Republicado quase duas décadas depois da edição original, Um General na Revolução, da investigadora Maria Manuela Cruzeiro (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra), procura mostrar a dimensão ética de um político que foi alvo de uma campanha "de boatos e calúnias" e o real legado do período em 1974-1975 em que foi primeiro-ministro, sobretudo no mundo do trabalho.
Quando se assinalou o centenário do nascimento de Vasco Gonçalves, em meados de 2021, chegou a haver uma pequena polémica sobre ter sido ou não um dos seus governos provisórios a criar o subsídio de desemprego em Portugal. Foi ele ou não?
Foi uma polémica deslocada e um tanto sensacionalista. Os breves 14 meses de governos de Vasco Gonçalves mudaram radicalmente a face deste país, nomeadamente o mundo do trabalho, através de legislação absolutamente revolucionária. E se leis fundadoras como as das nacionalizações ou da reforma agrária foram totalmente revertidas, o mesmo não se passou com um conjunto importantíssimo de leis de apoio aos trabalhadores que se tornaram um dado adquirido (erradamente, tendo em vista recentes atuações como as do governo de Passos Coelho) de tal forma que se torna impossível imaginar as suas/nossas vidas sem elas. Direito à greve, salário mínimo digno, subsídios de férias e de Natal, assistência na doença e na maternidade, subsídio de desemprego (posteriormente regulamentado e enquadrado pela primeira Lei de Bases da Segurança Social em 1984) são conquistas cuja história as gerações mais velhas de trabalhadores portugueses conhecem bem. E sabem a quem devem em primeiro lugar agradecer. Pena que os milhares que delas hoje usufruem ignorem o nome de Vasco Gonçalves ou só o conheçam por aspetos distorcidos (por vezes até à caricatura) e historicamente infundados.
Muito associado com o PREC, tido como muito próximo do PCP a ponto de Jerónimo de Sousa no ano passado ter participado nas homenagens, como classifica Vasco Gonçalves do ponto de vista ideológico?
A sua formação ideológica estrutura-se em torno de duas componentes essenciais: a componente científica e a componente militar. Apaixonado desde muito jovem pela ciência (em particular pela matemática) e pela história, encontra no marxismo e no materialismo dialético a resposta para muitas das suas preocupações teóricas, mas também de ação concreta. A sua formação de engenheiro não é certamente alheia a essa vertente de racionalidade, de rigor, de exigência própria do espírito científico. Por seu lado a componente militar, tal como a entendia, com os seus valores e princípios absolutos e inegociáveis - honra, dignidade, espírito de missão, lealdade, camaradagem - dá-lhe uma inquestionável dimensão ética, de que nunca abdicou como político. Fez sempre política com o espírito de missão de um militar que não colabora nos jogos de poder ou nos interesses individuais ou de grupo, para lutar pelo que convicta e honestamente pensava ser o melhor para este povo. Não foi, pois, um homem de partido, pois o único grande coletivo a que pertenceu, com manifesta honra e orgulho, e por cuja unidade político-moral lutou até ao limite das suas forças, chamava-se MFA.
As origens familiares eram da classe média lisboeta, certo, com um pai conservador?
Sim. O pai, Vítor Gonçalves, era sócio de uma casa de câmbios. Salazarista convicto, mas também um homem intrinsecamente sério e honesto, que nunca tirou qualquer benefício pessoal por ser "da situação". Foi também um grande jogador do Benfica e chegou a ser capitão da seleção nacional. Foi, quer pelos traços de carácter quer pela paixão desportiva, um marco na formação do filho Vasco e do irmão.
Como foi a carreira militar em África do homem que, depois como primeiro-ministro, esteve envolvido no processo de descolonização? O que viu afetou a sua visão sobre o futuro do império?
Cumpriu três comissões no chamado Ultramar. A primeira na Índia e as outras duas em Moçambique e Angola, em plena guerra colonial e sempre em funções de chefia na arma de Engenharia. Foi certamente a experiência mais dolorosa da sua vida. Até porque, ao contrário de muitos dos seus camaradas, em relação aos quais tinha uma maior bagagem cultural e política, não precisou dessa lição no terreno para saber da verdadeira tragédia pessoal e coletiva que estava a viver. Nessa experiência-limite confrontou os seus ideais de esquerda com a obrigação de, como militar, fazer uma guerra com a qual não concordava. Se não desertara, tinha de ser profissional exemplar de modo a, acima de tudo, proteger a vida dos seus homens, para quem foi pai, professor, amigo e confidente. E tudo fazer para transformar em realidade a convicção, que há muito alimentava, de que era pelas Forças Armadas que passaria o fim da guerra e com ele o derrube do regime.
Que protagonismo teve Vasco Gonçalves no 25 de Abril?
Foi o militar mais graduado do movimento, com o posto de coronel, o que o tornava um alvo fácil. Daí a decisão coletiva de o preservar. Participou apenas em algumas reuniões, em especial as destinadas à elaboração e à aprovação do Programa do MFA. Em consequência, integra a Comissão Coordenadora do Programa, de que passa a ser o elemento mais antigo. Uma espécie de presidente informal. Acompanhou contudo de perto toda a movimentação dos capitães, sobretudo através dos seus camaradas de Engenharia. Foi também o elo de ligação com Costa Gomes, dadas as relações de amizade que mantinham.
Até que ponto se tornou uma figura popular, até inspiração para uma canção, como a que fala de "Força, força, companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço!"?
Nos tempos que correm é algo bizarro dedicar uma canção a um político. Não, contudo, em período revolucionário, em que a política adquire um poder quase absoluto em relação a qualquer outra dimensão da vida pública ou mesmo privada. Este sobreinvestimento passa muito por um conjunto de referências culturais e artísticas, que são afinal o imaginário de uma sociedade em determinado momento. A Revolução de Abril tem um imaginário poderosíssimo e nele Vasco Gonçalves ocupa um lugar de destaque. Por esta canção, claro, fortemente marcada pela urgência do combate político, numa altura em que a canção era uma arma... Mas também e sobretudo pelas inúmeras manifestações artísticas que vão da pintura à escultura, da literatura à poesia. Sobretudo à poesia. Daí a pertinência da reflexão de Óscar Lopes: seria fácil imaginar Ramos Rosa, Silva Carvalho ou Eugénio de Andrade a dedicar um poema a qualquer dos outros responsáveis políticos e militares que depois do 25 de Abril disputaram o poder a Vasco Gonçalves?
Como eram as relações com figuras como Mário Soares, que foi seu ministro dos Negócios Estrangeiros e cujo PS venceu as Constituintes de 1975?
Ao contrário do que possa pensar-se, a personalidade vibrante, frontal e entusiasta de Vasco Gonçalves convivia bem com a postura institucional de primeiro-ministro. Todos os seus colaboradores o descrevem nessas funções como exemplo de correção, lealdade e espírito de diálogo. Respeitava e considerava por igual todos os seus ministros, fossem eles da sua família política ou não. Isto enquanto as coligações governamentais funcionaram. Obviamente que após as eleições de Abril de 1975 para a Constituinte a situação mudou radicalmente. E a guerra aberta entre o PS e o PCP, partido com cujas causas Vasco Gonçalves mais se identificou durante o processo, ditou também a hostilidade entre os dois políticos. É de salientar, contudo, que quando da sua morte Mário Soares considerou o antigo adversário um homem de bem, de impecável honestidade, um patriota que queria o melhor para os portugueses.
Que intervenção política teve depois de sair do governo em setembro de 1975?
Viajou bastante. Em Portugal e no estrangeiro, onde quer que o solicitassem. Amigo e admirador de Fidel, tanto vai a Cuba que visita várias vezes e que lhe concede a mais alta condecoração - a Playa Giron - como à mais modesta autarquia ou associação cívica. Colabora regularmente com a imprensa regional (a nacional ignorava-o ) e com as escolas na promoção da memória e dos valores de Abril. Fazia-o por gosto e por dever e nunca questionava a natureza e o alcance de tantas dessas iniciativas, porventura excessivamente modestas para a sua dimensão. A sua última intervenção com direito a ser notícia foi um ano antes da morte, num ciclo de conferências pelo 30.º aniversário da Revolução, no Porto, onde reafirma, em jeito de despedida, as convicções que sempre orientaram a sua vida pessoal e política. Não diria, como o seu velho camarada Varela Gomes, que foram três décadas de invisibilidade... mas quase...
Uma das últimas aparições públicas foi para ver inaugurada em uma galeria de retratos de antigos primeiros-ministros, a convite de Durão Barroso, do PSD. Isto significou que estava pacificada a sua relação com a história quando morreu em 2005?
Se relação pacificada significa resignação ou rendição, não. Mas se significa capacidade de análise do processo de que ele foi um dos maiores protagonistas, nas suas vicissitudes, nos seus avanços e recuos, nas suas contradições, sim, podemos falar de pacificação. Para a qual terão contribuído dois aspetos essenciais da personalidade de Vasco Gonçalves: o estudioso compulsivo que foi toda a vida; e a forte e inabalável convicção de que não faltou ao encontro que a história lhe marcou. De resto, nunca esperou dela gratidão, antes lhe exigia justiça.
Republicar ao fim de quase 20 anos esta biografia significa que ainda há curiosidade pelo chamado gonçalvismo? Já agora, houve um gonçalvismo?
Quero acreditar que sim, até porque é a única forma de dar sentido ao meu trabalho. Quanto à questão do gonçalvismo, é um tema ainda a desafiar os estudiosos. Como todos os ismos é redutor e simplifica o que é complexo. Mas neste caso há dificuldades acrescidas ligadas às circunstâncias em que surge o conceito: com a carga negativa da gigantesca campanha anti-Vasco Gonçalves, em que valeu tudo: do incrível cortejo de boatos e calúnias, à perversa deslocação do debate político para o campo da psicologia e da caracteriologia. Esse gonçalvismo existiu e existe ainda. Tem servido ao longo dos anos à classe dominante como fantasma a exorcizar e como bode expiatório para incapacidades e bloqueios de uma democracia que, em vez de se afirmar pela positiva, se afirma pela negativa. Pelo antigonçalvismo. Ainda há poucos anos se apontavam as nacionalizações gonçalvistas dos loucos anos 1970, como responsáveis pelas dificuldades que vivia a economia nacional. Era desse gonçalvismo, nascido do ódio e do medo de uma direita falsamente convertida à democracia e nada arrependida dos 48 anos de fascismo nacional, que falava João de Freitas Branco: "Quando me falam do gonçalvismo de Vasco Gonçalves não é do Vasco que fico a saber mais. É daqueles que dele falam." Mas penso que há algo bem diferente disto e que com mais propriedade e rigor se pode chamar gonçalvismo: algo que respeite a dimensão pessoal, histórica e simbólica da figura verdadeiramente incomum que foi Vasco Gonçalves e do que realmente representou e representa para este país.
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