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(Isabel Moreira, in Expresso, 14/01/2020)
Parece uma reação de pânico. Não havia cá disto. Isto é, não havia, no Parlamento, extrema-direita, direita populista. Parecia impossível. Durante mais de quarenta anos, PCP e CDS faziam de tampões aos extremismos e, por alguma razão, Paulo Portas defendia que à direita do CDS só uma parede.
O sistema político, do Presidente da República ao Parlamento, viveu sempre bem com todas as divergências, porque a convergência era o Regime e há linhas vermelhas que não se atravessam quando o Regime une todas as forças políticas.
Em Portugal, até “ontem”, era estranho um discurso intrainstitucional que apelasse diretamente ao “povo” em contraposição a uma “elite” transformada nos “outros”, isto é, nos “políticos”, discurso de clivagem antirregime que dá pelo nome de populismo.
É verdade que aqui e ali apareceu quem ensaiasse o método, mas nunca tinha acontecido, até à eleição para a Assembleia da República de um Deputado do Chega, o triunfo eleitoral de uma direita extremista e populista, que, para além de um programa eleitoral insano de destruição do Estado social, aposta na exploração das frustrações sociais legítimas culpando a democracia, isto é, o Parlamento, os Deputados, a tal “elite” transformada nos “outros”, gente que “não serve para nada”.
A reação a esta novidade no nosso sistema político parece uma reação de pânico, escrevia. Esperar-se-ia dos democratas, de todos os democratas, da esquerda à direita, que o combate ao fenómeno passasse pela afirmação corajosa do Regime que sempre nos uniu.
Esperar-se-ia que perto ou longe de qualquer ato eleitoral não houvesse democrata que perdesse a oportunidade do púlpito para dizer da República, do Estado de direito, da Democracia representativa, de quantos tombaram para que homens e mulheres pudessem votar e ser eleitos Deputados em nome do Povo, naquela casa nossa, o Parlamento, onde não há a distância da elite, mas a proximidade radiosa da representação. Esperar-se-ia muito, tudo, de quem pode dizer da dignidade dos cargos políticos, sem medo, sem tibiezas.
O pânico-ai-o-que-é-que-faço instalou-se e os candidatos à liderança do PSD suavizam André Ventura admitindo alianças com o Chega, o mesmo acontecendo na corrida à liderança para o CDS.Mais grave, porém, é ouvir Marcelo Rebelo de Sousa, na abertura do ano judicial, esquecer-se da tal oportunidade do púlpito.
O Presidente da República – desejoso por alcançar o melhor resultado da histórica nas próximas eleições presidenciais – dobrou-se perante a “justíssima” alteração remuneratória dos magistrados na anterior legislatura, falando da sua “função social”, em contraposição à remuneração dos titulares dos cargos políticos, que teriam de esperar (não diz até quando, claro).
A gravidade está na contraposição, evidentemente. Marcelo faz isto por pura cedência ao populismo, à tal perspetiva dos políticos como “os outros”, no sentido pejorativo. Não lhes consegue, de resto, encontrar uma função nobre, social, como encontra para os magistrados, dispondo-se a flagelar a classe para cujo ódio contribui ao explicar que é ótimo que um magistrado ganhe mais do que um primeiro-ministro. Aos políticos cabe uma função sacrificial, de exemplo e, agora, de saco de pancada.
É natural, neste concurso de pânico em que muitos dançam na lama do Chega, que não se tenha feito ouvir as palavras certas, na mesma ocasião de Ferro Rodrigues, nomeadamente quando afirmou o seguinte: “precisamos todos de estar alerta face às tendências as mais das vezes inorgânicas e difusas que desprezam o valor de uma pedagogia institucional exigente para a substituir por retóricas que fazendo tábua rasa da natureza das instituições e da sua razão de ser apostam no imediatismo do estado espetáculo e no decisionismo de circunstância”.
Dá trabalho e requer firmeza seguir o conselho do Presidente da Assembleia da República, mas é assim que se defende o Regime.
Andar na lama com o Chega em busca de dividendos eleitorais tem, de resto, o custo evidente que deveria ocorrer a Marcelo: as pessoas preferem sempre o original à cópia.
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