Objetivo do projeto Lar no Lar é combater a solidão e isolamento social na população idosa através de um programa de coabitação intergeracional com inquilinos mais jovens.
Embora não sendo original, o projeto Lar no Lar assume-se como uma pedrada no charco no panorama algarvio e sem congéneres de grande expressão no resto de Portugal.
Tem por objetivo promover a coabitação intergeracional e apenas tem dois congéneres, um no Porto e outro em Coimbra.
A iniciativa surge pela mão de Joyce Craveiro, que há uns anos adotou Lagos e aí criou raízes.
Para tal, fundou a Associação Guardiões D’inverno, que abriu a atividade a 3 de março.
A ideia da promotora é iniciar em Lagos, expandir-se pelo Algarve e, depois, a nível nacional.
«A ideia surgiu há uns anos, quando estava em Londres e o meu pai em Portugal. Vivia sozinho e tinha problemas de saúde, embora fosse independente. Mas, por exemplo, ele desligava o telefone para o pôr a carregar e, depois, esquecia-se de o ligar. Passávamos dias sem conseguir contactá-lo e tínhamos de ligar para a vizinhança.
Eu vinha cá muitas vezes e pensava: ele tem um quarto vazio. Se conseguisse encontrar alguém de confiança que pudesse fazer-lhe companhia, seria bom. Entretanto, a sua saúde deteriorou- -se e contratámos serviços de apoio domiciliar. Só que, ao deixar de ir às compras e de preocupar-se com o que iria comer, deixou de sair e perdeu o interesse na vida», conta.
«Entretanto, em Londres, ouvi falar nestes sistemas de partilha de casa (homeshare, no inglês). Candidatei-me e acabei por ficar a viver com um senhor um pouco mais novo do que o meu pai. A forma como lidávamos um com o outro foi muito engraçada, porque eu estudei arte e este senhor não só estudou arte, como a ensinava e era artista. Viajou pelo mundo a pintar tetos em palácios. Tinha muitos contactos, tanto no meio artístico como no político, pessoas interessantes, e imensas histórias para contar».
«E eu, imigrante em Londres, acabei por pagar uma fração da renda que pagaria em condições normais. Foi mais fácil integrar-me plenamente no modo de vida da sociedade londrina. Como retorno, deveria ajudá-lo com pequenas coisas na vida doméstica. Sem o peso emocional que, muitas vezes, dificulta o relacionamento entre pais e filhos, conseguimos estabelecer facilmente uma relação muito boa», recorda.
Joyce encontrou situações no sistema de partilha que, no seu entender, deveriam ser tratadas de forma diferente, começou a tirar apontamentos e a contactar outras organizações para aprender mais.
«Entretanto o meu pai faleceu e a ironia de eu estar a ajudar e a participar na vida de um estranho e a contribuir para que ele tivesse melhor qualidade de vida e não ter havido a possibilidade de alguém fazer isso com o meu pai, uma vez que, financeiramente, era impossível eu ter regressado a Portugal para lhe dar apoio, cimentou a minha vontade de lançar o projeto cá», sublinha.
Dada a sua experiência, considera que a filosofia do projeto Lar no Lar «não é prolongar a vida das pessoas, mas prolongar a vida com qualidade. E a vida com qualidade pode ser muitas coisas. Imaginemos uma pessoa de certa idade, independente e autónoma, que conduz, que faz uma série de coisas, mas não tem familiares, ou até pode ter. Um dia, parte um pulso e vai ter uma recuperação difícil e morosa e, enquanto está a recuperar, deixa de poder conduzir, carregar compras, cozinhar, cuidar de si. Perde a autonomia, o que leva à degradação rápida da vida, porque fica deprimida, sente-se incapaz, isola-se e aparecem problemas mentais. É tudo isso que eu quero prevenir».
Quem fica com quem?
Até aqui, segundo Joyce Craveiro, os programas semelhantes que existem em Portugal são limitativos, pois os coabitantes têm de ser estudantes. E têm regras para a hora a que têm de estar em casa e outras limitações, que impedem o idoso de partilhar casa, por exemplo, com um enfermeiro ou outro profissional que trabalhe turnos», compara.
Por isso, o Lar no Lar terá a preocupação de tentar compatibilizar os interesses e disponibilidades das partes interessadas.
«Iremos criar um perfil do idoso e do potencial coabitante que necessita. Porque não vou colocar uma pessoa extremamente religiosa com um ateu; uma pessoa que necessita de ajuda na cozinha com alguém que deteste cozinhar; alguém que tenha animais de estimação em casa com quem sofra de alergias. Há um trabalho prévio para encontrar as melhores correspondências».
Questionada sobre se há um perfil para os potenciais companheiros para os idosos, a empreendedora social revela que «qualquer adulto responsável que possa ceder oito a dez horas semanais de companhia e ajuda à pessoa idosa.
Os candidatos deverão apresentar um registo criminal e três contactos para referências. Depois, a Lar no Lar irá rever essas referências, que não deverão ser familiares», exemplifica.
Por outro lado, os estudantes universitários são bons candidatos e, por isso, Joyce já estabeleceu contactos com a Universidade do Algarve, pois este seria um meio para os alunos terem alojamento a um baixo custo.
Além de estudantes, o projeto poderá ser bom «para imigrantes, ajudando-os a integrarem-se melhor de forma mais célere na sociedade portuguesa. Ou professores, que são frequentemente colocados longe do seu local de residência. Imagine, no futuro, vítimas de violência doméstica, que possam ir para outro local onde ninguém as conhece e possam estar num seio familiar. O que pretendo com isto é quebrar barreiras culturais e geracionais».
Acompanhamento de proximidade
E como irá a Lar no Lar gerir os processos, após as pessoas começarem a viver juntas?
«Bem, na primeira semana, faremos telefonemas para cada uma das pessoas. Falamos com cada uma individualmente, de dois em dois dias. Depois disso, contactaremos semanalmente, para sabermos se estão satisfeitas e também para nos certificarmos de que tudo está bem. Porque, quando as coisas correm mal, não é de repente. São pequenas coisas que se vão acumulando.
Nessas conversas, se conseguirmos detetar essas coisas pequenas, poderemos monitorizar e também podemos dispersar quaisquer problemas e ajudar a resolver conflitos».
«A ideia é mesmo apoiar e monitorizar a relação. Desde que as pessoas nos solicitem, haverá também contactos presenciais, porque haverá um operacional em cada zona onde operarmos. Também queremos, desde que os haja, envolver os familiares da pessoa idosa, porque haverá um primeiro mês de experiência. Após este contexto de experiência, estamos a pensar em realizar atividades para as pessoas que participam no programa se conhecerem e partilharem conhecimentos e experiências».
E também ligar os idosos à aplicação OneCare AAL, uma aplicação desenvolvida para a Smart Monitoring, em que os alunos da Universidade de Coimbra participaram e que, através de um tablet, permite medir certas funções e capacidades na pessoa idosa e ajudar a avaliar o impacto do projeto.
«Pode ser partilhada com outros utentes, para que, por exemplo, se possam desafiar uns aos outros em jogos cognitivos. Permite fazer chamadas de voz ou videochamadas para contactos específicos», conclui.
Premissas internacionais
Para provar a seriedade do projeto, Joyce Craveiro enquadra a Lar no Lar nas premissas da Homeshare International, «uma entidade que foi desenvolvida especificamente para apoiar estes programas um pouco por todo o mundo. Quando digo apoiar, é no sentido de dar orientação. Mas é importante frisar que desconhece as leis portuguesas. Logo, tenho de ser eu a pesquisar o enquadramento legal e a descobrir quais os obstáculos com que posso vir a deparar-me. Neste momento, ainda não tenho o selo da Homeshare International no site, porque o projeto tem sido todo desenvolvido com o meu dinheiro, fui eu quem construiu o site, tenho sido eu a desenvolver todo o projeto», ao longo dos últimos três anos.
«A Lar no Lar tem potencial para se tornar algo muito positivo para a nossa sociedade. Se se tornar algo que as pessoas vejam como uma alternativa viável à forma como envelhecemos e olhamos para o envelhecimento, temos possibilidade de crescer bastante. Quero envolver- -me com pessoas da área da ciência que estão a estudar o envelhecimento, para podermos medir fatores e medir o impacto que este programa poderá ter na vida das pessoas idosas. Isso envolverá psicólogos, sociólogos, e outras entidades».
Perfil da fundadora
Joyce Craveiro é uma mulher do mundo que, há uns anos, adotou Lagos e aí criou raízes. As suas vivências, misturando culturas africana, ibérica e anglo-saxónica, fazem dela uma espécie humana de «canivete suíço» cheio de valências.
«Sou um produto do modo como fui criada, numa família multirracial que sofreu e ainda sofre de discriminação e considero-me a mais sortuda por ser a mais nova (tenho irmãos com mais 10 e 20 anos do que eu). Não me recordo das dificuldades que tivemos para vir para Portugal, em 1976, porque tinha apenas dois anos», disse Joyce Craveiro ao barlavento.
Designer de interiores, trabalhou em tudo o que é relacionado com habitação e espaços, interiores e exteriores, porque nos EUA trabalhou para uma empresa que também fazia urbanismo. Nos últimos 10 anos começou a ter uma maior preocupação ambiental e a considerar fazer algo de valor para a sociedade.
«Na minha profissão, por mais que tente usar produtos sustentáveis e por mais que encoraje os meus clientes a usar produtos de fornecedores com consciência, acabo por encorajar as pessoas a deitar fora o que já têm e a comprar algo novo, o que pesa no planeta. E eu quero viver aqui, não quero ir para Marte».
Atualmente, está a estudar gerontologia, para poder desenvolver melhor a Lar no Lar, que considera um projeto de vida.
A Associação Guardiões D’inverno foi constituída em dezembro de 2020, tem a sua sede no concelho de Lagos, exerce outras atividades de apoio social sem alojamento.
barlavento.sapo.pt
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