Há tão pouco Tejo que o mar está a subir o rio. Pescam-se hoje douradas em Valada, a 70 quilómetros de Lisboa, onde é captada uma parte da água que abastece a capital. No estuário, os agricultores pegam em tratores para erguer barricadas ao sal. É isto um rio?
POR JUAN CALLEJA E RICARDO J. RODRIGUES ¦ IMAGEM DE RUI OLIVEIRA
Todos os dias, às sete da manhã, Joaquim Madaleno levanta-se e vai à janela do quarto espreitar o ribeiro que passa ao lado de sua casa. É na verdade um pequeno braço do Tejo que entra pelo norte do estuário – e onde ele instalou uma tábua artesanal de medição de marés. Olhando para aquela régua todas as manhãs, o homem vê o rio mudar.
“Entre os pontos mais extremos da maré alta e da maré abaixa havia até há poucos anos uma diferença média de dois metros. Hoje, a variação pode chegar aos 4,5 metros. Se o tempo está seco, percebo logo que o mar está a galgar o Tejo. E são cada vez mais as vezes em que tenho de soar o alarme”, lamenta. “O rio está simplesmente a entrar em colapso.”
É difícil para quem vive na capital portuguesa perceber as oscilações da água a olho nu. Mas Madaleno é presidente da Lezíria Grande, que na verdade se chama Associação dos Beneficiários da Lezíria Grande de Vila Franca de Xira. A invasão salina do rio afeta-o profundamente. A ele e a 135 outros agricultores que trabalham diariamente aqueles 13.420 hectares de terreno. Localizada trinta quilómetros a norte de Lisboa, é a maior exploração agrícola que existe na bacia portuguesa do Tejo.
As alterações climáticas estão a criar um fenómeno tão discreto quanto preocupante. “Há 20 anos ninguém pensava nisto, mas os sinais são inegáveis e alguma coisa é preciso fazer”, assume António Carmona Rodrigues, presidente da câmara municipal de Lisboa entre 2004 e 2007, professor na Universidade Nova de Lisboa e uma das maiores autoridades portuguesas no campo da Hidrologia e dos Recursos Hídricos. “A subida da água salgada traz espécies invasoras que destroem os habitats, ameaça a produção agrícola e pode afetar o abastecimento para consumo humano.”
A água salgada tem duas formas de invadir o Tejo. A mais frequente acontece com a maré alta. Há menos água doce a descer o rio e as ondas, sobretudo durante as marés vivas, chegam hoje mais longe do que nunca. Muitas vezes transportam consigo fauna, flora e plâncton, que alteram com grande impacto os habitats das bacias. É a isso que Joaquim Madaleno assiste da sua janela.
Há um segundo tipo de invasão que transforma o rio para sempre – a subida da cunha salina. “As alterações climatéricas e o aproveitamento humano fazem com que menos água doce esteja a descer o rio”, explica Carmona Rodrigues. “Por outro lado, o degelo faz o nível dos oceanos subir. As massas de matéria salgada avançam pelo fundo do rio e vão-se estabelecendo progressivamente.”
VÍDEO
Imagine cozinhar um bolo mármore. É um doce tradicional dos dois países onde corre o Tejo e é feito com duas massas, uma de baunilha, outra de chocolate. São colocadas alternadamente no mesmo tabuleiro antes de irem ao forno sem serem misturadas, para que tenham o aspeto de uma pedra mármore. Se se deitar em simultâneo de um lado do tabuleiro a massa clara e do outro a massa escura, o chocolate, que é mais denso, avança progressivamente pelo fundo, ocupando toda a parte de baixo da forma.
No Tejo, o chocolate é a água salgada. Como é mais densa, avança como a lava de um vulcão, rio acima – e estabelece-se. Enquanto a maré alaga, a cunha salina engole.
Manhattan, Ribatejo
Para os agricultores da Lezíria Grande, o futuro já chegou. “Aqui, aqui e aqui” – e Joaquim Madaleno aponta o braço para as margens da Reta do Cabo, um troço de 10 quilómetros da estrada nacional 10 que divide a propriedade a meio – “plantava-se milho, beterraba e melão, e era assim há décadas.”
Junto ao alcatrão ainda se veem algumas das tradicionais vendas de melão, mas é produto que já não vem daquelas terras. “Uns vêm das hortas mais para sul, mas a maioria compro no supermercado”, diz uma vendedora sem querer dar nome para não comprometer o negócio. “O melão já não pega, há sal a mais.”
O tomate, cujo preço no mercado internacional disparou na última década, ocupa agora quase toda a metade norte dos terrenos. “A zona sul está quase toda plantada com arroz, que é um produto de alagamento, em que 90 por cento da água serve como estabilizador térmico – e por isso é mais resistente ao sal”, explica Joaquim Madaleno.
O tomate aguenta quase um grama de sal por litro de água, o arroz dois. O melão não aguenta quase nada. “Somos a agricultura moderna, que funciona e contribui para a economia do país”, diz o presidente da uma exploração onde noventa por cento da produção é vendida para outros países, e a Lezíria Grande dá emprego de forma directa e indirecta a 3500 pessoas. “Mas para funcionarmos precisamos de água doce. E temo-la cada vez menos.”
Foi em 2005 que os problemas se começaram a tornar verdadeiramente graves. Maria Caeiro, engenheira agrícola que trabalha na Lezíria Grande, tem entre outras responsabilidades monitorizar os níveis de salinidade da água do Tejo que entra na propriedade. Como as terras estão abaixo do nível médio da água do mar, são circundadas por um dique de 67 quilómetros e a irrigação dos terrenos é feita por gravidade. Abrem-se e fecham-se as comportas ao rio à medida das necessidades da rega.
No verão desse ano, a Estação Elevatória do Conchoso, já 50 quilómetros a norte de Lisboa, marcava três gramas de sal por litro de água. “Era algo de imaginável, ultrapassarem um grama”, diz Caeiro. “Tivemos de fechar as comportas.”
A Lezíria Grande também é uma espécie de ilha, uma enorme Manhattan onde numa frente circula o Tejo e na outra o Sorraia, um dos seus afluentes. “Quando não conseguimos ir buscar água de um lado vamos ao outro. Mas nem sempre é possível, porque o Sorraia tende a secar no verão”, conta a técnica.
Nesse 2005, por sorte, ambos os rios tinham água, mas a cunha salina avançava com tanta força que estava a subir o outro rio também. No dia 25 de agosto, os agricultores juntaram-se para fazer algo inédito. Todos os tratores da cooperativa foram mobilizados e ergueu-se uma barreira de terra no Sorraia, para que a água salgada que vinha do Tejo não pudesse avançar mais. Com esse garrote, salvaram-se pelo menos as culturas.
Em 2012, a salinidade ultrapassou os quatro gramas por litro e os produtores voltaram a levantar uma barricada ao sal. O mesmo aconteceu em julho de 2019 – o que fez estoirar polémica porque a medida foi tomada à revelia da Agência Portuguesa do Ambiente. “Tínhamos de fazer alguma coisa, ou perdíamos tudo”, diz Joaquim Madaleno.
“O que sabemos é que a salinidade é cada vez maior. Há picos inesperados e cíclicos, algo que nunca tinha acontecido antes. As alterações climatéricas estão a matar o maior rio da Península Ibérica a uma velocidade alarmante. E toda a gente continua de braços cruzados, à espera que o assunto se resolva sozinho.”
Águas livres
Ao final da tarde, velejadores e pescadores ribeirinhos costumam juntar-se na esplanada do clube náutico da povoação de Alhandra, em Vila Franca de Xira, para atualizar as novidades da faina. Aqui há muito que deixou de ser novidade que as douradas, peixes de água salgada que desovam nos estuários dos rios, formaram uma colónia em Valada do Ribatejo, 70 quilómetros a norte de Lisboa.
“Ainda não os vi, mas já há pescadores a vê-los na Ponte de Muge, mesmo às portas de Santarém. As bogas e os safios, esses, é que já ninguém os apanha”, diz Carlos Salgado, 80 anos, lobo velho do charco e fundador da mais antiga ONG de defesa do rio, a Associação dos Amigos do Tejo. “Há dias ligaram-me porque deram com alforrecas na Azambuja. E eu, que ando nestas águas há 65 anos, nunca vi uma coisa destas.”
Na última década, os pescadores viram a amêijoa japonesa instalar-se no estuário, a corvina e o siluro a tomarem o rio – e um estudo do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, laboratório de investigação da Universidade de Lisboa, alertava em 2017 para o facto de, das 64 espécies que habitam a bacia do Tejo, 19 serem exóticas.
Quando os pescadores vêm as douradas em Valada, quando os agricultores da Lezíria registam quatro gramas de sal por litro no Conchoso, é inevitável que se coloquem uma pergunta: quanto tempo falta até os cidadãos que vivem na área metropolitana de Lisboa terem água salgada a escorrer das torneiras?
Há essencialmente dois pontos de captação de água para abastecer a capital portuguesa: a barragem de Castelo de Bode, no rio Zêzere, e a estação de Valada, no Tejo. A primeira assegura 80 por cento das necessidades, a segunda 20. Mas a importância estratégica de Valada é maior do que parece: se houver contaminação na fonte principal (e em 2017 temeu-se que isso acontecesse por causa dos incêndios que assolaram a região e provocaram deslizamento de matéria orgânica para a água), aquela é a principal alternativa.
Foi em Valada do Ribatejo, 70 quilómetros a norte de Lisboa, que foram feitas as primeiras captações de água do Tejo para abastecer a cidade – e o facto revelou-se de tamanha importância que o governo de Salazar decidiu em 1940 construir na Alameda D. Afonso Henriques uma enorme Fonte Luminosa para assinalar o facto-. A estação atual só seria construída 23 anos depois. “Nessa altura ninguém pensava que a salinidade pudesse chegar tão longe”, diz António Carmona Rodrigues.
A Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL), que coordena o abastecimento de água à região de Lisboa, é peremptória em afirmar que a água em Valada não está em perigo. Num dia de visita às instalações, aliás, a empresa recrutou uma verdadeira comitiva para falar com os jornalistas. Vieram os diretores de comunicação, de operações e dos laboratórios da companhia, o responsável pela infraestrutura de Valada e a engenheira de ambiente que trabalhou nos estudos sobre os perigos que a salinidade poderia trazer àquela estação de captação. A EPAL empenhou-se em mostrar que o abastecimento das torneiras está garantido.
Em 2012 a EPAL encomendou um estudo sobre os perigos que as alterações climatéricas poderiam causar no abastecimento e captação de água às populações. Chamava-se Adaptaclima, foi comandado por António Carmona Rodrigues e teve em Vanessa Martins, a engenheira do ambiente, uma das operacionais que trataram os dados.
“Colocámos várias conjunturas em cima da mesa quando falámos de salinidade”, explica Martins. “O pior cenário possível mostrava uma subida do nível do mar extrema e uma descida do caudal do rio para metade até ao final do século. Ainda que isso acontecesse, a cunha salina permaneceria ainda a cinco quilómetros de Valada.”
Mas o aumento de salinidade no rio também preocupa a EPAL. “Mas claro que o sal é um problema”, constata Francisco Serranito, diretor de operações da empresa. “No final do relatório de 2012 havia indicações para que os estudos fossem atualizados regularmente, porque as alterações climáticas provocam mudanças grandes e rápidas. Queremos ainda este ano lançar um novo Adaptaclima para percebermos, entre outras coisas, a evolução da cunha salina.”
A cinco quilómetros de Valada fica a estação onde a água é tratada, Vale de Pedra. Foi remodelada há dois anos, é uma infraestrutura moderna. “Medimos ao segundo a condutividade da água, para perceber os níveis de sal”, diz Luís Bucha, responsável por estas instalações.
O diretor dos laboratórios, Rui Neves Carneiro, atira isto: “Se os níveis de salinidade ultrapassassem os piores cenários que prevemos, teríamos de construir uma unidade dessalinizadora para a água doce continuar a chegar às torneiras de Lisboa. Isso encareceria os custos, obviamente, e ninguém quer esse futuro. Mas temos consciência de que, ainda que não estejamos hoje em risco, podemos vir a estar.” A contenção da cunha salina não vai poder esperar muito mais tempo.
Cuidados paliativos
A história daquilo que falha na foz de um rio começa normalmente no lugar onde ele nasce, o que no caso do Tejo fica 1,038 quilómetros a montante – nuns montes de calhaus na serra de Albarracín, em Aragão.
As barragens de Entrepeñas e Buendía, uma centena de quilómetros a jusante, são as primeiras onde se consegue medir a disponibilidade de água na nascente. Em 40 anos, o Tejo perdeu metade da água na cabeceira por efeito direto das alterações climáticas, nomeadamente por causa do aumento das temperaturas e da diminuição das precipitações.
Ao longo do percurso, os afluentes voltam a engordar o leito, mas os homens condicionam o curso da água com barragens, transvases e centrais nucleares. “O Tejo também perdeu um quarto da pluviosidade em 20 anos”, reconhece o ministro do ambiente português João Pedro Matos Fernandes. “É bastante claro que temos um problema.” Há outros rios na Europa a perderem caudal de água, nomeadamente o Reno. Mas nenhum ao ritmo do Tejo.
Há dois anos, um grupo liderado pelo engenheiro hidráulico Jorge Froes apresentou ao governo um plano de irrigação da bacia do rio que previa, entre outras coisas, a construção de cinco açudes para travar a invasão salina. O Projeto Tejo causou revolta entre associações ecologistas como a Zero ou a Geota, que o classificaram como “um potencial desastre ambiental”. Ainda assim, o ministério da agricultura português prometeu lançar um concurso para avaliar o impacto do mesmo ainda em 2020.
O ministro do ambiente Matos Fernandes diz que não aprova a contra a construção de mais barreiras. Não gosta deste plano, e tem outro. “A única forma de regularmos o caudal do rio é construirmos uma barragem no rio Ocreza, junto à fronteira com Espanha, apenas com fins ecológicos, para mantermos um fluxo homogéneo de água doce.” Diz-se consciente de que um enorme reservatório terá impacto ambiental, mas é urgente avançar com medidas. “Os estudos de viabilidade arrancarão ainda em 2020”, promete. Seja como for, nenhuma solução virá sem novos custos ambientais.
No seu último troço, o Tejo já não consegue disfarçar as falhas que acumulou ao longo do percurso. À chegada a Portugal, a água do Tejo é cada vez menos, e esse é o ponto fundamental que faz os pescadores e agricultores na região de Lisboa levarem as mãos à cabeça. E depois há isto: um transvase que desvia uma grande parte da água na nascente para regar milhares de hectares de frutas e hortaliças no Levante espanhol, uma sucessão de barragens mesmo antes da água passar para Portugal, fábricas e indústria que poluem o pouco que existe.
Oiçam-se dois ambientalistas, um de cada lado da fronteira. Paulo Constantino, do movimento português ProTejo, diz que “a grande estrada fluvial ao longo da qual se estabeleceu quase metade da população da Península Ibérica tornou-se um caminho de cabras que já ninguém quer atravessar.” Miguel Ángel Sanchéz, da espanhola Plataforma em Defesa do Tejo e , diz que “até aos anos sessenta o rio era um rio, mas obrigámo-lo a trabalhar como uma besta. E agora o Tejo está morto.”
A série “Tejo: como matar um rio” foi feita ao abrigo da bolsa Reporters in the Field, promovida pela associação n-ost e pela fundação alemã Robert Bosch, e é publicada simultaneamente pelo jornal luxemburguês Contacto, pelo português Diário de Notícias e pelo espanhol El País.
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