A economia alemã durante a II Guerra Mundial
assentou no trabalho escravo.
E a neutralidade portuguesa não impediu
que muitos cidadãos nacionais fossem
apanhados na engrenagem.
Um grupo de historiadores passou quatro anos
a pesquisar sobre esta realidade e a 17 e
18 deste mês vão apresentar as primeiras
conclusões num colóquio internacional e numa
exposição que terão lugar no CCB, em Lisboa
Há um abraço que não lhe sai da cabeça. O de um desconhecido que um dia irrompeu em casa e a afogou entre os braços. Levantou-a do chão, apertou-a com uma força que não se adivinharia num homem tão magro. Feio e magro, assim o recorda. Magro e feio. O medo era de tal ordem que ela até gritou. Tiveram de passar alguns minutos para Josiane Vieira perceber que aquele homem era na verdade o seu pai. Vindo de uma guerra. Aos 5 anos e sem o ver desde os 2, a sua memória tinha-o apagado. O rosto, o corpo, o cabelo, as mãos, a voz. Josiane recuperou isso tudo sem compreender como é que o tinha perdido. Sem compreender que a perda teria sido o desfecho mais provável, o menos surpreendente.
Mas José Vieira viveu para contar-lhe a história. Contou-a muitas vezes, sentados frente a frente. “Chorava sempre que falava disto, não conseguia falar sem chorar. E então eu chorava também”, desvenda ela ao Expresso, ao telefone desde Alsting, na fronteira franco-alemã. O que o pai lhe contou faz parte de um terreno até agora pouco explorado: o dos portugueses engolidos pela grande máquina do trabalho forçado na Alemanha nazi. São à volta de 600, e rastreá-los foi tarefa de um grupo de investigação do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa que, após quatro anos, apresenta agora as primeiras conclusões.
“A neutralidade portuguesa não impediu o país de sofrer pesadamente os efeitos económicos, sociais e políticos da guerra. Mas faltava estudar a mobilização de portugueses para o trabalho forçado, em que assentou toda a economia de guerra alemã”, explica Fernando Rosas. O historiador coordenou uma equipa formada por Cláudia Ninhos, Ansgar Schaefer, António Carvalho, Antonio Muñoz e Cristina Clímaco, que consultou arquivos alemães, franceses e portugueses, além do International Tracing Service, com o precioso Índice Central de Nomes, que contém informação sobre 17,5 milhões de vítimas. O projeto, de início rejeitado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, acabou por ser bem acolhido pela fundação alemã EVZ (Memória, Responsabilidade e Futuro), criada em 2001 justamente para indemnizar as vítimas do trabalho forçado no III Reich — cerca de 20 milhões de pessoas, na Alemanha e nos países ocupados.
Portugal desconhecia as suas. Não tinha ainda as palavras para nomear percursos como o de José Vieira, nascido em 1907 em Valença do Minho, que emigra para França aos 14 anos, “sem nada, nem um saco”, a pé. Que chega ao sul do país mas não se fica por lá, rumando para o norte industrial e desembocando na região de Meurthe-et-Moselle, onde casa com a mãe de Josiane. E onde, após a ocupação alemã, se torna membro da Resistência. A sua casa serve de correio e esconderijo de camaradas, mas não tarda em ser denunciado. A polícia francesa prende-o com uma violência que José nunca iria esquecer. “Bateram-lhe de tal forma na cabeça que ficou seis meses a ouvir mal. Ele ripostou: ‘Estou a lutar pelo teu país e nem sequer sou francês e ainda me bates e me chamas de terrorista’”, relata Josiane.
Aos 78 anos, as memórias das conversas com o pai estão frescas como se tivessem acontecido ontem. Corrige-nos quanto à data da prisão: junho de 1941. Pouco depois, um tribunal militar alemão em Nancy condena-o a cinco anos de trabalhos forçados na Alemanha e transfere-o para a penitenciária de Siegbourg. O fim da guerra ditaria que cumprisse apenas três anos e meio. Mas o tempo passado na fábrica de viscose e celulose Rheinische Zellwolle seria mais do que suficiente para deixar sequelas. “Estava muito doente. Quando chegou, tinha uma tosse permanente e uma úlcera varicosa numa perna, que demorou dois anos a sarar”, lembra a filha. Como bom resistente, José várias vezes sabotou as máquinas da fábrica, entorpecendo a produção. Teve para isso um amigo, “um preso alemão” que o ensinou a ler e a escrever, além de lhe assegurar uma maior dose de alimentos nas alturas em que a doença se agudizava.
Após o regresso a casa, José Vieira viu nascer mais dois filhos. E, contra todas as expectativas, voltou a viver cinco anos na Alemanha. Josiane era cantora, trabalhava em Saarbrücken e levou a família toda para lá. José ainda fincou o pé e ficou seis meses sozinho em França antes de ceder. Diz ela que foi marcante ouvir o pai virar-se do avesso e reconhecer, com a maior dor do mundo, que aquele país “também tem gente de bem”. Acabou os seus dias em casa da filha, em Alsting, na terceira vivenda francesa a partir da fronteira alemã. Pôde brincar com alguns dos netos. Morreu aos 87 anos.
PRISIONEIROS (IN)VOLUNTÁRIOS
A França foi, para estes portugueses, a grande porta de entrada na Alemanha nazi. Muitos, como José, eram emigrantes em fuga do brutal desemprego que se fazia sentir em Portugal nos anos 30. Em 1939, o número de portugueses em França fixava-se em 50 mil, o que motivou, no ano seguinte, a assinatura de uma convenção bilateral destinada a regular esse fluxo. Porém, depois da ocupação alemã em junho de 1940, e com o aumento do desemprego em França, muitos destes emigrantes ofereceram-se como voluntários para trabalhar numa Alemanha que reforçava as promessas de emprego em troca de bons salários.
Essa propaganda dirigia-se sobretudo aos estrangeiros — o que explica que nenhum dos 4700 trabalhadores enviados para a Alemanha, só em setembro de 1940, fosse francês. Mas, como esclarece Ansgar Schaefer, havia um senão: “Deixavam entrar toda a gente, mesmo quem não tivesse documento válido em França ou passaporte. Mas estes, depois, não podiam sair.” No caso dos portugueses, a legação em Berlim não emitia documentos aos seus nacionais, argumentando com a ausência de acordo de trabalho entre Portugal e a Alemanha. Aqueles que estivessem nessa situação ficavam assim presos num sistema cada vez mais repressivo e numa guerra cada vez mais feroz.
Pedro Baptista da Rocha foi um dos que entrou no III Reich como voluntário. Porém, ao contrário dos outros, nunca foi trabalhador forçado e teve a possibilidade de voltar. Capitão do exército republicano na Guerra Civil espanhola, foge para França em 1939 e é internado primeiro em Angelès-sur-Mer e depois em Gurs, onde o Governo concentra os combatentes estrangeiros daquela guerra. Em 1941 transferem-no para o campo de Vernet, e ali oferece os seus serviços à comissão de recrutamento alemã. O facto de ser português vale-lhe a rejeição imediata e leva Baptista da Rocha a mudar de estratégia. Na oportunidade seguinte, declara-se apátrida, aludindo ao facto de estar impedido de regressar ao seu país.
“Era um sujeito vivo, esperto, com piada, que gostava de falar. Um aventureiro, com um grande sentido prático”, diz-nos o professor João Arsénio Nunes, que o conheceu nos anos 80 e teve com ele uma série de três longas conversas. Nelas falou de quase tudo, mas sobre a opção de se voluntariar Baptista da Rocha apenas referiu que “era jovem, tinha condição física e preferia ir para a Alemanha a ser preso em Portugal”. Com o apoio do Consulado de Portugal em Berlim, muda-se para aquela cidade. E essa mudança faz toda a diferença: de carregador com uma jornada de 10 horas diárias passa a funcionário na revista “O Espelho de Berlim”, de propaganda nazi, e a locutor de rádio pago razoavelmente. E apenas precisa de acenar com uma visita aos pais para o deixarem voltar a Portugal, em 1942. Pedro Baptista da Rocha não ficou por cá, saindo de novo para uma década e meia em Brazaville e outra no Brasil, só retornando de vez chegado o 25 de Abril e aqui escrevendo as suas memórias.
O III Reich nutria-se também de prisioneiros de guerra — a Convenção de Genebra previa, no Artigo 27, o seu uso como força de trabalho. E, se Portugal não combateu no conflito, há amplo registo de portugueses a engrossar as fileiras do exército francês. Um deles é José Nunes Pinto, de Massarelos, Porto, nascido em 1910, a 16 de maio. De origens humildes. Que estuda para padre a fim de se instruir e se torna aprendiz de alfaiate. Que como escuteiro visita o sul de França e se apaixona e faz diligências para casar em Bordéus. Que ali começa a carreira de estilista de alta-costura, que o conduz a Paris e, num curto passo, à consagração.
“Em Paris, dá-se com figuras como Christian Dior e chega a ser considerado o quarto melhor costureiro da capital”, relata ao Expresso o sobrinho, Manuel Nunes Pinto. Mas a invasão alemã leva os cunhados franceses a alistar-se para combater a Wehrmacht, e a mulher pressiona-o a seguir o mesmo caminho. É assim que ingressa no Regimento de Marcha de Voluntários Estrangeiros. E que, como aconteceu a três milhões de prisioneiros de guerra franceses, vai parar a um dos muitos Stalags, os campos para esta categoria de detidos espalhados um pouco por todo o III Reich. O dele era o Stalag XIIA.
Dizer que a costura o salvou não é, neste caso, faltar à verdade. “Ao referir que era costureiro, puseram-no a trabalhar para as mulheres dos oficiais. Isso significou menos fome e a possibilidade de levar comida aos camaradas”, conta Manuel Nunes Pinto. Entre outros objetos, na sua posse está um anel dado por um deles em agradecimento e um livro com litografias de Jean Cluseau-Lanauve a ilustrar a vida no campo, que o famoso pintor lhe dedicou. O realismo cru desses desenhos, que mostram a preto e branco cenas como a dos prisioneiros nus a serem inspecionados e desinfetados à entrada, não parece pertencer ao mesmo sítio onde, nos dois anos em que ali esteve, José chegou a organizar eventos e a cantar em espetáculos.
A saída do Stalag XIIA foi narrada a Manuel Nunes Pinto como uma fuga planeada pelas mulheres dos oficiais a quem o tio fazia os vestidos. No entanto, hoje esta hipótese é pouco provável. “Se tiver sido desta forma, como é que ele conseguiu trazer de lá tantas coisas?”, questiona o sobrinho. Com total certeza sabe que, em 1946, o tio estava de novo em Paris, pois nesse ano foi admitido na Couture Parisienne. E podia ter reconstruído o anterior sucesso se um litígio conjugal não o forçasse a voltar para o Porto, acompanhado pelo seu staff francês.
Rapidamente ganha fama no métier, sendo o primeiro estilista a fazer passagens de modelos na cidade. Instala-se num palacete a meio da Avenida da Boavista e no auge do negócio contrata 42 costureiras. Nunca mais fala de Paris e apenas mantém contacto com um dos seus seis filhos — a única rapariga. Morre sem herdeiros em 1992, aos 82 anos, mais dois dos que o sobrinho tem agora. Manuel Nunes Pinto reformou-se como diretor-geral de uma fábrica de químicos, tendo trabalhado três décadas na BASF, a empresa que muito antes fora responsável por desenvolver o gás Zyklon B, usado nos campos de extermínio nazis. “A vida é estranha”, comenta ele, que irritava o tio com a suspeita de descender de uma família judia. “Ficava aborrecido, achava que ser judeu é ser proscrito. E não gostou quando fui visitar o campo de Dachau.”
A MOEDA DE TROCA
Além dos voluntários e dos prisioneiros de guerra, existia outro grupo de portugueses em trânsito para a Alemanha. Eram aqueles que a França ocupada utilizava como moeda de troca no âmbito do Relève, o plano acordado em 1942 entre Fritz Sauckel e o Governo de Vichy, que estipulava a troca de um prisioneiro de guerra francês por três trabalhadores que a França pusesse à disposição do esforço de guerra alemão. O historiador Ansgar Schaefer nota que, regra geral, os franceses usavam os estrangeiros residentes no país. Mesmo aqueles que, como Francisco Gonçalves Leco, eram nacionais de países neutros.
Deste português analfabeto nascido em 1901 em Alheira, Barcelos, teve notícia o Consulado de Portugal em Berlim exatamente a 2 de junho de 1943. Foi nesse dia que Francisco Leco ali se apresentou, dizendo ser emigrante em França há 13 anos e mostrando, para o provar, uma Carte d’Identité francesa. Embora nela se atestasse a nacionalidade portuguesa, Francisco não possuía qualquer documento português complementar nem nunca se matriculara num consulado. Numa carta ao ministro dos Negócios Estrangeiros português, o cônsul em Berlim, Mário Duarte, não parece duvidar dessa origem, afirmando que, “pela inconfundível pronúncia e típica linguagem dialetal minhota, pelos conhecimentos que tem da região de Barcelos, pelo aspeto, maneiras, etc., porém, vê-se logo que é português”.
E vai direto ao assunto: ainda que a tal Carte d’Identité indicasse Francisco Leco como português, ele fora compelido “a vir trabalhar para a Alemanha para substituir um prisioneiro de guerra francês”. Passara então a ser tratado como “prisioneiro civil francês e submetido ao respetivo regime”. Mário Duarte escrevia também que o português se encontrava a trabalhar na fábrica Berliner Maschinenbau A.G., próxima de Berlim, e notava existirem “mais casos deste género”. Porém, nada podia fazer. A proteção consular apenas valia para portugueses “devidamente matriculados” no consulado, e Francisco Leco nem sequer tinha um documento que o autorizasse a esse ato. O cônsul despedia-se “aguardando instruções” de Portugal, que nunca chegaram.
O AVISO DOS DIPLOMATAS
“Os cônsules que intervêm junto das autoridades alemãs e francesas fazem-no por iniciativa pessoal. Avisam Lisboa do que se passa, mas isso não ativa nenhuma diligência do Estado português. Não detetámos nenhuma instrução do Governo no sentido de defender ou resgatar esta gente”, reconhece Fernando Rosas. Essa atitude mantém-se quando, em 1943, é instituído o Service du Travail Obligatoire (STO), rapidamente transformado numa máquina de recrutar estrangeiros em França. Em abril de 1944, numa carta ao encarregado de negócios de Portugal em França, o cônsul em Toulouse, Ruy Vieira Lisboa, acusa as autoridades franco-alemãs de continuar “requisitando, sequestrando e deportando súbditos portugueses”. Nessa mesma data, a legação portuguesa em Vichy diz à embaixada alemã que a requisição de trabalhadores portugueses “constitui uma violação do direito dos neutros” e insta-a, sem sucesso, a parar.
Em 1944, a derrota iminente dos alemães instaura o vale tudo. É quando se verifica a maior deportação de portugueses. Em janeiro desse ano, Júlio Laranjo, alentejano de Alcácer do Sal, emigrante com nacionalidade francesa e detido em Morlincourt por envolvimento na Resistência, é levado primeiro para Buchenwald e depois para Mauthausen, o maior campo de trabalho forçado alemão — onde estiveram outros 10 portugueses. Em junho, os 403 internados em Vernet, entre os quais oito portugueses, são evacuados num comboio. E a viagem que empreendem — à qual viriam a somar-se os presos de Saint-Michel e do forte de Hâ — acaba por envolver cerca de oito centenas de deportados e uma dezena de portugueses. Dura três meses terríveis, entre bombardeamentos, e só culmina em agosto, com a chegada a Dachau.
Um dos portugueses desse “Comboio Fantasma”, como ficou conhecido, chamava-se José Agostinho das Neves. Era de Lisboa, anarquista e exilado. Chegado a Dachau, foi encaminhado para Allach, o mais populoso dos seus subcampos e importante centro de trabalho escravo para a indústria do armamento e da aviação. Nesse inferno aguentou, doente de tifo e disenteria, até à sua libertação pelos americanos a 9 de abril de 1945. E regressou a Paris, onde o jornalista Fernando Teixeira, do “Diário Popular”, o entrevistou no final desse mesmo ano. “Se nos visse, se visse como nos batíamos por um pedaço de pão a mais que sobejasse na boca de um doente! Faz ideia do que seja dividir por 100 homens um tomate cru?”, disse a propósito da viagem de comboio.
Da mesma forma que o Estado Novo não protegeu os portugueses que, em França, eram recrutados à força, também obrigou os franceses que cá residiam, já em plena guerra, a fazerem o serviço militar no seu país natal. Nesta circunstância encontrou-se Emile Henry, cuja história, contada ao Expresso pela filha Christine, é um exemplo de como a vida pode mudar de rumo “num estalar de dedos”. Nascido em 1920 na ilha de Moçambique, o pai era filho do vice-cônsul francês naquele país africano. Aos 8 anos foi enviado para um colégio interno em França e só voltaria a reunir-se com a família no Porto, onde esta se estabeleceu e de onde Emile, ginasta talentoso que foi selecionado para os Jogos Olímpicos de Tóquio — nunca realizados —, partiu por ordem do Governo português de novo rumo a França, a fim de ingressar na tropa.
Com o Norte do país ocupado pelos alemães, cumpriu o seu treino na Zona Livre. E, sabendo que o perigo de ser recrutado para trabalhar na Alemanha era real, tentou regressar a Portugal. Claro que não conseguiu: foi apanhado no comboio ao atravessar a fronteira, recambiado para a prisão de Mont Louis e, mais tarde, para Buchenwald. A sua estadia neste campo de concentração está documentada no livro “A Morte Lenta”, que escreveu em 1945, mas, diz Christine, “a descrição da viagem de comboio é pior do que a do campo”. “O meu pai é minucioso a contar o que se passava nas carruagens, com 120 homens empilhados a disputarem o postigo para apanhar o pouco ar que entrava do exterior”, onde as portas não abriam devido aos 20 centímetros de gordura, excrementos e sangue coalhado que se acumulara no chão.
Aos 23 anos, Emile está em Buchenwald e é, se tal fosse possível, “salvo” pelo trabalho forçado. Consegue ser incluído num comando destinado a escavar túneis em Kassel e assiste, numa colina próxima, ao brutal bombardeamento da cidade, que em 45 minutos mata 45 mil pessoas. No fim da guerra vai para Paris e, antes de voltar a Portugal, ainda tem tempo de se apaixonar. “Antes da guerra, o meu pai tinha trabalhado no Sul de França, num café. Os donos gostavam muito dele e, quando voltou, ofereceram-lhe um local para descansar. A minha mãe era filha deles”, relata Christine. Emile pediu-a em casamento, mas Thérèse, sete anos mais nova, demorou mais quatro a pensar. Somente em 1950 se casariam no Porto, onde nasceram as duas filhas.
Christine, artista plástica de 59 anos, vive com a mãe em Loulé. Na mesma casa que o pai ocupou nos últimos 30 anos de vida. Foi a Buchenwald e visitou a floresta de faias que rodeia o campo. Lembrou-se de ter lido que, durante a guerra, o fumo dos crematórios tinha afastado os pássaros. E recriou-os numa exposição recente de homenagem ao pai, a que deu o título de “Birds”. Falava ele de Buchenwald? “Era um homem bem-disposto. Falava pouco, mas tinha pesadelos frequentes. Sonhava que estavam a bater-lhe, e a minha mãe tinha de o acordar. O tema nunca foi tabu, pairava entre nós. Se eu me queixasse do frio, o meu pai apenas dizia: ‘Tu não sabes o que é ter frio.’” Não era preciso mais.
INVENTÁRIO SEM FIM
Também a investigação conduzida por Fernando Rosas tem momentos de silêncio. Intervalos, pausas, em que a descoberta do desconhecido apenas prova que este é incomensurável, feito dos restos da História, do que escapou à destruição. Há portugueses que nunca será possível rastrear, por terem sido confundidos com espanhóis ou franceses ou porque, pura e simplesmente, não fizeram queixa num consulado. “A nossa estimativa é conservadora”, admite o historiador. É o início de um inventário “que nunca chegará ao fim e que não passa da ponta do icebergue”, concorda Cláudia Ninhos.
O que se sabe? Que 77 portugueses passaram pelo sistema concentracionário nazi. Que esse total não se rende à matemática mais básica, não corresponde à soma das partes — porque o mesmo indivíduo pode ter estado em vários campos. Que 12 foram deportados para as prisões do III Reich e 206 eram prisioneiros de guerra internados nos Stalags. Que as estatísticas alemãs sobre o número de trabalhadores estrangeiros no III Reich dão conta de 376 portugueses em junho de 1944, entre os quais 35 mulheres. Que há um número indefinido de recrutados à força e uma quantidade ainda mais difusa de voluntários indocumentados a entrarem na Alemanha e a não conseguirem sair. Que houve empresas alemãs a contratarem portugueses para trabalho especializado, a exemplo dos oito mergulhadores do porto de Leixões levados a servir nos submarinos alemães. Que um destes mergulhadores morreu. Que houve cidadãos judeus, nascidos em Varsóvia e em Bruxelas, com passaporte português. E que, finda a guerra, o Estado Novo não permitiu que estas histórias fossem contadas. Se não forem contadas, não existem.
Os percursos individuais dos três Josés, de Pedro, de Emile e de Francisco são como um barco que naufragou sem que disso houvesse notícia. O casco permanece intacto no fundo do mar até ao dia em que alguém faz os cálculos e parte à sua procura, apenas para o encontrar no exato local onde havia desaparecido — e para concluir que há ainda muitos mais barcos por descobrir. Assim o diz Fernando Rosas: “Como tudo na História, os nosso resultados são provisórios. São o começo de qualquer coisa que já não se pode ignorar.”
Artigo publicado na edição do EXPRESSO de 4 de novembro de 2017
expresso.pt
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