Sérgio martins
A designação de Charola, no Algarve, parece estar muito ligada à imagem do Deus-Menino, de pé, no alto de uma armação composta por caixas de diferentes tamanhos que, sobrepostas, formam um trono em escadaria. Por extensão, significa também o grupo de pessoas (cantadores, músicos e acompanhantes) que percorre os povoados, na época natalícia, cantando e/ou tocando de porta em porta. No entanto, o termo é muito polissémico. No mês de Junho, já pode significar o enfeite que se coloca no topo dos mastros, nas festas dos Santos Populares.
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Perspectiva histórica das Charolas
Crê-se que as Charolas, entendidas como grupos de pessoas (cantadores, músicos e acompanhantes) que na época natalícia percorrem os povoados, cantando e tocando, se têm manifestado desde tempos ancestrais. De acordo com os relatos de pessoas mais idosas, é parecer comum que as Charolas já existiam antes do final da 1ª Grande Guerra, mas cantavam ao Deus-Menino. As Charolas seriam grupos de cantares de presépio que progressivamente adquiriram outras características e funções. Esta evolução parece ter ocorrido em vários grupos que progressivamente se foram constituindo nos mesmos moldes.
Uma apresentação
Executando a Marcha de Entrada, só com instrumentos, o grupo dirige-se para o local de apresentação até se instalar convenientemente. Ao som do apito, normalmente um curto e um longo, a música termina no momento da cadência final seguinte.
Tem então lugar o Estilo do Começador. Nalguns grupos, a composição musical correspondente ao Canto Novo designa- se Estilo do Começador. A designação estilo significa melodia, canção. Sendo as canções criadas de novo tomaram noutros locais a denominação de Estilo Novo (ou Canto Novo), por oposição ao Estilo Velho (Canto Velho) que correspondia às canções natalícias, com referências explícitas de louvor a Deus-Menino e relatando episódios bíblicos. A música correspondente ao Estilo do Começador, em compasso binário, tem normalmente duas partes: uma sem canto, com todos os instrumentos a tocar, em andamento mais rápido, para permitir o acompanhamento da pancadaria, outra mais lenta, para proporcionar o canto do começador, com letra de improviso, saudando as instituições que promoveram a apresentação e as pessoas que se encontram a assistir, é acompanhada somente pelos acordeãos. A ligação entre ambas as partes é feita exclusivamente por estes instrumentos (acordeãos), com carácter ad libitum. Este esquema estrófico alternando entre canto e tutti instrumental é repetido até nova ordem (apito) do começador.
Curiosamente, embora o Estilo do Começador se associe ao Canto Novo, conserva ainda alguma referência ambiental com o Estilo Velho, sobretudo pelo carácter emotivo que sugere e pretende transmitir (quando o começador canta é quase como no Fado, é sagrado, esse momento é sagrado).
Segue-se a Valsa das Vivas, momento alto da performação. É agora que terá lugar a satisfação ou não dos espectadores e a validação do nível de qualidade do grupo: a sua criatividade, o inesperado das situações evocadas, a oportunidade da crítica política, o simples retrato social e a lembrança dos que não podem ser esquecidos e que determinam o poder, o afecto, a amizade, a compreensão ou o desafio (retratar, saudar as pessoas, muitas vezes em tom de brincadeira, certas piadas, certas malandrices, que às vezes só o visado é que percebe). É o reino do improviso com regras explícitas.
A música pára quando o improvisador fala para levar toda a gente a gritar: Viva!. Esta acção de despoletar o entusiasmo chamam-na “tirar Vivas”. O discurso tem que ser formado por quatro versos com rima do tipo “abab” ou “abba”, ou por sextilhas. A sua finalidade é sobretudo causar o riso ou a admiração. Por vezes tem somente a função de saudação.
No entanto, o jogo que se estabelece e as cumplicidades assumidas tornam esta fase extremamente interessante, sem fim (uns somos o fermento dos outros: há o Zé que tira uma Viva sobre um tema ou uma pessoa e faz lembrar o António).
A música utilizada na Valsa das Vivas é formada por duas partes: uma em modo menor e outra que modela à relativa maior. Ambas as partes se repetem em esquema do tipo “aabb”, sendo “a” no modo menor e “b” no maior. A primeira das duas partes “aa” e “bb”, embora termine no acorde da tónica, corresponde-lhe uma melodia que não termina na tónica. A tónica só se afirma melodicamente na segunda vez de cada parte.
Quando o começador apita, ao sinal de um qualquer dos elementos ou até mesmo de alguém no público que quer tirar Vivas, a música completa a volta, acabando na próxima cadência que lhe permita terminar a parte em que está. Quando o momento de terminar chega, normalmente pela necessidade de dar a vez a outros, ou pelo facto de se sentir ser o momento de pôr um ponto final no assunto, o começador apita várias vezes anunciando o final da Valsa e não apenas o fim de uma volta para alguém tirar Vivas.
Por último tem lugar a Marcha de Saída. Mais uma vez trata-se de uma marcha com carácter vivo e de despedida. Esta Marcha tem canto. Há um refrão longo que tende a exaltar as virtudes do grupo, a sua boa disposição e alegria em participar nas Charolas. Há um esquema formal para o conteúdo da mensagem da Marcha de Saída. Primeiro, procede-se à identificação do grupo. Depois faz-se uma saudação, em geral. Finalmente, expressa-se a despedida com votos de Bom Ano, saúde, felicidade e gratidão, sendo comum exaltar-se a bandeira e o pendão do grupo.
Este esquema em 4 partes, nas actuações públicas em palco, tem normalmente uma duração de cerca de meia hora. Em contextos mais íntimos pode alongar-se.
[JERÓNIMO, Rui Moura. "Charolas, a invenção da tradição", in Cidade e Mundos Rurais: Tavira e as sociedades agrárias. Tavira: Câmara Municipal de Tavira, 2010, p. 121-124]
A melhor ilustração que encontrei (no Youtube) foi este vídeo (embora claramente amador, separa explicitamente as várias partes referidas no texto):
[Resumo da actuação da Charola da Casa do Povo de Conceição de Faro,
no Dia de Ano Novo, de 2010, no 28º. Festival de Charolas de Conceição de Faro].
Este Canto Velho também poderá fazer as delícias de alguns leitores:
[O Canto Velho é o canto mais tradicional da Charola e é repetido todos os anos.
Aqui é cantado pelo principiador João Faustino. A música e os versos são de autores desconhecidos]
omeubau.net
Grupo de Charolas União Bordeirense
Grupo de Charolas União Bordeirense
Pelo elevado interesse que desperta, por uma história riquíssima e pela cultura que transmite, o Algarve Primeiro convidou o grupo de Charolas União Bordeirense a falar do seu percurso e tradição, da mensagem que encerra em cada som que produz e, acima de tudo, das razões que alicerçam a sua jovialidade e continuidade.
O primeiro contacto foi estabelecido com uma jovem bordeirense que integra o grupo e que gentilmente nos compilou toda a informação solicitada, pelo que não podemos deixar de prestar o nosso agradecimento a Liliana de Sousa e à sua enorme capacidade de mobilização, sem esquecer o seu empenho e a genuinidade com que nos brindou.
O mesmo reconhecimento estende-se a Rui Vargues e aos quase trinta elementos que constituem a Charola União Bordeirense que, anualmente nos brinda com o seu talento e motivação para manter a história de Bordeira e prolongar a tradição.
Cada elemento tem o seu papel no grupo. Em Novembro quando é dado o mote para os ensaios, é Rui Vargues quem tem a incumbência de organizar e planear tudo.
“Os ensaios desta charola começam normalmente em Novembro. Tudo é organizado e planeado por Rui Vargues que anualmente contacta e se encontra com os músicos, agenda os ensaios, disponibiliza a casa dos seus pais para servir de local de ensaio. Ainda dispõe de talento e criatividade para escrever letras para as músicas e para levar o grupo a dar o seu melhor em cada atuação.” É indiscutível que, “Rui Vargues, é um forte e indispensável pilar desta União Bordeirense.”
De salientar que, “as Charolas são a manifestação cultural mais tradicional e genuína da Freguesia de Santa Bárbara de Nexe.”
Nos primeiros dias de cada ano, grupos de homens e mulheres, acompanhados de instrumentos (acordeão, castanholas, pandeiros, ferrinhos e por vezes clarinete e/ou saxofone), atuam em Festivais na Freguesia e arredores, nos cafés da zona e em casas de amigos, entoando cantigas e lançando quadras improvisadas (“vivas”), num clima de amizade e alegria.
De acordo com o grupo União Bordeirense, “as Charolas saúdam a chegada do ano novo, evocam a tradição e os melhores tempos do passado e são um acontecimento de marcada alegria e partilha, que incluem por vezes uma componente crítica.”
A origem das Charolas no Algarve remonta a vários séculos, mas o movimento charoleiro organizado terá começado a despontar entre 1918 e 1920, no final da I Guerra Mundial, quando os bordeirenses se organizaram para receber e saudar com alegria os seus conterrâneos que regressavam da guerra. “É assim de compreender que em Bordeira, Freguesia de Stª Bárbara de Nexe, esta tradição assuma especial importância, sendo que este pequeno sítio, tem no ativo 5 grupos charoleiros: Democrata, Juvenil Bordeirense, Juventude União Bordeirense, Mocidade União Bordeirense e União Bordeirense.”
No que concerne a Charolas, não há concursos ou prémios. A existência de concurso foi uma realidade em Bordeira, no entanto há mais de duas décadas que não se realiza. “Não faria sentido escolher os melhores, quando todos os grupos são diferentes e têm particularidades próprias mas têm o mesmo propósito e surtem o mesmo efeito em quem as escuta… Todas as 5 charolas de Bordeira são as melhores a cumprir o seu papel na sua terra – lembrar o passado, viver o presente e preparar o futuro, honrando os antepassados e vangloriando Bordeira.”
A União Bordeirense é a segunda charola mais antiga de Bordeira, tendo sido formada em 1919.
“Com 96 anos de história, esta charola passou por interrupções e por ela passaram vários elementos/grupos, mas a bandeira da charola está desde 1989 na posse do atual grupo, com algumas alterações na composição do grupo mas sem interrupções.”
Hoje em dia, a União Bordeirense é formada por aproximadamente 30 elementos – 4 porta-bandeiras, 4 músicos (3 acordeonistas e 1 saxofonista), 8 tocadores de castanholas, 10 tocadores de pandeiros, 1 tocador de ferrinhos e 1 começador.
Esta charola atua, ano após ano, nos festivais de Bordeira e Santa Bárbara de Nexe, no Encontro de Charolas que tem lugar no Teatro das Figuras em Faro, em cafés da zona, em casas particulares, no Cinema de Estoi e em todos os locais que solicitem a sua presença.
“Enquanto que existem charolas no sítio que obedecem a determinado intervalo de idades (como a Juvenil Bordeirense, por exemplo), a União Bordeirense acolhe e agrada do mais novo ao mais velho. O membro mais novo, Rodrigo Vargues, tem 13 anos e o mais velho é o saxofonista Germinal que tem 75 anos.
O sr. Germinal não é filho de Bordeira mas é um elemento chave, que diferencia a União Bordeirense das restantes charolas, por ser a única com saxofone em Bordeira. Mesmo não sendo bordeirense, vive com fervor esta tradição e no primeiro dia de atuações do ano (dia de ano novo) celebra o seu aniversário no seio deste grupo.”
Da história da União Bordeirense, “são de destacar os membros, Carlos Neves, Rui Vargues, Teodoro e António Pinto que são quem já conta mais anos no grupo”. (logo mais sabedoria e entusiasmo!)
Em Bordeira e nas redondezas, a União Bordeirense é conhecida como a “charola do Tó Marroco” que “é a alcunha de António Pinto, tocador de castanholas e homem forte para as ‘vivas’, que dá uma especial genuinidade e singularidade ao grupo.”
Nos ensaios, “entre um cálice de medronho e uma fatia de bolo, entre conversas e risos, vão-se criando as pancadarias, ensaiando os cânticos e afinando todos os pormenores para sair à rua no ano novo.”
Chegado o ano novo, “os dias fixos de atuações são 1 e 6 de Janeiro, sendo que há mais 2 ou 3 dias variáveis. O Dia de Reis é praticamente feriado em Bordeira. É o dia grande das charolas.”
A União Bordeirense “é apresentada por Rui Vargues e cada atuação é iniciada pelo som do seu inconfundível apito.”
Seguidamente, “o grupo brinda os presentes com a “Marcha de Entrada”, tocada e cantada; a qual se segue do “Estilo”, composto por pancadaria, estilo cantado por Vítor Simplício e coro. Segue-se a “Valsa das Vivas”, em que membros da Charola e do público versam (dizem ‘vivas’) dedicadas aos presentes, à união, à tradição e ao passado glorioso, dando-se por vezes também lugar a alguma crítica política e social. A atuação termina, por norma, com a “Marcha de Saída”, tocada e cantada, mas a União Bordeirense por vezes brinda o público com uma Marcha ‘extra’, que considera o seu hino.
Para envolver ainda mais os nossos leitores neste percurso que merece ser evidenciado, de realçar o espírito do grupo:“A União, grupo lindo que se formou honestamente e sem ter vaidade”, é um grupo onde imperam “a simplicidade, a amizade, os laços, as afinidades e a união. Dia 1 de Janeiro de 2016, este grupo saiu mais uma vez, porque sim... pela tradição! Pela amizade! Pelo passado! Por Bordeira!”
E mais!
“Sou União Bordeirense
E o que é isso afinal?
Só percebe quem pertence
A este grupo sem igual!”
I
Sou de um grupo diferente
Ao qual o tempo não vence
Gritarei eternamente
Sou União Bordeirense
II
P´ra muitos, pouco dirá
Não importa , não faz mal
Mas perguntam, digam lá?
E o que é isso afinal?
III
É difícil explicar
Cada um pense o que pense
Não há cá voltas a dar
Só percebe quem pertence
IV
É amizade a valer
É sentir algo especial
É ter honra em pertencer
A este Grupo sem igual
(Rui Vargues)
Para comprovar, só basta assistir e aplaudir todo este trabalho que tanto orgulha as gentes de Bordeira!
www.algarveprimeiro.com
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