Centenário das Charolas de Bordeira celebra-se hoje, dia de Ano Novo, e no Dia de Reis
As Charolas de Bordeira são mais que uma tradição. São um movimento cultural e social único e, desde que surgiram, há um século, assumiram-se como o principal elemento identitário de uma comunidade em que a música e a poesia ocupam um lugar central.
A festa do centenário das Charolas de Bordeira vai ser feita hoje, dia 1 de Janeiro, e no Dia de Reis, 6 de Janeiro, nesta localidade situada na freguesia de Santa Bárbara de Nexe, no concelho de Faro.
Além dos tradicionais encontros de Charolas, vai ser apresentada, em estreia absoluta, a Marcha do Centenário, que resultou do trabalho conjunto dos seis grupos de cantares locais que perpetuam esta tradição.
«Vamos iniciar no dia de Ano Novo, às 11h00, no centro de Bordeira, com as seis Charolas a tocar a música do Centenário. Vamos todos tocar e cantar alegremente. A festa prossegue com o tradicional Encontro de Charolas, na Sociedade Recreativa Bordeirense, com oito grupos: os nossos seis, o da Aldeia Branca (Estoi) e o das Barreiras Brancas (Loulé)», explicou ao Sul Informação Eva Mendonça, presidente da Sociedade Recreativa Bordeirense, que organiza esta festa, com o apoio da da Junta de Freguesia de Santa Bárbara de Nexe e da Câmara de Faro.
6 de Janeiro, é, por tradição, o dia mais importante, «aquele que nós festejamos mais intensamente». Nesse dia, há o habitual périplo das Charolas pelos cafés e comércio local de Bordeira, logo pela manhã. De seguida, os grupos juntar-se-ão no Centro de Atividades D. Leonor para novo Encontro de Charolas, desta vez com 12 formações. Será neste local que serão encerrados os festejos, com nova apresentação conjunta da Marcha do Centenário, numa festa em que não faltará «bolo, champanhe e fogo de artifício, como pede a ocasião».
Nestes dias, em que o ano velho se aproxima rapidamente do final e o novo já está à espreita, os charoleiros ensaiam e espalham música por vários espaços de Bordeira. Aqui, as Charolas, uma tradição de início de ano e do dia de Reis, são rainhas – mas aquelas que se começaram a tocar e a cantar no pós-I Guerra Mundial, não aquelas associadas ao Menino Jesus e ao catolicismo.
Nada disso! Estas Charolas – que até podiam ser Janeiras, mas que também não o são, pois usam instrumentos musicais diferentes – são laicas e originárias de Bordeira. Curiosos? Nelson Conceição, premiado acordeonista, bordeirense de gema e charoleiro desde que andava ao colo do pai, explica:
«As Charolas são uma tradição que existe em diversos pontos do Algarve, mas mais aqui no Sotavento. Na sua maioria, são cantares ao Menino. Só que aqui em Bordeira, há cerca de cem anos, a tradição transformou-se, não sabemos ao certo porquê, e profanizou-se, tornou-se pagã. No entanto, a designação de Charolas, que é um termo litúrgico, prevaleceu», contou ao Sul Informação Nelson Conceição.
Esta tradição bordeirense tem diversas vertentes: «a crítica social e política, o dar as boas vindas ao novo ano e festejar o regresso dos soldados da I Guerra Mundial, porque os primeiros grupos organizados de charoleiros surgiram em 1919 ou 1920, pelo menos segundo os registos escritos».
Daí que Nelson Conceição seja cauteloso ao usar a palavra centenário. «Não sabemos ao certo. Já existiriam Charolas. Mas há uma figura central em todo este processo, o José Ferreiro Pai, talvez o primeiro grande acordeonista de Portugal de que há memória, que regressou da guerra em Julho de 1919. Supõe-se que no dia 1 de Janeiro de 1920 já tenha tocado nas Charolas, com outros acordeonistas e os começadores, que são os poetas que cantam de improviso», recordou.
Tendo isto em conta, instituiu-se 1920 como a data do nascimento oficial desta tradição.
Agora, foi feita uma marcha para celebrar a efeméride. «A música da Marcha do Centenário foi composta pelo Daniel Rato, que está emigrado na Suécia, e por mim. A parte da letra foram os poetas do momento daqui de Bordeira que se juntaram e fizeram o texto, que, no fundo, retrata esta transformação das Charolas e o porquê de se tornarem profanas».
A tradição das Charolas vem evoluindo desde a sua criação, graças a muita gente. «Passaram por aqui grandes acordeonistas, grandes artistas e grandes poetas. António Aleixo, por exemplo, foi o autor de várias letras de músicas, nomeadamente da Marcha de Bordeira, do hino de Bordeira e do hino da Sociedade de Bordeira, sempre com música de José Ferreiro Pai».
«Havia aqui uma grande cultura popular e uma grande criação em termos poéticos e musicais. O Clementino Baeta, também um grande poeta, de Almancil, estava sempre cá. E talvez seja por isso que ainda hoje temos aqui grandes poetas, com uma capacidade de improviso extraordinária, algo que quem cá vier a 1 de Janeiro ou no Dia de Reis poderá confirmar», reforçou o acordeonista.
Isto leva a que, de ano para ano, haja sempre músicas novas para apresentar. «Aqui houve sempre criação de novos temas, graças, também, a muitos acordeonistas, como Daniel Rato, Hermenegildo Guerreiro, Álvaro Carminho, José Ferreiro Pai, José Ferreiro Filho, José António Madeirinha, João Barra Bexiga e a própria Eugénia Lima, que vinha cá na altura das Charolas, bem como a muitos poetas».
Daí que, só em Bordeira, existam seis grupos de Charolas, «algo que parece impensável para um sítio tão pequeno».
Nelson Conceição alinha no grupo Mocidade União Bordeirense com muitos dos conterrâneos com quem cresceu, atualmente na casa dos 40 anos. Foi a um ensaio deste grupo que o Sul Informação assistiu.
«Temos um grupo, que é a Juvenil União Bordeirense, que reúne os mais novinhos. Depois temos a Juventude União Bordeirense, que já é intermédio, para malta dos seus 20 anos. Nós também passámos por lá. Aliás, foi a Juvenil União Bordeirense que criou este grupo, em 1987. Também há o Democrata, que foi criado no pós-25 de Abril, o União Bordeirense, de uma geração que vêm muito de trás, e o grupo da Sociedade Recreativa Bordeirense, além do meu, a Mocidade», segundo o músico.
Todas as Charolas, quando entram em palco, seguem o mesmo esquema: «A atuação inicia-se com a marcha de entrada, que pode ser cantada ou não. Por norma não é cantada. Seguidamente temos o coro, que é acompanhado a solo pelos começadores. Há um refrão que o coro repete várias vezes. Depois, há a Valsa das Vivas, em que alguns elementos versam de improviso. Terminamos com a marcha de saída, que é só tocada e cantada», descreveu Eva Mendonça.
«Muitas vezes, acontece aqui magia. Há malta aqui capaz de se inspirar em qualquer coisa para fazer uma viva que põe toda a gente a rir. E depois, há sempre quem responda à medida. Mas coisas bem feitas, com métrica, quadras bem elaboradas e rimas cruzadas», assegurou, por seu lado, Nelson Conceição.
«É uma grande riqueza que aqui temos, que mexe com a alma das pessoas. Faz rir, faz chorar, é uma mistura de sentimentos. Por muito que tentemos, não conseguimos explicar exatamente o que isto é. O melhor é vir cá para ver, ouvir e sentir», rematou.
Já Eva Mendonça fala numa «tradição que é vivida com muito orgulho por várias gerações. Temos muito orgulho nesta tradição e queremos que nos visitem no centenário das Charolas».
Fotos: Hugo Rodrigues|Sul Informação
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