AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "COMO UM CLARIM DO CÉU"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O RIMANCE DA ALEMANITA




Conceição Branco (in facebook)
O Rimance da Alemanita
- Está-me perguntando porque é que o barco não vai ao mar? Ora, já viu que a embarcação tem tantos anos como eu? Foi do meu pai, andei com ela enquanto podia, mas o meu filho não quis e tem razão, o rapaz. A pesca já não se pode, ‘poribiram’ as nossas artes, mandaram pra cima de nós tantas taxas e licenças, os das leis, e era custoso pra levar os turistas. Ele desistiu depois do desastre.
- O desastre não foi desastre nenhum, tantas vezes c’a gente ia parar às ondas, quando o barco se encabritava. Mas isso eramos nós, os marítimos. O desastre foi quando o moço não conseguiu dar a volta à embarcação e foi a caminho daqueles barquitos que agora eles usam e lá foram os turistas tomar banho. Ninguém se magoou, só ficaram molhados, até tinham os coletes e tudo, mas foi pr’aí um escarcéu. Que os barcos velhos davam má fama, andando devagar, a ocupar muito espaço a bordejar nas grutas.
- Veja lá, que a gente somos os perigosos, aqui na nossa terra! O moço conhecia as grutas, as falésias e as arribas e as praias todas de Lagos, sabia das correntes e das marés, fui eu que lhe ensinei, ‘inda andava de calçanitos e ia à escola. Aquando do desastre já era homem feito, pra mais de 20 anos, mas ficou tão marafado, que desistiu. Foi comprar um daquelas embarcações novas, toda catita, mas que custou os olhos da cara. ‘Inda tenho ajudado nas prestações, que ele disse que só voltava pró mar com barco novo e foi assim. Eu deixei de ir ao mar que não m’ajeito co’ as novidades, o barco do meu pai também deixou de bailar nas ondas.
- Ai quer saber mais histórias da praia Don’Ana? Se eu começasse a contar as partes, era nunca que me calava. Este lugar é uma beleza, mesmo que lhe façam judiarias, como meter areia e mais areia ali ao pé das rochas. Sabe que estou rindo? Eles, lá os que dizem que sabem, metem areia, mas do lado da corrente. Aquilo basta vir uma maré grande, uma chuva mais rija e lá se vai a areia. Dizem que sabem, mas não sabem que o mar vem sempre buscar o que lhe pertence. Vale pouco andar pr’ali e pr’acolá c’as máquinas, tratores em terra e dragas no mar.
- Mas até que houve uma obra assim mais jeitosa. Foi aquela escada, está a ver? Pois no tempo em que eu ainda ia pela falésia com as artes, aquilo era um susto. Só havia uns degraus muito mal amanhados, que eu e os outros escavamos assim muito custosamente na falésia. Veja lá que descíamos de cú virado para o mar, a por um pé atrás do outro e com as mãos no degrau de cima. Se não fosse assim, tínhamos de esperar a baixa da maré e ir de caminho para a praia do Pinhão. Uma grande volta, com as artes às costas. E então, para varar a maré, o barco gastava muito gasoil.
- Pois, a escada deu jeito, nunca que eles a construíram para nós. Foi prós turistas. A gente é da terra, andávamos aqui ganhando o pão e a lembradura da escada só lhes veio prós que se vinham espojar ali no niquito de areia.
- Mas então vou-lhe contar a parte da alemoa que caiu da falésia. Isso é que foi um rimance. Foi no verão já no fim da tarde e não sei o que deu naquela cabeça tonta, começou a trepar sem por os pés em todos os degraus. Esta parte, contaram-me depois, que não vi o princípio, só vi quando o pessoal começou a gritar, os que estavam na praia, os que vinham pela escada e eu assomei ali à porta da cozinha a ver o que se passava.
- O que é que eu vi? A moça só parou quando chegou ali às espinheiras, já resvés da praia, está a ver? Os que estavam na escada contaram depois que tinha sido levada à rasta, com umas pedras em volta dela e foi raspando na falésia. Como estava nuinha, só q’aquele fato de banho piquinino, a pela raspou toda, na perna e, com todo o respeito! no rabo, no braço e até na cara.
- O que eu vi com os meus olhos foi qu’o fato de banho, aquele que chamam de biquíni, se tinha rasgado, ela estava prá’li deitada, com as vergonhas todas à mostra, mais os peitinhos. Eu primeiro pensei qu’ela tinha batido co’a cabeça e já estava descansando pra sempre, mas depois ouvi-lhe o choro. Parecia uma criança, se calhar um gatinho, miando baixinho.
- Então fique sabendo que mesmo sendo homem rijo e já com muitos anos, fiquei almareado, c’o coração ao pé da boca. Os que estavam nas escadas eram todos turistas e não conheciam a falésia, nem sabiam dos truques da escada manhosa que a gente tinha talhado e então eu fui lá.
- Não foi pra tirá-la, no sítio onde estava era preciso mais homens e umas cordas, mas eu tinha de ir prá beira dela, que aquele choro miudinho não me saía da cabeça. Em chegando lá ao pé, tirei a minha camisa e tapei-a. Não vi jeitos de a deixar assim, toda descomposta e mal me sentiu ali ao pé, aferrou-se à minha mão e nunca mais a deslargou.
- Agora que lembro disso, ela dizia umas palavras em estrangeiro, eu não percebia, mas sabe que parecia a minha filha, no tempo em que chamava pela mãe, se caía e se magoava? Não sei se era, mas parecia qu’ela estava chamando a mãe, e dizendo dói, dói, dói muito, lá na língua dela.
- Ali estive meio alcandorado numa pedra, co’as espinheiras e ferrarem-se nas costas até que vieram os bombeiros, a polícia e mais uma mão cheia de pessoal qu’eu nem sei quem era. Mas foi o cabo dos trabalhos pra ela deslargar a minha mão e a camisa nunca mais a vi.
- Este rimance acaba com uma parte qu’eu cá nunca esperei que fosse. Já no fim do verão, apareceu por aí o Xico Zé, o moço da Joaquina, qu’inda é minha prima, que estava na Guarda Fiscal, ou na Polícia das praias, não me lembro agora. Mas vinha fardado, e trazia atrás um turista, daqueles que primeiro parecem um copo de lei e, no dia seguinte, uma lagosta, quando se espojam ao sol. Este não tinha ainda apanhado sol, e até fazia impressão, tão branquelas.
- Veja lá c’o homem, em chegando à minha beira, pôs a mão no coração e dizia umas palavras esquisitas em estrangeiro. Eu só percebia danka shón, danka shón e olhava meio aparvoado. O Xico Zé lá me contou a parte de ele ser o pai da alemanita que tinha caído e que tinha vindo para me dizer obrigado.
- Eu estava um bocado enrascado, isso de danka shón ser o mesmo que obrigado fazia-me rir. E a gente não se pode rir dum pai, quando a filha andou aos trambolhões na falésia e até podia ter ido desta pra melhor.
- Então chamei a minha senhora e disse-lhe pra trazer a garrafa do medronho que a família dela mandava lá do Alferce, da serra de Monchique. E foi assim que acabou este rimance. A gente os três, eu, o Chico Zé e o alemão a beber medronho e a olhar prá beleza da praia Don’Ana, ali abaixo. O homem dizia zô gut, zô gut e isso eu percebi. Ele gostou do medronho.

Sem comentários:

Enviar um comentário