vez de as ter ajudado a compreender como funciona a Ciência, trouxe-lhes uma instabilidade tremenda. Toda a gente queria respostas mas, quando está a ser feita, a Ciência muitas vezes não tem respostas, sobretudo quando surge uma questão nova, como aconteceu com a Covid-19. Não sei se fomos bem-sucedidos a explicar às pessoas que a investigação se faz por tentativa e erro.
Como se deve comunicar a incerteza inerente à Ciência sem causar demasiada ansiedade nas pessoas?
Quando comunicamos a incerteza ao nível da saúde é impossível não causarmos alguma ansiedade. As pessoas têm de aprender a viver com uma certa dúvida, um certo risco, também é isso que nós vivemos na investigação científica. E é exatamente essa adrenalina de entrar num terreno inexplorado que é entusiasmante na Ciência. Consigo perceber que, para as outras pessoas, essa ansiedade seja má, mas a única maneira de ajudá-las a lidar com isso é repetindo, muitas vezes, que enfrentar o desconhecido para procurar respostas faz parte do processo científico.
A pandemia parece ter exacerbado o discurso contra a Ciência. Qual a origem desse fenómeno?
O discurso anticiência já existia, e vai continuar a existir, não tenho a veleidade de achar que vamos acabar com ele. O que aconteceu foi que, de repente, teve mais espaço. O movimento antivacinas não apareceu com a Covid-19. O seu grande impulsionador foi um artigo falso, hoje completamente desacreditado, que tentou provar uma relação de causa e efeito entre as vacinas e o aparecimento de autismo nalgumas crianças. Isso era tão absurdo que os cientistas nem se deram ao trabalho de desmentir. A evidência científica a favor das vacinas é tão avassaladora que a maior parte da comunidade científica achou que, mesmo que não fizesse nada, os antivacinas acabariam por se calar. O que não se previu é que a verdade não interessa nada, o que importa é o que tem melhor marketing e vai ao encontro das ansiedades das pessoas.
Que ansiedades são essas?
Os cientistas dizem: “a ansiedade não vai deixar de existir e temos de aprender a viver com ela”; enquanto os anticiência afirmam: “nós podemos tirar-vos a ansiedade”. Além disso, usam palavras e conceitos que as pessoas conhecem e que estão de acordo com o seu sistema de crenças e de valores. Por isso, emocionalmente, é muito mais fácil acreditar neles, sem perceber que se está a cair num logro. A única maneira de ajudarmos as pessoas a lidar com a ansiedade é fazendo muita divulgação de Ciência e obrigando a comunidade científica a ajudar a desmontar a desinformação.
Como devemos dialogar com alguém que nega factos científicos?
É preciso muita paciência. Alguém que nega a evidência científica, obviamente, não vai lá por os factos falarem por si. É preciso conhecer o contexto emocional, social e cultural dessas pessoas para perceber onde está o problema. Por que razão alguém tem um filtro que não lhe permite acreditar numa coisa óbvia? Temos de andar à volta para entender qual o conjunto de valores e de crenças que leva aquela pessoa a acreditar em coisas que não fazem sentido.
O risco de não conseguir dialogar com essas pessoas é grande?
Na comunicação de Ciência, usamos a expressão “pregar aos convertidos”, ou seja, o público das nossas iniciativas, habitualmente, já está interessado. Mas é fundamental irmos além dos convertidos. Temos de ser atraentes o suficiente para que mais gente queira dialogar connosco. Os cientistas não devem ser vistos apenas como pessoas que dão aulas mas também como bons ouvintes. Não conseguimos mudar a mentalidade das pessoas se não as ouvirmos. E essa parte ainda é difícil de se fazer.
É recorrente o argumento da censura, quando não se dá voz a quem nega a Ciência. Como responde a isso?
É preciso distinguir opiniões fundamentadas de opiniões pessoais. Durante a pandemia, houve pessoas que fizeram serviço público ao explicarem o melhor conhecimento científico até à data, mas outras limitaram-se a dar a sua opinião, um achismo que não era baseado na melhor evidência disponível. Os órgãos de comunicação social têm de ser capazes de avaliar se alguém está só a dizer asneiras. Dar palco só porque no dia seguinte vai dar que falar… Não pode valer tudo.
Mas é fundamental manter o espírito crítico. A Ciência já errou. Como se mantém esse equilíbrio entre confiança e ceticismo?
A Ciência, de facto, não é perfeita. E, sim, já errou, mas uma das grandes qualidades da Ciência é admitir correção. Se fosse escrita na pedra, nós nunca evoluiríamos, e a evolução da Ciência é o que a torna maravilhosa. Quando as pessoas se queixam de que num dia os cientistas dizem uma coisa e no seguinte dizem outra, a minha única resposta é: ainda bem que assim é, senão éramos fundamentalistas. Claro que depois há aquelas coisas parvas, às vezes a cafeína faz bem, outras faz mal, mas isso são fait-divers científicos. Às vezes, dá-se voz a artigos que não têm impacto na comunidade científica apenas porque são engraçados. Quem me dera que o chocolate emagrecesse, essas são as minhas notícias preferidas.
Como podem as pessoas proteger-se da desinformação que circula na internet?
Primeiro, é preciso saber de onde veio a informação, se uma fonte fidedigna verificou a sua veracidade ou se é uma coisa que uma pessoa qualquer pôs na internet. As fontes devem estar identificadas; se é alguém com nome, instituição, credibilidade, posso estar mais tranquila. Um dos fenómenos da pandemia foram mensagens a dizer “a minha tia trabalha num hospital e…”, que eram reencaminhadas por não sei quantas pessoas, sabia-se lá quem era a tia que, provavelmente, nem sequer existia. Contudo, como era um boato que ia ao encontro dos medos e das ansiedades das pessoas, ele era partilhado.
É inevitável perder a batalha contra a desinformação?
Não, mas temos de ser mais rápidos a pôr informação de qualidade e em massa cá fora, numa linguagem que as pessoas entendam. As autoridades de saúde foram muito cautelosas até decidirem dar informações fidedignas [sobre a pandemia], e isso deu imenso espaço para que houvesse milhares de informações paralelas não verdadeiras a circular. Não há uma segunda oportunidade para causar uma primeira boa impressão. E dá muito mais trabalho desmentir. Quando Graça Freitas vem dizer que, se calhar, se acaba com os boletins diários porque criam muita ansiedade, esse é o primeiro passo para começar a haver pseudoinformação sobre os números reais. Não acabem com a informação; não é ela que causa ansiedade às pessoas, é a ausência de informação fidedigna, verdadeira e transparente.
Os raros efeitos secundários das vacinas deviam ter sido esclarecidos mais rapidamente?
Acho que as autoridades de saúde não se chegaram à frente porque, para elas, essa questão era muito óbvia, mas a população esquece-se de que até um medicamento tão básico quanto o paracetamol tem efeitos adversos.
As pessoas sabem, mas apagam essa informação da sua memória, porque é uma chatice viver com essa ansiedade. Ninguém tomava medicamentos se estivesse sempre a pensar em todos os efeitos secundários que podem acontecer. Na verdade, os efeitos secundários esperados com estas vacinas são muito mais improváveis do que os de outros medicamentos, como a pílula. Os benefícios de tomar a vacina são largamente superiores aos eventuais efeitos secundários que elas possam ter numa percentagem ínfima de pessoas.
Quais foram os principais erros de comunicação da Direção-Geral da Saúde (DGS)?
Não quero dizer mal porque tenho a certeza de que a DGS fez o melhor que conseguia. Um organismo do Estado tem muita dificuldade em criar rapidamente equipas; o problema não é apenas da DGS. É preciso perceber que condições podem ser criadas para termos estruturas mais ágeis, que possam lidar com estas situações de forma mais célere e com mais qualidade. A grande lição que tiramos daqui é a necessidade de a comunicação ser mais ágil e mais transparente para não dar espaço à desinformação.
Os cientistas estão mais conscientes da importância de comunicarem com a população?
Já temos muitos cientistas disponíveis para falar, mas temos de continuar a trabalhar a sua capacidade de ouvir. É absolutamente fundamental haver diálogo. A comunidade científica tem de perceber quais são as dúvidas e as inquietações das pessoas porque, se calhar, está a dar-lhes respostas que não são aquelas que elas precisam de ouvir. Temos de ouvir, senão vamos falhar.
A falta de financiamento é o principal problema da Ciência nacional?
Sim, sem dúvida. A percentagem do PIB atribuído à Ciência tem vindo a crescer, mas precisa de crescer mais. É ainda necessário que as carreiras científicas sejam valorizadas. Estamos a formar pessoas com doutoramentos, e nem todas vão ficar a trabalhar na academia. São profissionais com competências que devem ser valorizadas no mercado de trabalho. Os privados têm de perceber que existe uma mais-valia ao investir em parcerias com a Ciência. A vantagem de pôr os cientistas a dialogar não é apenas ensinar às crianças o que é a Ciência; é também influenciar decisores políticos, as empresas e todos os outros setores da sociedade.
Ainda é um desafio trazer as mulheres para a Ciência?
Portugal é o país da OCDE com mais mulheres na Ciência, mas os lugares de topo são maioritariamente ocupados por homens. Estamos a falhar às raparigas de alguma forma, porque a partir de certa altura passamos a mensagem de que há determinadas coisas a que só os rapazes podem aceder e de que há determinadas capacidades cognitivas que elas não têm. Isto é transmitido de um modo muito subtil, mas muito eficaz, e faz com que, em muitas áreas do conhecimento, as raparigas se excluam, enquanto os rapazes nunca consideram que determinada coisa não é para eles. Também está relacionado com os modelos de representatividade. Temos de criar um ambiente propício para termos mais exemplos femininos.
Tem uma grande paixão pelo teatro. É uma herança de família esta conjugação entre a Ciência e as Artes? O seu pai, António Lobo Antunes, é médico e escritor…
O teatro apareceu mais ou menos por acaso, mas foi um casamento que resultou muito bem, e também cantei num coro. Além de me dar prazer, passei a incorporar as ferramentas do teatro nas minhas formações para ajudar os cientistas a comunicar melhor. Cientificamente, a pessoa que mais me marcou foi o meu avô [paterno]; era médico, investigador, professor e um amante de tudo o que é belo, seja arte, pintura, escultura, música… Foi a pessoa a quem dediquei a minha tese de doutoramento e que deu nome ao meu primeiro filho [João]. O meu avô conseguia conjugar a paixão e o interesse pela Ciência com toda esta vertente humanista. Na nossa casa, não era possível alguém ser só técnico; esta vontade de olhar para o belo era muito natural para nós. Uma coisa muito curiosa é que ninguém fala de trabalho em família, falamos do resto.
De literatura?
Por acaso, sim.
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